Marcelo (Wagner Moura) viaja por horas nas estradas empoeiradas de Pernambuco em 1977. Ele para num posto de gasolina e se depara com um corpo que já faz dois dias que está ao relento. O atendente diz que no período de carnaval ninguém virá buscar o corpo. Eis que surge uma viatura e os dois policiais estão mais preocupados com Marcelo do que com o corpo que está no chão faz alguns dias. Some isso aos jornais que noticiam a contagem de mortos naquele carnaval e não fica difícil perceber que a vida vale pouco no período em que se passa O Agente Secreto. A partir de certo ponto, teremos clareza dos motivos que levam Marcelo a procurar a casa de Dona Sebastiana (a maravilhosa Tânia Mara) que abriga pessoas com diferentes histórias mas com algo em comum. Aos poucos conhecemos um pouco mais de Marcelo e de sua história e um tanto da realidade, com direito até a alguns elementos do que antes se chamaria de realismo fantástico - um gato de duas cabeças (uma analogia às identidades duplas dos moradores da casa?), as histórias folclóricas de uma certa perna cabeluda (evocação de um moralismo latente no calor dos trópicos?) que se choca com uma dura realidade, como a perna humana encontrada dentro da barriga de um tubarão. Falando em Tubarão, fala-se muito do filme de Spielberg durante a narrativa, especialmente por conta do filho de Marcelo, Fernando (Enzo Nunes), que sonha em ver o filme que lhe tiraria o sono. O filme de Spielberg é apenas uma das referências pop que Kleber Mendonça Filho utiliza para emoldurar o período da trama, das fotos de artistas contemporâneos na abertura, passando pela trilha sonora, pôsteres e reações de um cinema lotado ao ver A Profecia, o filme faz da cena cultural da época um elemento importante da reconstituição impecável que auxilia o espectador a mergulhar naquela atmosfera que oscila entre o acolhedor e o ameaçador. Kleber deixa claro como as pesquisas para seu longa anterior, Retratos Fantasmas (2023) ajudou a construir a ambientação e a história do filme que, assim como Ainda Estou Aqui (2024), olha para um outro lado da repressão vivenciada nos anos 1970, afinal, o motivo que coloca Marcelo entre pessoas procuradas não é ter cometido um crime, mas algo muito mais pessoal e mesquinho, o que esbarra com o submundo de uma realidade que já era em si assustadora. Assim como no filme de Walter Salles, protagonista aqui não tem grandes momentos de explosão emocional, Wagner Moura constrói um protagonista contido, desde o início preocupado com os acontecimentos que deverão leva-lo ao inevitável desfecho. Este caráter do personagem tão bem construído pelo ator lhe rendeu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes e o coloca na lista de apostas para o Oscar do ano que vem (lembrando que o filme foi indicado pelo Brasil para disputar uma vaga na categoria de filme internacional). O filme tem fortes chances, impulsionado também pelos prêmios de direção e da imprensa recebidos em Cannes, de fato, este é o filme mais bem estruturado e com mais camadas a serem exploradas na obra de Kleber. A diversidade do elenco em sintonia perfeita e a trama, que ainda destaca o papel das universidades e suas pesquisas (isso mesmo), se torna bastante envolvente na construção deste thriller político. Não posso deixar de falar do final, um tanto controverso e anticlímax mas bastante condizente com um filme sobre as fricções entre histórias e memórias, particularmente fiquei emocionado em ver que o último ato é dedicado ao menino Fernando crescido (que insere outro tema importante ao filme: a identidade). O Agente Secreto pode até não trazer o segundo Oscar para o Brasil, mas tem grande habilidade em nos envolver em uma viagem no tempo e pelo Brasil em suas contradições.
O Agente Secreto ( Brasil - 2025) de Kleber Mendonça Filho com Wagner Moura, Tânia Mara, Maria Fernanda Cândido, Hermila Guedes, Gabriel Leone, Alice Carvalho, João Vitor Silva, Thomas Aquino, Marcelo Valle, Carlos Francisco, Luciano Chirolli, Roney Villela e Udo Kier. ☻☻☻☻
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