Fernandinha e Fernando: perdidos em uma terra em branco e preto. |
Durante este Ciclo Verde e Amarelo ouvi tanta gente falando sobre Ainda Estou Aqui (2024), a nova parceria de Fernanda Torres e Walter Salles que foi inevitável lembrar dos outros longas que fizeram juntos. Antes do longa que estreou no Festival de Veneza e saiu de lá com o roteiro premiado, os dois já se encontraram para realizar O Primeiro Dia (1999) e este Terra Estrangeira (1996), o filme que se tornou uma guinada na carreira de Walter Salles. Salles começou a carreira como diretor de projetos para a televisão e estreou em longa-metragem com o criticado A Grande Arte (1991), adaptação da obra de Rubem Fonseca que foi acusada de se render à uma estética hollywoodiana com seu elenco internacional (tinha o novaiorquino Peter Coyote numa adaptação gringa do detetive Mandrake e o turco Tchéky Karyo como o misterioso Hermes). Ainda que muitos observassem ali um adeus para a estética do cinema novo e um aceno para um maior cuidado visual, o filme foi um fracasso. É interessante perceber que tempos depois, a câmera do diretor se volta para brasileiros à deriva em uma terra que não os pertence. A trama é ambientada durante o governo Collor, mais precisamente naquele momento fatídico em que o primeiro presidente eleito pelo voto direto em 30 anos no Brasil resolveu confiscar a poupança da população que vivia com uma inflação de 84% ao mês. Havia um certo tom de desespero naquela medida e o filme deixa isso perceptível com os fatos que acontecem na vida do jovem Paco (Fernando Alves Pinto), que por anos ouviu a mãe (Laura Cardoso) sonhando rever a terra de sua família na Espanha. Paralelo a isso, conhecemos Alex (Fernanda Torres), brasileira que trabalha como garçonete em Portugal e vive com Miguel (Alexandre Borges), um músico envolvido com contrabando. Eis que um dia, o desamparado Paco conhece o misterioso Igor (Luís Mello), que banca a viagem do rapaz à Europa, mas, para isso, ele precisa entregar um pacote para Miguel em Portugal e... nada sai como o esperado. Há novamente aqui muito de inspiração no film noir, assim como no longa anterior de Walter, mas desta vez, ele utiliza este deslocamento geográfico que recai sobre os personagens para falar um tanto sobre um deslocamento da própria identidade. Existem diálogos ótimos como aquele em que Paco escuta que Portugal não é Terra de se achar ninguém, mas uma terra para perder alguém, até a si mesmo. É sobre isso. Embora eu considere o romance de Alex e Paco um tanto forçado (podem dizer que ocorre pela identificação de ter alguém da mesma origem por perto, mas não acho convincente a forma apressada como tudo acontece), Terra Estrangeira sempre fala de algo mais do que contrabando e perseguições. É sobre a venda de um passaporte que te impossibilita de voltar para casa porque você não tem mais dinheiro para viver em uma terra que lhe parecia promissora. É sobre procurar as origens de sua família em uma terra distante porque a sua já parece não ter importância. É sobre procurar algo que dê sentido ao que se é. Tudo isso se torna pretexto para Walter demonstrar todo seu talento na condução dos atores e construção de imagens como aquela do barco encalhado deteriorando no litoral (que serviu de inspiração para toda história do filme) ou daquela estrada sem fim ao som de Vapor Barato que nunca cortou tanto o coração, seja na voz de Gal Costa ou de Fernandinha. Considerando um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos, o filme fincou uma produtiva parceria entre Walter e a codiretora Daniela Tomas, que já era reconhecida pelo seu trabalho no teatro. O filme também marca a parceria de Salles com o roteirista Marco Bernstein, que anos depois escreveu Central do Brasil (1998) ao lado do (hoje novelista) João Emanuel Carneiro. Central do Brasil de Walter Salles foi o último filme brasileiro a concorrer ao Oscar de Filme Estrangeiro e Walter Salles pode levar o Brasil mais uma vez para a disputa. Oremos.
Terra Estrangeira (Brasil - Portugal / 1996) de Walter Salles e Daniela Tomas com Fernanda Torres, Fernando Alves Pinto, Laura Cardoso, Alexandre Borges, Luís Melo, Tchéky Karyo e João Lagarto. ☻☻☻☻
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