domingo, 30 de novembro de 2025

HIGH FI✌E: Novembro

 Cinco filme assistidos no mês que merecem destaque: 


PL►Y: Sonhos de Trem

 

Felicity e Joel: a vida e o tempo. 


Se a Netflix tivesse um prêmio próprio, tipo o Oscar, o ganhador de 2025 seria Train Dreams. O filme independente chamou atenção no Festival de Sundance deste ano e foi comprado pela gigante do streaming. Adicionado de forma discreta ao seu catálogo, o longa está entre as produções mais vistas desde a sua estreia e ganhando elogios de crítica e público (tal e qual ocorrido no Festival). Baseado no livro de Denis Johnson, Sonhos de Trem conta a história de Robert Gainier (Joel Edgerton que vou dispensar maiores comentários porque sempre o acho ótimo em cena), que ao final do século XIX trabalhava como lenhador no período em que os Estados Unidos ainda não havia cicatrizado a Guerra Civil. Desde pequeno ele testemunha a violência e o preconceito contra imigrantes, ao mesmo tempo, testemunha a expansão das ferrovias que o levam para cada vez mais longe de casa a trabalho. Enquanto era um homem solitário, não havia maiores dilemas, a situação fica diferente quando ele casa com Gladys (Felicity Jones, que também está sempre ótima em cena) e tem uma filha. A distância da família pesa nos longos períodos em que está ausente, o lar de torna responsável pelos momentos mais felizes e também os mais tristes da vida do personagem. O diretor Clint Bentley cria a partir da vida deste personagem um filme belíssimo, com reflexões sobre a relação do homem com a natureza e com o próprio tempo. Ao longo da narrativa o personagem acompanha a expansão territorial da "civilização" frente à natureza até chegar em 1960 e ver o homem chegar ao espaço. Joel Edgerton constrói um personagem tão sólido que será uma pena não vê-lo nas premiações que se aproximam. Cheio de participações especiais (William H. Macy, Paul Schneider e Clifton Collins Jr. e a narração de Will Patton), quem também merece destaque é Kerry Condon, maravilhosa como uma faísca de luz nos momentos mais tristes do solitário Grainier. A belíssima fotografia do brasileiro Adolpho Veloso confere ao filme uma atmosfera tão idílica quanto ameaçadora em momentos bastante pontuais. Curioso imaginar que um livro tão curto (cerca de oitenta páginas) rende um filme tão robusto e reflexivo. Quem curte uma narrativa mais contemplativa vai colocar o  filme entre seus favoritos do ano. 

Sonhos de Trem (Train Dreams / EUA - 2025) de Clint Bentley com Joel Edgerton, Felicity Jones, William H. Macy, Will Patton, Kerry Condon, Cliff Collins Jr., Paul Schneider e Alfred Hsing.  

sábado, 29 de novembro de 2025

PL►Y: Belén - Uma História de Injustiça

Julieta (Camila Plaate): direitos x moralismo. 

Nossos vizinhos argentinos escolheram Belén para tentar uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional no ano que vem, mas diante da concorrência acirrada, o filme tem poucas chances - mas a Amazon vai fazer forte campanha para cravar seu nome na disputada quinta vaga da categoria. Conta muito a favor do filme sua temática de cunho feminista e a atualidade de um tema central que é sempre polêmico: o aborto. No entanto, o filme gira em torno de um caso real que ilustrou de forma assustadora que a abordagem do tema pode ser permeada por uma espécie de cegueira moralista que impede que as pessoas observem fatos reais e não apenas suas convicções religiosas. O roteiro conta a história de Julieta (Camila Plaate), jovem que chegou com fortes dores em um hospital público e percebeu se tratar de um aborto espontâneo. Enquanto era atendida pelos médicos, ela foi surpreendida com a presença da polícia que a acusou de ter induzido o aborto e ter afogado o feto enquanto foi ao banheiro. Ninguém da família entendeu as acusações e negaram que o feto encontrado era de Julieta. No entanto, a jovem permaneceu presa por dois anos e o processo em torno de seu caso foi tratado com total descuido pelos envolvidos. O caso chama atenção de uma advogada (vivida pela diretora e roteirista Dolores Fonzi) que resolve reabrir o caso e provar que as acusações em torno da condenada eram infundados. Aos poucos vemos que toda a polêmica em torno do caso girava em torno de um moralismo que impedia que a as pessoas de fato estudassem a situação e percebessem as inconsistências dos registros no processo. A situação do feto mudava de relatório para relatório, não houve exame de DNA do corpo que foi encontrado e, sendo a principal prova do caso, o mesmo desapareceu. Ou seja, todo o estardalhaço em torno de Julieta se tornou maior do que a situação em si, a colocando como alvo de uma verdadeira cruzada pela moral disfarçada de cumprimento da lei. A situação chamou atenção de grupos que perceberam como tudo aquilo ilustrava uma situação insustentável - vale destacar que estamos falando de um caso verídico ocorrido em 2014! O filme é bastante didático ao ilustrar a opinião pública sobre  o caso e como ela dificultou os trabalhos para encontrar a verdade no meio de tudo aquilo. Todo absurdo da situação gerou um verdadeiro movimento social que se tornou um marco na luta pelos direitos reprodutivos no país. A diretora Dolores Fonzi, que apresenta aqui seu segundo longa metragem, faz um bom trabalho na condução do elenco e na fluência da narrativa, embora aborde um tema espinhoso, ela demonstra bastante ponderação na condução. Embora tenha poucas chances de cravar uma indicação ao Oscar, o filme merece atenção devido à sua temática. 

Belén: Uma História de Injustiça (Argentina / 2025) de Dolores Fonzi com Dolores Fonzi, Camila Plaate, Laura Paredes, Julieta Cardinalli, Sergio Prina e Luís Machín.  

PL►Y: A Melhor Mãe do Mundo

Gal (Shirley Cruz): mulher de carne e osso. 

Sou fã do cinema de Anna Muylaert desde que assisti ao curta A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti (1995). Lembro até hoje quando fui ao cinema para assistir seu longa de estreia, Durval Discos (2002) que até hoje está entre os meus filmes brasileiros favoritos em sua  guinada que separa o Lado A do Lado B. Muylaert ficou mais conhecida do grande público quando Que Horas Ela Volta? (2015) e tornou um sucesso ao mostrar-se um verdadeiro retrato de um país em mudança. A identificação foi tanta que o longa até foi indicado pelo Brasil à concorrer por uma vaga ao Oscar de Filme Estrangeiro. Alguns filmes depois, o cinema de Anna voltou a ser pauta com A Melhor Mãe do Mundo, que aborda temáticas delicadas com o jeito disfarçadamente inofensivo da cineasta. Quando somos apresentados à Gal (Shirley Cruz), ela está literalmente sem palavras diante da agressão que acaba de sofrer de seu companheiro. O rosto carrega as marcas da violência, mas também o cansaço de quem não aguenta mais e resolveu fazer uma denúncia. No entanto, é visível que Gal não tem um plano diante do que virá a seguir e o turbilhão de emoções que misturam em sua cabeça a fazem apenas repetir as palavras de uma atendente. O que vemos a seguir é apenas uma certeza: do jeito que está, não dá para continuar. Ela então busca seus filhos e parte rumo à sua única certeza: sair dali. Gal é uma catadora de recicláveis e enquanto carrega Benin (Benin Ayo) e Rihanna (Rihanna Barbosa) em seu "veículo" de trabalho, ela tenta garantir algum dinheiro para mantê-los por alguns dias até que consiga ajuda na casa de uma parente. Andando pelas ruas de São Paulo, as dificuldades são muitas e ela tenta fazer com que tudo seja  disfarçado de uma aventura. Muylaert opta aqui por uma direção que parece "inexistente", as cenas soam improvisadas e dão impressão de que a câmera está escondida para registrar a vida daquela família que parece real. Se por um lado esta opção confere autenticidade ao filme, por outro, faz com que a maior parte do tempo tenhamos a impressão que a narrativa está um tanto dispersa, pelo menos até a chegada do trio ao local em que Gal terá que tomar uma das maiores decisões de sua vida. Difícil imaginar o filme sem Shirley Cruz no papel de Gal, ela vive uma mãe que guarda para si todas as incertezas daquele momento difícil, mas que ao mesmo tempo, encontra nos filhos uma espécie de espelho para enxergar e ponderar sobre sua realidade e seu amor próprio. As crianças também são um destaque a parte com uma espontaneidade que confere ao filme uma doçura irresistível. O posto de rosto mais famoso da produção vai para Seu Jorge como Leandro, o esposo agressor de Gal - e impressionante como ele confere uma presença ameaçadora desde a primeira cena em que ouvimos sua voz para somente depois vê-lo em cena. A Melhor Mãe do Mundo é mais um filme sensível de Anna Muylaert sobre mulheres fictícias que parecem de verdade, justamente por saber representar pessoas de carne e osso com bastante veracidade.  

A Melhor Mãe do Mundo (Brasil/2025) de Anna Muylaert com Shirley Cruz, Rihanna Barbosa, Benin Ayo e Seu Jorge. 

10+: Paul Thomas Anderson

O primeiro filme de Paul Thomas Anderson foi lançado em 1988 e quando despontou no cinema independente nos anos 1990 ficou famosa aquela história de que ele abandonou a faculdade de cinema por não se adequar aos padrões. Desde sua estreia em 1996 ele chamou atenção por conta de seus jeito único de contar histórias. Se muitos consideraram sua estreia fria, nas obras seguintes era visível como buscava um calor cada vez maior na complexidade de seus personagens. Hoje, PTA já acumula onze indicações ao Oscar e nenhuma estatueta. Será que ano que vem ele leva algum? Porém, a qualidade de seu currículo não pode ser medida pelo careca dourado. A seguir seus dez filmes classificados pelo meu favoritismo (e só na hora de criar os links me dei conta de que dois deles não tem resenha por aqui, que feio...):

#10 : "Jogada de Risco" (1996)

#09 : "Embriagado de Amor" (2002)








PL►Y: Uma Batalha Após a Outra

Teyana e Leo: filha perseguida. 

O novo filme de Paul Thomas Anderson tornou-se o grande favorito do Oscar do ano que vem. Pode se dizer que este favoritismo cresceu meio que por acaso, já que ninguém fazia ideia do que se tratava o filme pelos trailers que foram lançados. No fim das contas é até difícil explicar tudo o que acontece, já que o diretor mistura um monte de personagens e lembra um pouco os tempos em que fazia filmes caleidoscópicos como Boogie Nights (1997) e Magnólia (1999). Todos os personagens gravitam em torno do casal formado por Perfidia (Teyana Taylor) e Pat (Leonardo DiCaprio), ambos fazem parte de um grupo rebelde chamado French 75 que organiza operações de resgate de imigrantes e roubos a banco. Entre armas e bombas, um dia Perfidia cruza o caminho do coronel Steven J. Lockjaw (Sean Penn tão cômico quanto assustador) e surge uma estranha relação entre os dois. Quando uma operação do grupo desanda, todos passam a ser perseguidos pelo coronel - o que muda o rumo de toda a história. Dezesseis anos depois, vemos Pat cuidando da filha, Willa (Chase Infinity) e tendo que lidar com o passado que volta à bater em sua porta. Se Pat sempre foi um tanto paranoico nos cuidados com a filha, a coisa piora consideravelmente quando ela desaparece. Figuras do seu passado voltam a aparecer, não apenas Lockjaw, mas também Deandra (Regina Hall) e Sensei Sergio (Benicio Del Toro) que passam a ter relação (de um lado ou de outro) com o sumiço da menina. O que vemos então é a busca desesperada de um pai pela filha. Esta é a alma do filme. PTA volta a construir aqui uma narrativa que soa dispersa e, por isso mesmo, torna-se surpreendente. Uma Batalha após a Outra mistura gêneros variados (romance, drama, ação, suspense, comédia...) e isso deve explicar muito o apelo do filme junto aos críticos e o interesse de Anderson em adaptar livremente o romance de Vineland de Thomas Pinchon (de quem o diretor também já adaptou Vício Inerente/2014, seu filme menos celebrado). Do material de origem extraiu os conflitos ideológicos, movimentos de resistência e o autoritarismo que deram à obra um tom épico urbano que serve de pano de fundo para a história de laços familiares e amizade. Anderson capricha nas cenas de perseguição, constrói cenas tensas, divertidas e costura uma narrativa caótica que transpira urgência. Confesso que a primeira parte do filme não me envolveu, achei a montagem muito picotada e tive a impressão que o corte original era mais longo para dar conta de uma melhor apresentação daqueles personagens, especialmente dos conflitos de Perfidia com a maternidade e seu envolvimento com Lockjaw. A sorte é que Anderson demonstra mais uma vez um talento impressionante para escolher o elenco. Enquanto Leonardo DiCaprio parece uma paródia de alguma coisa que Jack Nicholson faria (e está cotado ao Oscar de melhor ator), seus parceiros de cena estão congestionando as apostas entre os coadjuvantes, ao ponto da novata Chase Infininity ser deslocada para categoria de melhor atriz por seu trabalho de estreia. Uma Batalha Após a Outra está longe de ser meu trabalho favorito do diretor, mas entendo o apelo que possui em tempos em que Hollywood ousa cada vez menos. Isso é suficiente para levar o Oscar de melhor filme? Não sei. Só sei que depois de onze idicações naufragadas no Oscar ao longo da carreira, três longas indicados ao prêmio de melhor filme, a Academia tem algumas dívidas a quitar com o moço. 

Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another / EUA - 2025) de Paul Thomas Anderson com Leonardo Di Caprio, Chase Infinity, Sean Penn, Teyana Taylor, Regina Hall, Benicio Del Toro, Alana Haim e Tony Goldwyn. 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

4EVER: Jimmy Cliff

30 de julho de 1944   24 de novembro de 2025

James Chambers nasceu em Saint James, então colônia da Jamaica, sendo o penúltimo de uma família de nove filhos. Seus pais se separaram quando era bebê e então ele foi criado pelo pai e a avó. Desde a infância, Jimmy demonstrou interesse pela música e aos 14 anos, ao mudar-se para Kingston,  maior cidade da Jamaica, iniciou sua carreira musical com o nome de Jimmy Cliff. Em 1964 mudou-se para a Inglaterra e assinou o seu primeiro contrato musical. Sua sonoridade sempre foi voltada para o reggae e seu álbum lançado em 1967 lhe rendeu sucesso na carreira e seus primeiros hits, como Waterfall que se tornou hit no Brasil.  Em 1972 estrelou o filme The Harder They Come sobre as desventuras de um cantor de reggae e em 1975 participou de um episódio do programa Saturday Night Live. Em 1980 fez uma turnê pelo Brasil com Gilberto Gil que o tornou ainda mais popular no país. Durante a carreira, recebeu títulos, prêmios, participou de trilhas sonoras e documentários e se tornou reconhecido como um dos maiores nomes do reggae mundial. O artista faleceu em decorrência de uma pneumonia. 

domingo, 23 de novembro de 2025

4EVER: Udo Kier

14 de outubro de 1944 ✰ 23 de novembro de 2025

Udo Kierspe nasceu em um hospital alemão que foi bombardeado pouco depois de seu nascimento durante a Segunda Guerra Mundial. Crescido, começou a atuar nos anos 1960 chamando atenção pelos marcantes olhos azuis em seus primeiros trabalhos que logo ganharam as telas em filmes de terror. O reconhecimento internacional lhe permitiu fazer filmes com diretores de todo o mundo. Sendo assim, trabalhou com  Lars Von Trier, Dario Argento, Andy Warhol, Gus Van Sant, Werner Herzog, Win Venders, Alexander Payne e com o brasileiro Kleber Mendonça Filho, com quem filmou Bacurau/2019 e o recente O Agente Secreto/2025. Sua popularidade também lhe garantiu participações marcantes em clipes como em Depper and Deeper de Madonna (com quem também participou das polêmicas fotos do livro SEX em 1992).  Homossexual assumido com quase trezentas produções no currículo é o tipo de ator que se tornou cult ao longo do tempo, podendo participar de produções variadas como o tristíssimo O Pássaro Pintado (2019) ou a comédia Brilho Para a Eternidade (2021). A causa da morte ainda não foi divulgada. 

PL►Y: Depois da Caçada

Julia, Ayo e Andrew: camadas complicadas. 

Maggie (Ayo Edebiri) é uma estudante de doutorado da Universidade de Yale que tem como mentora a professora e Filosofia Alma Imhoff (Julia Roberts). Por serem bastante próximas, a doutoranda frequenta a casa e as festas na casa da docente. Em uma delas, embarca em uma discussão com Hank (Andrew Garfield) outro professor bastante popular do campus, naquela mesma noite, ele lhe dará carona e na manhã seguinte, Maggie conta à Alma que sofreu abuso sexual por parte de Hank e tomará as devidas providências contra ele. Alma fica visivelmente confusa com a acusação ao amigo e decepciona sua pupila ao não parecer acreditar no que houve. Acontece que a situação relatada por Maggie possui camadas que aos poucos serão sobrepostas à narrativa e, uma delas, envolve um segredo do passado da própria professora. Depois da Caçada é o novo filme dirigido por Luca Guadagnino, que já tornou o desejo em sua marca no cinema. Embora filme desde 1997, Hollywood se rendeu a ele com Me Chame Pelo Seu Nome (2017) o romance entre um adolescente e um homem mais velho, depois criou polêmica com um amor canibal em Até os Ossos (2022) e virou do avesso as expectativas de um triângulo amoroso em Rivais (2024). Agora ele poderia pontuar a questão do assédio e seus meandros no ambiente acadêmico, mas ele faz mais o que isso ao abarcar questões que gravitam em torno de questões sobre racismo, gênero e como isso se relaciona com os desejos dos personagens. Obviamente que existe uma tensão sexual entre Hank e Alma desde a primeira cena, assim como existe entre a mentora e sua pupila (e claramente o marido de Alma vivido por Michael Stuhlbarg percebe tudo isso como um espectador fascinado pelo desejo de todos que gravitam em torno de sua esposa). Só que Alma é uma personagem escorregadia e muita gente vai estranhar o roteiro deixar de lado a situação vivida por Maggie para revelar que o foco maior é sobre a culpa que Alma (e o nome não é por acaso) carrega faz tempo. Mesmo com toda sabedoria, toda trajetória e esperteza, aquela marca permanece em sua existência e talvez seus maiores embates com Maggie a desmontem por fazer com que vivencie novamente tudo o que ela preferia ter esquecido. Julia Roberts encara aqui uma personagem complicada, cheia de dores e nós complicados de desatar e, por conta disso, seu nome foi cotado para as premiações até que o filme decepcionasse nas bilheterias. O roteiro de estreia assinado pela atriz Nora Garrett toca em vários temas espinhosos e cria para si alguns becos sem saída e, ao mexer em grandes vespeiros, prefere se concentrar nas impressões de Alma e sua leitura dos fatos perante suas vivências. Essa decisão tira muito do impacto da personagem de Maggie e seu embate com Hank - que é apresentado como se fosse "resolvido" no meio da sessão. A pendenga maior é com Alma e quando as duas precisam acertar as contas. O filme tem uma baita dificuldade em resolver os sentimentos que existem entre as duas, de forma que o avanço temporal até a última cena não parecem satisfatórios para amarrar tudo o que se viu. No entanto, vale dizer que considerei Depois da Caçada um filme com vários personagens complexos e interessantes que são deixados pelo meio do caminho para Guadagnino fazer com Alma o que Todd Field fez com Lydia Tár (2022). No final das contas, Guadagnino demonstra aqui uma rigidez diferente de seus outros trabalhos (cheio de detalhes como os créditos iniciais que lembram dos filmes do cancelado Woody Allen, o título que faz referência a um certo filme dinamarquês ou as músicas de Morrissey) mas nada que prejudique Julia Roberts na construção de uma das mulheres mais complexas de sua carreira.

Depois da Caçada (After the Hunt / EUA - Itália - 2025) de Luca Guadagnino com Julia Robets, Ayo Edebiri, Andrew Garfield, Michael Stuhlbarg, Chloë Sevigny, Lio Mehiel, David Leiber, Thaddea Graham e Will Price. ☻☻ 

sábado, 22 de novembro de 2025

PL►Y: O Filho de Mil Homens

Santoro e Martines: pedaços de uma família. 

Lançado originalmente em 2011, o  livro O Filho de Mil Homens do português Valter Hugo Mãe colecionou elogios, fãs e a fama de ser aquele tipo de livro inadaptável para o cinema. A narrativa, cheia de simbologias e momentos classificados como "realismo fantástico" tornavam a tarefa complicada para qualquer um que se aventurasse a levar para a tela a vida dos personagens solitários em busca de conexões afetivas. Sorte que o brasileiro Daniel Rezende é talentoso o suficiente para dar conta da adaptação neste filme que produzido pela Netflix e que teve uma passagem rápida por algumas salas de cinema. Vale lembrar que Daniel foi indicado ao Oscar em sua estreia no cinema, como montador de Cidade de Deus (2002). Depois trabalhou em outros filmes de prestígio como Tropa de Elite (2007) e A Árvore da Vida (2011). Depois migrou para a direção com algumas séries e longas como Bingo - O Rei das Manhãs (2017) e dois filmes live action da Turma da Mônica (em 2019 e 2021). Diante de um currículo destes, pode-se dizer que Daniel Rezende tem um talento ímpar para construir narrativas das mais variadas, seja na ilha de edição ou atrás das câmeras. Seu trabalho em O Filho de Mil Homens deve ter sido o mais desafiador de sua carreira, mas resulta no mais belo enquanto cineasta. A forma como ele entrelaça os tempos e personagens é feita sem pressa, de forma contemplativa, mas sem perder de vista a conexão com o espectador que acompanha apreensivo tudo o que acontece na tela. Achei um deleite acompanhar Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador que vive solitário em sua casa perto do mar. Sua vontade de ser pai é tão grande (ou seria sua solidão?) que possui até um boneco de pano que trata como se fosse uma criança. Eis que um dia uma mulher lhe pede para tomar conta de Camilo (Miguel Martines), um menino que até então era criado pelo avô (Fernão Zobaran). A relação entre os dois começa aos tropeços, principalmente pelo fato de ambos vivenciarem realidades completamente diferentes até então (e que, por ser de verdade, o menino não está sempre sorrindo feito o boneco). Aos poucos os dois se aproximam, mas Camilo pergunta se seria possível ter uma mãe, já que nunca conheceu uma. Diante da indagação, seremos apresentados a personagens que irão se encaixar nessa história, entram em cena Francisca (a excelente Juliana Caldas), Antonino (Johnny Massaro) e Isaura (Rebeca Jamir). Cada um deles terá seu momento na trama e renderão momentos emocionantes que parecem levar a trama para outros caminhos, mas que convergem para a construção de uma família no sentido mais acolhedor do termo. Aos poucos as peças se encaixam, os personagens se conectam e o filme se torna um trabalho bastante maduro repleto de boas atuações (destaque ainda para Grace Passô em mais um trabalho memorável). Com belas locações, fotografia bem cuidada e montagem impecável, O Filho de Mil Homens garantiu sua vaga entre meus filmes favoritos do ano. Vale lembrar que a produção ficou entre os finalistas para indicação à uma vaga ao Oscar de melhor filme internacional e, caso fosse o escolhido, eu não ficaria aborrecido. 

O Filho de Mil Homens (Brasil/2025) de Daniel Rezende com Rodrigo Santoro, Miguel Martines, Juliana Caldas, Johnny Massaro, Rebeca Jamir, Grace Passô, Antonio Haddad, Lívia Silva, Inez Viana, Tuna Dwek, Caros Francisco e Fernão Zobaran.  

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

NªTV: O Lendário Martin Scorsese

Scorsese: uma trajetória em cinco episódios. 

Parece que foi de propósito, mas juro que foi coincidência que passei o final de semana assistindo a minissérie O Lendário Martin Scorsese da AppleTV para depois descobrir que o cineasta completa 83 anos na data de hoje! A minissérie mergulha na vida pessoal e na obra do diretor ao longo de seus 66 anos de carreira, desde os seus curtas até a elaboração de seu último filme. No primeiro episódio ele conta um pouco de sua infância e histórias de sua família, de como foi difícil crescer com asma e presenciando figuras famosas por seu envolvimento com a máfia local. Ao longo dos episódios ganham destaque seus casamentos, a importância da amizade com Robert De Niro, sua busca por encontrar sua voz autoral e perceber a necessidade de sempre ultrapassar limites em suas narrativas. Esta necessidade é evidenciada em seus trabalhos em Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990) e O Lobo de Wall Street (2013), mas está presente em várias de suas obras. Vemos aqui a dificuldade que foi tirar A Última Tentação de Cristo (1988) e Gangues de Nova York (2002) do papel - e se o primeiro precisou lidar com uma polêmica gigantesca (que o levou até a ser chamado de Anticristo) o segundo lhe rendeu outra parceria importante na carreira, com  o astro Leonardo DiCaprio que conseguiu viabilizar vários projetos posteriores. Achei muito interessante conhecer um pouco mais dos bastidores dos filmes,  especialmente quando a vida pessoal de Marty se mistura com as obras - lembra o caos de New York, New York (1977) em meio a crise do casamento e ter que lidar com o fracasso de ambos, sua identificação com o protagonista de Depois de Horas (1985) e o mal-estar sentido nas filmagens de Ilha do Medo (2010). Interessante notar como a violência era a marca mais latente da obra de Scorsese, mas que com o tempo ele conseguiu criar um universo ainda mais rico e de destaque junto ao cinema dos Estados Unidos. Sua pendenga para ganhar o Oscar (a frustação com Touro Indomável/1989 e Aviador/2004 que não vingaram perante a Academia) e como sua obra passou a ser revisitada e recebeu maior reconhecimento mostrando-se atemporais. Filmes que não foram bem de bilheteria como O Rei da Comédia (1982) e A Época da Inocência (1993)  hoje recebem o devido reconhecimento e se provam atemporais. A minissérie também conta com várias entrevistas que tornam o olhar sobre Scorsese mais transversal, dos depoimentos das filhas, da amiga montadora Thelma Schoonmaker, de amigos do porte se Spielberg, Spike Lee e estrelas como Sharon Stone, Daniel Day Lewis e Jodie Foster, nos fazem perceber um pouco mais do homem por trás da lenda do cinema. É perceptível ao longo dos episódios como aos poucos Scorsese se tornou uma pessoa mais leve e a vontade com a fama e suas aflições pessoais. Conduzido por Rebecca Miller, a minissérie se torna mais envolvente a cada episódio, mas fica evidente como os projetos mais recentes do cineasta são abordados de forma um tanto apressada nos episódios finais (e A Invenção de Hugo Cabret/2011 sequer é citado), mas nada que prejudique o panorama de um cineasta ousado que sempre se esquivou de julgar moralmente seus personagens e, por conta disso, colocou sua carreira em risco várias vezes. O programa termina com Scorsese filmando Assassinos da Lua das Flores (meu filme favorito de 2023), um épico que impressiona ainda mais quando nos damos conta da energia invejável deste senhor ao fazer cinema com a mesma paixão de quando filmava bonequinhos de papel quando era adolescente. Obrigado Mr. Absolute Cinema!

O Lendário Martin Scorsese (Mr. Scorsese / EUA - 2025) de Rebecca Miller com Martin Scorsese, Domenica Cameron-Scorsese, Robert De Niro, Brian De Palma, Steven Spielberg, Thelma Schoonmaker, Jay Cocks, Jodie Foster, Spike Lee, Daniel Day Lewis, Paul Schrader, Cathy Scorsese, Ari Aster, Sharon Stone, Leonardo Di Caprio e Isabella Rossellini. 

PL►Y: Emanuelle

Merlant: protagonista repaginada para o século XXI. 

O filme Emanuelle (1974) tornou-se um clássico do cinema erótico ao longo do tempo. A história era simples, uma modelo (vivida por Sylvia Kristel) viaja de Paris para Bangcoc, na Tailândia para se encontrar com o marido. Lá ela vive situações tórridas com vários homens e mulheres, assim como o esposo, sem culpas ou maiores problemas já que possuem um relacionamento aberto. A ideia mexeu com as fantasias de muita gente e gerou uma verdadeira franquia do cinema erótico que habitava as madrugadas das emissoras de televisão. A ideia de refazer este clássico  já rende publicidade de graça, mas quando você começa a escalar um elenco de prestígio, qualquer um começa a imaginar que é um filme a ser levado a sério. A responsabilidade de viver a protagonista ficou a cargo de Noémie Merlant, uma atriz competente que ficou conhecida por seu trabalho em Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) e por não ter medo de aparecer em cenas provocativas. Colocaram ao lado dela uma das melhores atrizes de Holywood, Naomi Watts, em um papel de destaque e escalaram dois jovens atores interessantes, Will Sharpe (da segunda temporada de White Lotus) e Jamie Campbell Bower (o Vecna de Stranger Things). Se o elenco é interessante,  o mesmo não se pode dizer do roteiro.  A diretora Audrey Diwan (do premiado O Acontecimento/2021) admite não ter visto o original, mas conhecer detalhes que o torna uma obra bastante complicada quando observada nos dias de hoje. Baseado em um romance homônimo de 1967, a nova versão opta por um caminho completamente diferente, que ainda que possua cenas de sexo (que considerei bastante discretas) tem maior interesse em explorar a complicada relação de sua protagonista com o prazer. Ela se envolve com um estranho em um avião, aceita o convite de ir para cama com um casal, se envolve amorosamente com uma jovem e flerta com homens que parecem estabelecer um jogo de sedução que nunca chega às vias de fato. Dirigir tramas voltadas para a sexualidade é sempre complicado, se for muito despudorado corre o risco de ser vulgar, se for muito cerebral se torna frio e Diwan parece estar mais a vontade com a segunda opção. A Emanuelle da nova versão é enviada a trabalho para Hong Kong para avaliar um hotel de luxo. Ela aproveita a oportunidade para vivenciar algumas aventuras sexuais, mas entre as obrigações e a busca pelo prazer alguma coisa ficou faltando pelo meio do caminho para se tornar envolvente. É interessante ver a protagonista conversando com bastante franqueza sobre suas relações sexuais, assim como vê-la retratada como uma mulher independente e bem resolvida, mas fico imaginando que o filme receberia alguma atenção, seja do elenco, produtores ou público se não evocasse o nome de uma personagem tão famosa no gênero. Não que eu considere o filme original (o qual nunca assisti) uma obra-prima, mas acho difícil que cinquenta anos depois alguém ainda lembre deste aqui. 

Emanuelle (França/EUA - 2024) de Audrey Diwan com Noémie Merlant, Naomi Watts, Will Sharpe, Jamie Campbell Bower, Chacha Huang, Adam Pak e Hugh Tran. 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Pódio: Wagner Moura

Bronze: o bombeiro distante. 

3º Praia do Futuro (2014) Nascido na cidade de Salvador na Bahia em 1976, Wagner Maniçoba Moura estreou como ator nos anos 1990 e 98 e começou a chamar cada vez mais atenção com seu talento entre dramas e comédias no teatro, no cinema e em programas de televisão. Ele já era bastante conhecido do público por conta de seus trabalhos no cinema e nas novelas quando enveredou por uma polêmica com este filme de Karim Aïnouz em que vive um bombeiro que se apaixona por um homem estrangeiro e muda os rumos de sua vida. As cenas mais tórridas e de nudez pegaram o público de surpresa e o bom trabalho do ator ficou ofuscado. Perante tanta confusão, Wagner decidiu investir cada vez mais na carreira internacional. 

Prata: o homem perseguido. 
2º O Agente Secreto (2025) Wagner sentiu que o clima estava cada vez mais estranho no Brasil e foi investir em sua carreira internacional. Participou de filmes e séries produzidas nos Estados Unidos e recebeu o convite de Kleber Mendonça Filho para interpretar um papel feito sob medida para ele. Na pele de Marcelo, um personagem que chega em Recife para se esconder de perseguições nos idos de 1977, Wagner tem a difícil tarefa de carregar tensão em cada cena do seu personagem sem ter que gritar ou agredir alguém. Seu trabalho é tão marcante (e se torna ainda mais quando encarna outro personagem no último ato do filme) que levou para casa o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes. O brasileiro é apontado por vários críticos como provável indicado ao Oscar de melhor ator em 2026. 

Ouro: o icônico capitão. 
1º Tropa de Elite (2007) Desculpa, Wagner. Sei que você já fez muito papel interessante, muito filme bom, mas nada se compara à popularidade e toda a complexidade que gira em torno do icônico Capitão Nascimento. O filme premiado no Festival de Berlim pode até ser acusado de fascista até hoje, mas a realidade apresentada por ele ainda se faz presente nos telejornais (basta lembrar de notícias recentes ocorridas no Rio de Janeiro). O ator de transmuta em um tipo totalmente diferente dos demais vividos em sua carreira, um personagem que pode ser visto como um símbolo da truculência policial, mas que também representa um tanto da indignação perante a situação do tráfico e da violência no Brasil, tanto que o a continuação aprofunda ainda mais algumas questões que já aparecem neste aqui. 

Na Tela: O Agente Secreto

Wagner: melhor ator em Cannes rumo ao Oscar.  

Marcelo (Wagner Moura) viaja por horas nas estradas empoeiradas de Pernambuco em 1977. Ele para num posto de gasolina e se depara com um corpo que já faz dois dias que está ao relento. O atendente diz que no período de carnaval ninguém virá buscar o corpo. Eis que surge uma viatura e os dois policiais estão mais preocupados com Marcelo do que com o corpo que está no chão faz alguns dias. Some isso aos jornais que noticiam a contagem de mortos naquele carnaval e não fica difícil perceber que a vida vale pouco no período em que se passa O Agente Secreto. A partir de certo ponto, teremos clareza dos motivos que levam Marcelo a procurar a casa de Dona Sebastiana (a maravilhosa Tânia Mara) que abriga pessoas com diferentes histórias mas com algo em comum. Aos poucos conhecemos um pouco mais de Marcelo e de sua história e um tanto da realidade, com direito até a alguns elementos do que antes se chamaria de realismo fantástico - um gato de duas cabeças (uma analogia às identidades duplas dos moradores da casa?), as histórias folclóricas de uma certa perna cabeluda (evocação de um moralismo latente no calor dos trópicos?) que se choca com uma dura realidade, como a perna humana encontrada dentro da barriga de um tubarão. Falando em Tubarão, fala-se muito do filme de Spielberg durante a narrativa, especialmente por conta do filho de Marcelo, Fernando (Enzo Nunes),  que sonha em ver o filme que lhe tiraria o sono. O filme de Spielberg é apenas uma das referências pop que Kleber Mendonça Filho utiliza para emoldurar o período da trama, das fotos de artistas contemporâneos na abertura, passando pela trilha sonora, pôsteres e reações de um cinema lotado ao ver A Profecia, o filme faz da cena cultural da época um elemento importante da reconstituição impecável que auxilia o espectador a mergulhar naquela atmosfera que oscila entre o acolhedor e o ameaçador. Kleber deixa claro como as pesquisas para seu longa anterior, Retratos Fantasmas (2023) ajudou a construir a ambientação e a história do filme que, assim como Ainda Estou Aqui (2024), olha para um outro lado da repressão vivenciada nos anos 1970, afinal, o motivo que coloca Marcelo entre pessoas procuradas não é ter cometido um crime, mas algo muito mais pessoal e mesquinho, o que esbarra com o submundo de uma realidade que já era em si assustadora. Assim como no filme de Walter Salles, protagonista aqui não tem grandes momentos de explosão emocional, Wagner Moura constrói um protagonista contido, desde o início preocupado com os acontecimentos que deverão leva-lo ao inevitável desfecho. Este caráter do personagem tão bem construído pelo ator lhe rendeu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes e o coloca na lista de apostas para o Oscar do ano que vem (lembrando que o filme foi indicado pelo Brasil para disputar uma vaga na categoria de filme internacional). O filme tem fortes chances, impulsionado também pelos prêmios de direção e da imprensa recebidos em Cannes, de fato, este é o filme mais bem estruturado e com mais camadas a serem exploradas na obra de Kleber. A diversidade do elenco em sintonia perfeita e a trama, que ainda destaca o papel das universidades e suas pesquisas (isso mesmo), se torna bastante envolvente na construção deste thriller político. Não posso deixar de falar do final, um tanto controverso e anticlímax mas bastante condizente com um filme sobre as fricções entre histórias e memórias, particularmente fiquei emocionado em ver que o último ato é dedicado ao menino Fernando crescido (que insere outro tema importante ao filme: a identidade). O Agente Secreto  pode até não trazer o segundo Oscar para o Brasil, mas tem grande habilidade em nos envolver em uma viagem no tempo e pelo Brasil em suas contradições. 

O Agente Secreto ( Brasil - 2025) de Kleber Mendonça Filho com Wagner Moura, Tânia Mara, Maria Fernanda Cândido, Hermila Guedes, Gabriel Leone, Alice Carvalho, João Vitor Silva, Thomas Aquino, Marcelo Valle, Carlos Francisco, Luciano Chirolli, Roney Villela e Udo Kier.  

domingo, 9 de novembro de 2025

PL►Y: Frankenstein

Elordi: rapaz esforçado na pele da criatura. 

Alguns diretores parecem ter nascido para alguns projetos. Senti isso no ano passado com Nosferatu de Robert Eggers e agora em 2025 a coisa se repete com Guillermo Del Toro com a nova versão de Frankenstein feita para a Netflix. Vi uma entrevista recente em que o diretor relatou que ao ver o filme clássico de 1931 dirigido por James Whale (cineasta retratado magnificamente em Deuses e Monstros/1998) e estrelado por Boris Karloff  e, ainda jovenzinho, decidiu que dirigiria aquela história. O tempo passou, os sucessos vieram, os prêmios também e Del Toro finalmente conseguiu realizar seu sonho. Embora o personagem tenha aparecido em releituras recentes (Frankenstein Entre Anjos e Demônios/2014 e Victor Frankenstein/2015) parece que a última versão do clássico de Mary Shelley que foi levado a sério foi aquele de 1994 estrelado por Robert De Niro e dirigido por Kenneth Branagh. Branagh que estava em alta por suas versões shakesperianas caprichou no visual do filme e da criatura (indicado ao Oscar de maquiagem), mas o filme estava longe de ser inesquecível. Já o que vemos nas mãos de Del Toro é uma concepção mais preocupada com a psiquê do criador e da criatura, com destaque para diversos momentos em que nos perguntamos quem é o monstro da história. Victor Frankenstein (Oscar Isaac) é apresentado como um cientista egocêntrico, tão genial quanto traumatizado pela morte da mãe. Sua revolta é o que lhe motiva a driblar a morte e gerar seu experimento mais ambicioso: devolver a vida a um corpo morto. A tarefa não é fácil e digna de descrédito entre a comunidade científica do século XIX. No entanto, a partir da criação de um experimento composto de partes "reaproveitáveis" de diversos corpos, Victor terá sucesso em seu experimento ao trazer à vida sua criatura (vivida com empenho por Jacob Elordi), mas visivelmente não sabe o que fazer com ela para além de usa-la para alimentar seu ego. Conforme a criatura demonstra ter suas próprias vontades e anseios, Victor a considera fora de controle e é capaz de tomar decisões drásticas por conta disso. Embora o filme invista bastante tempo na dinâmica entre os dois personagens, ainda consegue espaço para destacar outros personagens, como o irmão de Victor, William (Felix Kammerer) e sua noiva, Elizabeth (Mia Goth), além do tio Harlander (Christoph Waltz) capaz de bancar as sandices de Victor. Em duas horas e meia, Del Toro capricha na ambientação de cada cena e deixa claro seu carinho por uma das criaturas mais famosas do cinema e da literatura. Elordi faz um belo trabalho em cena e compensa a maquiagem estranha que o faz parecer como um dos engenheiros de Prometheus (2012), sorte que conforme o filme avança a imagem da criatura parece ganhar uma identidade estética diferente, ainda que pareça mais sombria, ela funciona muito bem no contraste de alguém consciente dos seus desejos perante um mundo que não o compreende. Considerei que em alguns momentos o filme peca pelo exagero (a tentação de transformar a criatura em um super-herói, os figurinos de Elizabeth...), mas não chega a comprometer o resultado final. Não é por acaso que o desfecho é o mais esperançoso (e bonito) que o personagem já recebeu no cinema.  Não sei se as premiações irão se encantar com o resultado, mas considero que Del Toro ficou bastante feliz com o resultado (assim como seus fãs). 

Frankenstein (EUA - México / 2025) de Guillermo Del Toro com Oscar Isaac, Jacob Elordi, Mia Goth, Christoph Waltz, Felix Kammerer, Lars Mikkelsen, David Bradley, Nikolaj Lie Kass e Ralph Ineson.  

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

PL►Y: Balada de Um Jogador

Colin: apostador no purgatório da consciência.  

Pode se dizer que o alemão Edward Berger é um dos diretores que recebeu mais destaque dos últimos anos. Embora dirija filmes desde os anos 1990, foi somente em 2022 que foi descoberto por Hollywood com a nova versão de Nada de novo no Front (2022), que foi indicado a nove categorias no Oscar e levou quatro estatuetas para casa (filme internacional, trilha sonora, fotografia e design de produção). Neste ano, outro filme dirigido por ele caiu nas graças do Oscar: Conclave. O longa foi indicado em oito categorias e levou para casa o de roteiro adaptado. Após dois triunfos era de se esperar que o novo filme do diretor já fosse apontado a estar na lista de favoritos da Academia na próxima premiação e, com isso, o olho da Netflix cresceu em torno do projeto. No entanto, Balada de Um Jogador pegou muita gente de surpresa ao ser um projeto bem diferente dos anteriores. A começar pelo seu tom quase cômico (ou seria apenas, jocoso?). O filme gira em torno de Lorde Doyle (Colin Farreell), um apostador de alto risco que passa um tempo em Macau, na China. Hospedado em hotéis e apostando o que tem e o que não tem nas jogatinas, Doyle se aproxima de uma funcionária Dao Ming (Fala Chen) e de outros jogadores excêntricos enquanto desconfia que é perseguido por uma mulher desconhecida (Tilda Swinton). Se nos jogos ele considera ter sorte, por outro lado, o período de pagar por todas as contravenções que fez na vida parece ter chegado. Doyle vai descer até o purgatório, mas ainda terá sorte suficiente para retornar de lá? Embora eu considere o roteiro um tanto truncado em suas intenções, Colin Farrell consegue manter nossa atenção ao longo da narrativa, sua performance somada ao visual do filme torna a produção em um passatempo interessante, mas sem fôlego para ser levado a sério nas premiações. Considero a estética do filme bastante instigante em sua mistura de luzes e ambientações degradantes, além disso considerei o trabalho de figurino um verdadeiro achado ao destacar a identidade de seus personagens ao longo da narrativa. Para quem estranhou esta curva na cinematografia de Berger, vale a pena procurar outro projeto do diretor que foi lançado pouco antes das premiações caírem de amor por ele, a minissérie Patrick Melrose (2018) estrelada por Benedict Cumberbatch. Acredito que é possível estabelecer várias associações entre este filme o programa, o que torna bastante compreensível o interesse do diretor pelo roteiro de Rowan Joffe baseado no livro de Lawrence Osborne e seu personagem desajustado. 

Balada de Um Jogador (Ballad of a Small Player / Reino Unido - Alemanha / 2025) de Edward Berger com Colin Farrell, Fala Chen, Tilda Swinton, Jason Tobin, Margaret Cheung, Jason Tobin, Alan K. Chang e Alex Jennings. ☻☻

PL►Y: Faça Ela Voltar

Wren e Hawkins: totalmente perturbador. 

 O luto deve ser um dos sentimentos mais devastadores da raça humana, talvez por isso o terror invista tanto na temática. Além de provocar uma identificação quase imediata na plateia, o tema ainda serve para transitar naquela linha tênue entre a vida e a morte que é sempre associada ao gênero. Os irmãos australianos Danny e Michael Phillipou já haviam transitado pela temática no filme de estreia, o ótimo Fale Comigo que se tornou uma das grandes surpresas de 2023. Os manos que ganharam fama na terra natal por conta de vídeos para o Youtube, deixam claro mais uma vez que entendem do riscado, especialmente quando precisam construir uma narrativa assustadora. Não, não se trata daquele filme com jumpscare ou trilha sonora grotesca, a intenção dos diretores é tornar a história insuportável aos poucos até que todas as emoções e intenções se misturem e deixe o espectador simplesmente transtornado com o que vê na tela. O filme começa com alguns registros em vídeo que são arrepiantes por si só, mas eles servem apenas para introduzir o horror a que os personagens que conheceremos a seguir serão submetidos. Andy (Billy Barratt) e Piper (Sora Wong) acabam de perder o pai. Os dois são menores de idade e, embora Billy esteja prestes a completar dezoito anos e consiga a guarda da irmã, ele ainda precisa esperar três meses sob a guarda de alguém considerado apto para a tarefa. O alguém considerado apto, ou melhor, apta é Laura (Sally Hawkins). No entanto, basta ver as primeiras cenas para perceber que existe algo fora do eixo naquela mulher e naquela casa. A começar por sua alternância simpatia e total rejeição à presença de Andy. A coisa piora quando eles conhecem o menino Oliver (Jonah Wren Phillips), que não fala e tem um comportamento estranho desde que a filha filha cega de Laura faleceu. Piper também é cega e isso faz com que algumas coisas que aconteçam ali não sejam vistas e ela continue imersa no desejo de que aquela casa seja acolhedora. Os Phillipou constroem um filme que se torna bastante opressor e por mais que o espectador já saiba o que irá acontecer, eles costumam reforçar a todo instante as sinistrices que se escondem por ali. Talvez por ter este caráter repetitivo o filme se torne um tanto cansativo, mas nada que impeça que o elenco mantenha a tensão a cada segundo perante a câmera. Vale registrar que Sally Hawkins apresenta aqui mais uma grande atuação, sendo bastante diferente da que estamos acostumados a ver em sua carreira. Por outro lado, o trio de adolescentes é realmente surpreendente. Sora Wong imprime grande vulnerabilidade à sua personagem, mas se torna realmente tocante pelo seu desejo de que tudo se ajeite da melhor forma possível após tantos problemas. O pequeno Jonah Wren também arrasa ao viver o personagem mais estranho do filme - levando em conta que ele tem doze anos e este é seu quarto trabalho como ator, o que ele faz aqui se torna ainda mais assustador e prodigioso. No entanto, a estrela da vez vai para Billy Barratt que está perfeito como o garoto que já sofreu nas mãos do pai e que precisa lutar contra seus próprios fantasmas para conseguir seguir em frente. Faça Ela Voltar é um terror que se alimenta do luto, de loucura e de um tanto de... amor (?!) e, talvez por isso mesmo, seja tão perturbador. 

Faça Ela Voltar (Bring Her Back / Austrália - 2025) de Danny e Michael Phillipou com Sally Hawkins, Billy Barratt, Sora Wong, Jonah Wren Phillips, Stephen Phillips e Sally Anne-Upton. 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

PL►Y: Casa de Dinamite

Fergguson: especialistas de plantão.  

A Netflix costuma guardar seus trunfos para temporada de prêmios para o final do ano, tudo por conta do cobiçado Oscar de melhor filme que ela deseja há tempos (e foi lesado quando O Ataque dos Cães/2021 de Jane Campion foi derrotado por CODA). Em 2025 a gigante do streaming caprichou, guardando produções de cineastas que são queridos da Academia como Guillermo Del Toro (que lança seu Frankenstein amanhã), Edward Berger (em breve comento Balada de Um Jogador), Noah Baumbach (do inédito Jay Kelly) e este assinado por Kathryn Bigelow. Vale lembrar que Kathryn fez história ao se tornar a primeira mulher ao receber o Oscar de melhor direção com Guerra ao Terror/2009 e chegou muito perto de outra indicação com A Hora Mais Escura/2012. Faz um tempo que a cineasta não cai no radar da Academia, mas suas ambições só foram ampliadas com o tempo, tanto que ela apostava em Casa de Dinamite como seu grande retorno às premiações. O filme se passa em um dia aparentemente tranquilo em que o governo dos Estados Unidos percebe que um míssil nuclear foi lançado do Oceano Pacífico com a intenção de atingir o território do país. Quem lançou o míssil? Que local será atingido? Diante das incertezas, a narrativa acompanha um grupo de funcionários governamentais que tentam cumprir medidas para evitar que o pior aconteça. A trama se passa em tempo real e acompanha o andamento dos protocolos necessários a este tipo de situação, destacando as atitudes de diversos funcionários até a postura a ser adotada pelo presidente (vivido aqui por Idris Elba). No entanto, orquestrar tensão com base em diálogos e protocolos técnicos não são garantia de uma trama eletrizante que prenda a atenção. Quem curte políticas governamentais de defesa vai curtir, mas o resto da população mundial não deve ver muitos atrativos no filme que possui mais de uma dezena de personagens mas que não conseguem despertar qualquer empatia da plateia, talvez porque são construídos da forma mais óbvia possível com suas famílias correndo perigo e vendo o fim próximo. É a premissa que já vimos em qualquer filme catástrofe até aqui, mas a diferença é que não existem efeitos especiais mirabolantes ou cenas de ação, só especulações sobre o que irá acontecer e o que deve ser feito. Sei que os envolvidos devem ter realizado uma pesquisa árdua para dar veracidade ao material que vemos por aqui, mas faltou tornar isso envolvente.

 Casa de Dinamite (A House of Dynamite / EUA -2025) de Kathryn Bigelow com Rebecca Ferguson, Idris Elba, Jared Harris, Gabriel Basso, Tracy Letts, Greta Lee, Anthony Ramos, Jason Clarke e Kaitlyn Dever.