Brichta: palhaço hardcore.
Acho que o público ficou surpreso quando indicaram Bingo - O Rei das Manhãs para concorrer a uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro em 2018. É importante saber que para além das qualidades do filme (que fez sucesso de público por aqui) existem alguns fatores que pesam ainda mais nesta escolha estratégica. O primeiro é que trata-se da estreia como cineasta de Daniel Rezende, editor que já foi indicado ao Oscar pela montagem sensacional de Cidade de Deus/2002 e já participou da produção de vários filmes internacionais dirigidos por Walter Salles (Diários de Motocicleta/2004 entre outros), Fernando Meirelles (além do hit de 2002, também foi responsável de Ensaio sobre a Cegueira/2008), José Padilha (o remake de Robocop/2014) e tem no currículo até um ganhador da Palma de Ouro em Cannes que concorreu ao Oscar de melhor filme (o último grande filme de Terrence Mallick: A Árvore da Vida/2011), ou seja, o rapaz tem apelo de sobra para sensibilizar o voto da Academia. Por outro lado, o personagem que inspira o filme, o palhaço Bozo foi líder de audiência por décadas nos Estados Unidos, o que já cria uma referência para os gringos da época que o filme retrata, também colabora para esta empatia a presença de um personagem americano - mas este é achincalhado no filme, o que aponta para o maior desafio de Bingo: será que os votantes mais puritanos da Academia vão entender o humor do filme? Afinal, muita gente ainda fica chocada em descobrir que o primeiro homem que interpretou o famoso palhaço no Brasil tinha carreira em filmes de pornochanchadas, fumava, bebia e cheirava antes e depois de entrar no palco e interagir com crianças (isso sem falar no seu envolvimento orgias e mulherada em geral - incluindo uma famosa deliciosamente interpretada por Emanuelle Araújo que, diferente dos outros personagens não teve o nome trocado no roteiro). Talvez os mais sensíveis não curtam o filme, mas todo o resto vai gostar de ver Vladimir Brichta dando o sangue (literalmente) por Augusto Mendes, um ator ambicioso cuja carreira nunca decolou até quebrar as regras do formato e perder as estribeiras num programa infantil. Neste ponto vem o que o filme tem mais interessante, quem cresceu nos anos 1980 vai identificar como naqueles anos o politicamente correto simplesmente não existia e, pela audiência, mesmo num programa infantil valia tudo - até colocar o clássico "Serão Extra" de Doutor Silvana & Cia para fazer as crianças dançarem (o que sinaliza bem como a cultura pop era, digamos, surpreendente). Como diretor, Daniel Rezende realiza uma estreia promissora, que mistura humor, drama e não tem medo de ficar pesado quando o roteiro pede. Em sua empreitada conta com um ator principal inspirado, que consegue retratar bem o desequilíbrio do personagem em sua inegável ambição sabotada pelo próprio apetite pela autodestruição. Vale destacar ainda o grupo de coadjuvantes de respeito (destaque para Leandra Leal na pele da diretora do programa, que para os que conhecem a trajetória do verdadeiro Bozo tupiniquim imagina o que irá acontecer), o colorido, a montagem esperta (e não poderia ser diferente) e a trilha sonora animada. A reconstituição faz Bingo funcionar como uma viagem no tempo - e nos faz perceber como o mundo ficou bem mais chato no século XXI.
Bingo - O Rei das Manhãs (Brasil - 2017) de Daniel Rezende, com Vladimir Brichta, Leandra Leal, Ana Lúcia Torre, Cauã Martins, Augusto Madeira, Soren Hellerup, Tainá Muller, Domingos Montagner e Pedro Bial. ☻☻☻☻
Nenhum comentário:
Postar um comentário