segunda-feira, 29 de junho de 2020

4EVER: Carl Reiner

20 de março de 1922 ✰ 29 de junho de 2020

Carl Reiner nasceu no Bronx em Nova York, filho de imigrantes judeus da Romênia e da Hungria. Ele estudou na School of Foreign Service e na Universidade de Georgetown, além de ter servido ao exército dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, Carl se tornou ator, cineasta, produtor, escritor, comediante e um dos pioneiros da comédia televisiva. Sua carreira como ator teve início no final dos anos 1940, mas foi como diretor na década seguinte que se tornou mais conhecido mundialmente, especialmente por suas parcerias com Steve Martin, iniciada com o hilariante O Panaca (1979), seguido por Cliente Morto Não Paga (1982) e Um Espírito Baixou em mim (1984). Seu último longa foi  Guerra dos Sexos/1997 estrelado por Bette Midler e desde então se concentrou mais em participações como ator e dublador. Carl Reiner foi casado com a atriz Stelle Reiner (de 1943 até o falecimento dela em 2008) e teve três filhos, entre eles o também diretor Rob Reiner. Carl foi foi premiado com onze prêmios Emmy e faleceu de causas naturais.

domingo, 28 de junho de 2020

PL►Y: Ligadas pelo Desejo

Jennifer e Gina: casal inesquecível. 

Antes de realizar a trilogia Matrix (1999-2003), as irmãs cineastas Wachowski eram completamente desconhecidos do grande público. Ainda identificadas como Andy e Larry, tinham planos ambiciosos que só poderiam ser bancados por um grande estúdio. Porém, a ausência de experiência fez com que tivessem que mostrar serviço com um filme de estreia. O provocador Ligadas pelo Desejo é o meu filme favorito da dupla (pois é, não sou muito fã de Matrix que em breve terá seu quarto filme) principalmente por demonstrar maturidade e segurança incomuns para cineastas estreantes. Além disso, ousou colocar o protagonismo em duas mulheres que se apaixonam e subvertem a ordem das coisas ao enfrentarem um bando de mafiosos sanguinários. Tudo começa quando Corky (Gina Gershon) se torna responsável por reformar um apartamento. Ela conhece Violet (Jennifer Tilly) no elevador e apenas os olhares já servem para deixar claro que entre as duas soltam faíscas. Violet é casada com  Cesar (Joe Pantoliano), homem envolvido com a máfia mas que não consegue satisfazer sua esposa. O roteiro deixa claro que Violet está um pouco assustada com as situações que presencia em casa e está ansiosa para se livrar do marido desequilibrado e seus amigos mal encarados. Ela não demora muito para se envolver com Corky e se tornam cúmplices no roubo de alguns milhões de dólares que, acidentalmente, foram parar nas mãos de Cesar. Para o plano funcionar, dependerá do poder de manipulação de Violet e um bocado de coragem das duas. Ligadas pelo Desejo cria cenas de grande sensualidade com base em duas atrizes que (infelizmente) nunca receberam a atenção que mereciam em Hollywood. Jennifer Tilly ficou muito conhecida por sua dublagem de A Noiva de Chucky (1998), que lhe rendeu fãs fieis e que sempre cobram o retorno à franquia. Pouca gente lembra, mas Jennifer foi indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por seu trabalho em Tiros na Broadway (1994) - o qual perdeu para sua colega de elenco, Dianne Wiest. A indicaçãos serviu para calar a voz dos críticos que consideravam sua voz insuportável. Aqui ela deixa sua voz aguda mais rouca e sexy para completar uma caracterização que remete às divas femme fatales de clássicos noir. Já Gina Gershon se tornou a grande sobrevivente daquela tosqueira chamada Showgirls (1996), ela fez filmes com diretores importantes como John Woo (A Outra Face/1997) e Paul Auster (O Mistério de Lulu/1998) e continua trabalhando bastante, embora esteja livre do rótulo de símbolo sexual de lábios bastante peculiares. A química impressionante entre as duas compõe a alma do filme que capricha na construção de ângulos e atmosfera noir, tem bom ritmo, violência e uma direção de arte que prioriza o uso de branco, preto e detalhes em vermelho. O resultado é um suspense envolvente, bem construído e que em 1996 colocou a cara da dupla Wachowski à tapa. Aos poucos o filme foi se tornando bastante revelador, já que as cineastas revelaram a transexualidade e produziram um dos programas mais cultuados pela comunidade LGBTQI+, o Sense 8 da Netflix. Ainda que muitos lembrem de Lili e Lana Wachowski por seus filmes cheios de efeitos especiais, elas também tem uma pauta de trabalho bastante vinculada à diversidade, o que rende seus trabalhos mais ousados e interessantes.

Ligadas Pelo Desejo (Bound / EUA -  1996) de Lili e Lana Wachowski com Jennifer Tilly, Gina Gershon, Joe Pantoliano, Christopher Meloni e John P. Ryan. ☻☻

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Ciclo GHIBLI: O Castelo de Cagliostro / Princesa Mononoke / O Conto da Princesa Kaguya

O Castelo de Cagliostro: entre nobres e bandidos. 

O Castelo de Cagliostro é o primeiro filme de Hayao Miyazaki e não foi lançado pelos Estúdios Ghibli, a propósito foi o único filme dele antes de fundar o estúdio. No entanto, para deleite dos fãs, o longa entrou em cartaz na Netflix junto com o pacote do estúdio. Fiquei bastante surpreso em descobrir que esta animação tem a minha idade (!!) e comprova como Miyazaki pensa as animações de forma bastante diferente há muito tempo, já que enquanto a maioria das animações eram voltadas para a criançada e linguagem de contos de fada, esta aqui é completamente diferente ao girar em torno de um bandido que cai de amores por uma mocinha comprometida (com um duque nada nobre). O protagonista é Lupin III, um ladrão que em uma fuga se depara com uma noiva fugindo de um castelo - e ao vê-la prisioneira do Duque de Cagliostro resolve livra-la do vilão. Este é o ponto de partida que revela aos poucos uma conspiração, misturada com trapalhadas, segredos e coadjuvantes interessantes (como o parceiro Jigen, o detetive Zenibata, uma espiã, um espadachim... que cria alguns momentos bastante absurdos). Baseado nos mangás de sucesso da série Lupin III (desenhada por Monkey Punch e inspirada nos livros de Maurice Blanc), o resultado é uma aventura bastante empolgante, colorida, divertida e com um ritmo frenético. Aqui vários aspectos que seriam ainda mais destacados nos filmes subsequentes de Miyazaki já apareciam: os detalhes dos cenários, a escolha das cores e a ambiguidade dos personagens (especialmente do protagonista). O trabalho se torna ainda mais notável quando percebemos que ele pode ser apreciado por pessoas de todas as idades -  já que ainda que tenha armas em cena, ele não é violento e apela para o pastelão em vários momentos. Sucesso nos estúdios Tokyo Movie Shinsha, o longa foi considerado cult perante o grande público, chegando a rivalizar com o Akira (1988) em sua popularidade. Dezoito anos depois, o cineasta lançou Princesa Mononoke (1997), seu sétimo longa metragem. Seu estilo já era reconhecido e consagrado à frente dos Estúdios Ghibli quando surpreendeu muita gente com um filme mais agressivo e visualmente arrebatador. O filme se passa o período Muromachi da história do Japão (século XIV até o século XV) e somos apresentados ao príncipe Ashitaka, que tem sua aldeia atacada por uma criatura possuída e, ao proteger seu povo, o príncipe acaba amaldiçoado. Ciente de que a morte se aproxima ele parte em busca de uma cura através da floresta. É comum a crensça de que a floresta é habitada por espíritos e deuses que a protegem, ainda mais aqui, num período em que homens e animais deixavam a harmonia de lado (especialmente perante  a destruição que se iniciava). 

Princesa Mononoke: roteiro bastante atual. 

Conforme busca a cura, Ashitaka encontra a misteriosa Princesa Mononoke, uma menina criada por lobos que se tornou uma verdadeira guerreira e não confia na raça humana - e para ela confiar cada vez menos temos por perto a Lady Eboshi, que vive em guerra com os deuses e criaturas da floresta que impedem o avanço da cidade criada por ela. Entre as duas, Ashitaka demonstra ser um sujeito virtuoso e conciliador naquele conflito fadado à catástrofe. Ainda que a história tenha vários aspectos vinculados à espiritualidade, à cultura japonesa e até mesmo à fantasia, o roteiro possui uma forte crítica à forma predatória como lidamos com a natureza, como se a única função dela fosse curvar-se à vontade da humanidade. Destaque também para a importância que as mulheres possuem na história com suas lideranças em lados opostos. Lançado há 23 anos, Princesa Mononoke,  além de ser uma obra deslumbrante, mantém seu discurso atual até os dias de hoje (motivo que somado à sua estética agressiva pode ter causado grande estranhamento no ano de seu lançamento). Já O Conto da Princesa Kaguya (2014) segue um estilo completamente diferente dentro dos Estúdios Ghibli, mas igualmente arrebatador. Baseado num popular conto japonês (O Conto do Cortador de Bambu), a história muda o foco da história e se concentra no olhar da menina que nasceu de um broto de bambu e cresceu rapidamente. Adotada por um casal de camponeses idosos, ela cresce na montanha em uma vida simples e feliz com seus pais e amigos. No entanto, após encontrar ouro, seu pai investe cada vez mais para que a menina se torne uma princesa. Desde o início é perceptível como a protagonista fica infeliz ao ter que se mudar tão abruptamente. Ela até gosta da casa mais espaçosa, dos pequenos luxos que tem ao seu redor, mas logo começa a sentir-se desconfortável com a educação que começa a receber para se tornar uma verdadeira princesa. De aprender a tocar um instrumento, novas posturas, entonação de voz, jeito de se vestir, maquiagem, sobrancelhas, o que vemos é como a educação da mulher pode ser opressora na sociedade japonesa. O filme critica esta situação de forma sutil, através de muita poesia visual e algumas cenas bem humoradas (especialmente quando envolvem os pretendentes da princesa). aos poucos o que era conforto se torna uma verdadeira prisão de aparências para Kaguya. Ainda que o filme enverede por uma conclusão mística, a ideia de que as vontades da protagonista não são levadas em consideração ao longo da trama é bastante forte e emociona em vários momentos. Vale destacar que o estilo de animação adotado aqui com traços mais simples e uso de tons pasteis, geralmente com uso de aquarela, aprimora o que o diretor Isao Takahata utilizara em Meus Vizinhos, os Yamadas (1999). Tanto estilo e sensibilidade rendeu ao filme uma indicação ao Oscar de Melhor Animação em 2015.

O Conto da Princesa Kaguya: delicadeza e assunto sério. 

O Castelo de Cagliostro (Rupan sansei: Kariosutoro no shiro / Japão - 1979) de Hayao Miyazaki com vozes de Yasuo Yamada, Eiko Masuyama, Kiyoshi Kobayashi, Makio Inoue e Gorô Naya. ☻☻

Princesa Mononoke (Mononoke-hime / Japão - 1997) de Hayao Miyazaki com vozes de Yôji Matsuda, Akihiro Miwa, Masahiko Nishimura e Akira Nagoya. ☻☻

O Conto da Princesa Kaguya (Kaguyahime no Monogatari / Japão - 2014) de Isao Takahata com vozes de Aki Asakura, Kengo Kôra, Takeo Chii, Nobuko Miyamoto e Tomoko Tabata. ☻☻

quarta-feira, 24 de junho de 2020

PL►Y: O Irlandês

De Niro, Pacino e seus amigos: elenco de respeito. 

O projeto de Martin Scorsese junto com a Netflix deu o que falar logo assim que começou a ser organizado. Tudo começou com o elenco que reúne alguns dos atores favoritos do cineasta e um (Al Pacino) que ainda não havia trabalhado com o mestre. Todo mundo só falava do encontro de Pacino, Robert De Niro e Joe Pesci.  Somando o currículo dos três temos 17 indicações ao Oscar (e quatro estatuetas, duas para De Niro e uma para Pacino e Pesci). Se colocarmos na conta as indicações de Scorsese, o quilate sobe para 29 indicações (sendo uma estatueta, eu sei é ofensivo...) - e para arredondar some a indicação de Anna Paquin, que levou o prêmio de atriz coadjuvante por O Piano/1993 quando tinha onze anos - e aqui faz uma participação que deu o que falar. O Irlandês somou novas indicações para Pacino e Pesci (ambos indicados na categoria de coadjuvantes), assim como para De Niro (indicado como produtor) e Scorsese (lembrado como diretor e produtor). Ao todo  O Irlandês concorreu em dez categorias no Oscar2020 e rendeu muitas entrevistas em que Scorsese criticava o fato de ser um tipo de filme que os grandes estúdios de Hollywood não se interessam mais. Com três horas e meia de duração (dez minutos só de créditos finais) o interesse da Netflix caiu como uma luva ao projeto, já que permite ao expectador uma liberdade maior ao diretor e ao expectador na hora de assistir (pessoalmente considero que é mais interessante vê-lo por completo de uma vez só, numa tarde em que estiver com disponibilidade de mergulhar em mais uma jornada de Scorsese pelo mundo do crime). É verdade que você irá identificar relações com outras obras importantes do cineasta, seja Caminhos Perigosos (1973), Os Bons Companheiros (1990) e até Cassino (1995). Embora o diretor tenha enveredado por outros caminhos ao longo de seus sessenta anos de carreira, são em produções deste tipo que temos a sensação de ver Scorsese ser Scorsese. Aqui ele cria quase uma reverência à sua obra através da biografia de Fran Sheeran (Robert De Niro), um homem comum que vivia de pequenos golpes e que se torna um dos mais confiáveis da máfia italiana ao longo de seis décadas. Casado e pai de três filhas, sua vida muda radicalmente quando conhece Russel Bufalino (Joe Pesci), um verdadeiro articulador da máfia na região e que se tornará seu grande amigo. Fran começa a fazer cada vez mais serviços para o grupo num emaranhado de assassinatos e serviços sujos. É Russel que apresenta Fran para o lendário Jimmy Hoffa (Al Pacino), envolvido com uma eterna luta pelo poder sobre o sindicato na região e outros negócios por baixo dos panos. Em torno dos três temos uma olhar bastante particular sobre a história dos Estados Unidos que segue até o final melancólico. 

Keitel e Pesci: figuras bastante conhecidas na cinematografia de Scorsese. 

Não precisa nem dizer que Scorsese faz um trabalho técnico impressionante, especialmente por não ter em mãos um roteiro trivial que cresce em tensão até o final, O Irlandês se desenvolve em oscilações, que vão do grandiloquente ao intimista por toda sua duração, construindo uma cadência bastante própria. Fundamental para seu funcionamento são as performances de seu elenco que utiliza talento e efeitos especiais para rejuvenescerem - e confesso que estranho muito este tipo de efeito em atores idosos que os movimentos não acompanham este efeito de jovialidade - além de maquiagem para envelhecerem décadas diante da câmera. De Niro está bastante correto como protagonista, mas seus coadjuvantes acabam chamando mais atenção. Pesci que estava sumido de grandes produções faz aqui um tipo bastante diferente dos tipos que o consagraram anteriormente. Mais contido e falando baixinho, ele é a antítese dos esquentadinhos que lhe renderam prêmios no passado. Já Pacino é o oposto, enérgico e acelerado, o ator tem seu trabalho mais empolgante em muito tempo, fazendo o filme mudar de tom quando aparece e o torna ainda mais envolvente quando está em cena. O filme ainda agrega outros bons atores em torno do trio, Harvey Keitel (outro favorito de Scorsese), Ray Romano, Bobby Cannavale, Stephen Graham e Jesse Plemons também têm bons momentos durante a sessão. Sei que muita gente criticou a participação silenciosa de Anna Paquin do filme, verdade que foi uma ousadia utilizar a atriz para refletir a consciência de Fran Sherran e ter apenas duas linhas de fala no filme, mas faz parte das opções do diretor para criar dramaticidade por aqui. Alguns apressados foram reclamar da falta de destaque em mulheres nos filmes de Scorsese (esquecendo de atuações notáveis de Ellen Burstyn, Sharon Stone, Lorraine Bracco, Winona Rider, Michelle Pfeiffer, Margot Robbie, Cate Blanchett, Vera Farmiga, Michelle Williams, Cathy Moriarty e tantas outras em filmes do diretor). O Irlandês é a prova de que o cinema de Scorsese ainda merece atenção e não importa se os espectadores o assistiram como uma temporada da Netflix (como brincou Chris Rock na abertura do Oscar deste ano) o que temos aqui é cinema de qualidade e isso que importa. O Oscar não veio, mas aquela homenagem de Bong Joon-Ho ao levar a estatueta de melhor diretor já diz tudo. Citando o mestre e deixando todos de pé na plateia para aplaudi-lo, Scorsese já transcendeu premiações, já é uma entidade da história do cinema. 



O Irlandês (The Irishman / EUA - 2019) de Martin Scorsese com Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Anna Paquin, Stephanie Kurtzuba, Harvey Keitel, Kathrine Narducci, Ray Romano, Bobby Cannavale, Stephen Graham e Jesse Plemons. ☻☻

segunda-feira, 22 de junho de 2020

4EVER: Joel Schumacher

29 de agosto de 1939  ✰  22 de junho de 2020

Nascido em Nova York, Joel T. Schumacher começou seus trabalhos na televisão na década de 1970 e chegando aos cinemas na década seguinte.  Embora muitos lembrem dele como diretor da pior fase do Batman no cinema, o cineasta tem bons trabalhos no currículo. Ele é o responsável por toda eficiência de O Cliente (1995) que rendeu uma indicação ao Oscar para Susan Sarandon e revelou o prodígio Brad Renfro. Joel também foi o primeiro diretor a acreditar que Colin Farrell poderia ser um astro de cinema com Tigerland (2000). Ele também assina uma daquelas obras perigosas que só o tempo é capaz de torna-las ainda mais verdadeiras, estou falando do polêmico Um Dia de Fúria (1993) que demonstra como um dia ruim pode fazer um sujeito comum surtar. A transição de Joel para o século XXI não foi muito favorável, já que não dirigia um sucesso desde Por Um Fio (2002). Joel  não realizava um longa há quase dez anos e durante este período lutava contra um câncer. 

domingo, 21 de junho de 2020

KLÁSSIQO: O Ódio

Saïd, Hubert e Cassell: violenta jornada dia adentro. 

De vez em quando aparece um filme francês que explora a tensão existente nos subúrbios franceses. A mistura de preconceitos, trabalho precarizado, falta de perspectiva sempre se torna uma mistura prestes a explodir em violência. É ainda mais assustador quando lembramos que em 1995 o filme O Ódio causou um impacto enorme ao ser exibido no Festival de Cannes mostrando esta bomba-relógio por dentro, com fotografia em preto-e-branco e um formato que lembra muito o cinema documental. O roteiro parece não existir e a direção do ator Mathieu Kassovitz, que estreava na direção em longa-metragem com esta obra, é imperceptível (e por isso mesmo, impressiona). A sintonia do filme com a realidade francesa era tão assustadora que o filme chegou aos cinemas em uma semana e na seguinte começaram as manifestações nas ruas francesas por conta da morte de um rapaz francês de origem árabe que aos 21 anos faleceu após ser perseguido por policiais. Era como se O Ódio houvesse previsto o futuro. Na verdade, Kassovitz se inspirou na morte de outro jovem, um imigrante zairense de 17 anos que morreu em uma delegacia por conta de um disparo acidental (na verdade, as mortes acidentais decorrentes da ação policial na França somam mais de centenas desde 1981). Reza a lenda que Kassovitz escreveu seu texto no mesmo dia em que filmava. A ideia era registrar 24 horas na vida de um trio de amigos de origens distintas no subúrbio francês, assim conhecemos Vinz (Vincent Cassell), jovem judeu que depois de um motim encontra a arma de um policial e promete se vingar das agressões que sofreu. Ele é amigo do pugilista negro Hubert (Hubert Koundé) que tenta tirar a ideia da cabeça do amigo e de Saïd (Saïd Taghmaoui), rapaz de origem árabe que não sabe muito bem o que fazer da vida. O trio de amigos se cruzam pela manhã e um conjunto de incidentes os irão colocar em conflitos com a policia, com traficantes e skinheads num dia longo e inquieto. Existe tensão e urgência na narrativa de Kassovitz, que é acentuada ainda mais pela agressividade nos encontros e em vários diálogos (que por vezes são cômicos e em outros assustadores). O filme causou tanto impacto que Kassovitz foi eleito o melhor diretor no Festival de Cannes de 1995, mas a imprensa parecia não se dar conta do que o filme retratava e se chocou quando a violência explodiu dias depois. Vinte e cinco anos após seu lançamento, O Ódio ainda é bastante atual e assusta justamente por isso (e curiosamente em 2004 o filme inspirou uma produção brasileira, Ódiquê? de José Joffily que nem de longe causou o mesmo impacto que esta produção francesa). 

O Ódio (La Raine / França -1995) de Mathieu Kassovitz com Saïd Taghmaoui, Vincent Cassell e Hubert Koundé. ☻☻

PL►Y: 7500

Joseph: tensão nas alturas. 

Em tempos de pandemia resta aos cinéfilos sedentos por novidades aguardarem ansiosamente às estreias nas plataformas de streaming. Foi o caso de 7500 que se tornou um dos lançamentos mais alardeados da semana com sua chegada no Prime Video. O longa estrelado por Joseph Gordon Levitt retrata a tentativa de sequestro de um avião que parte da Alemanha para Paris, só que a narrativa opta por abordar o interior do avião em tempo integral, especialmente a cabine dos pilotos. A ideia pode até ter surgido pra diminuir os custos de produção mas é mais do que eficiente ao explorar o que aquele ambiente tem de mais claustrofóbico - e se levarmos em conta que o avião está no ar, a sensação de isolamento e vulnerabilidade se torna ainda maior. O filme começa da forma mais trivial possível, com o preparo do voo, os diálogos entre a tripulação, os cuidados da comissária de bordo e convence  de que aquele é um dia comum de trabalho para aqueles personagens,  especialmente para o casal formado pelo co-piloto americano Tobias (Levitt) e a comissária Gökce (Aylin Tezel) que estão juntos há algum tempo e já tem um filho. Tão logo o avião está no ar começa o desespero com três homens tentando invadir a cabine dos pilotos e daí em diante só piora. Ferido, Tobias terá que buscar meios que o pior não aconteça e manter todos seguros, num verdadeiro teste de nervos neste suspense.  Este é o longa de estreia do diretor alemão Patrick Vollrath (que assina o roteiro com Senad Halilbasic) que até então realizava apenas curtas-metragens (o mais famoso deles, Tudo Ficará Bem, lhe rendeu até uma indicação ao Oscar em 2016). Patrick demonstra ter bom controle do cenário que tem em mãos além de grande habilidade para lidar com os atores, prova disso é que Joseph tem sua melhor atuação em muito tempo. Faz tempo que o garoto que era estrela de televisão cresceu, mas aqui ele demonstra a real dimensão de um personagem adulto e que sofre transformações bruscas durante os noventa minutos de projeção. Ele começa como o rapaz tímido e reservado para depois de tornar agressivo e dotado da frieza necessária para enfrentar uma situação daquelas. Existe também um movimento sempre oscilante de Omid Memar na pele de um rapaz que se mete em apuros e não faz a mínima ideia do que fazer para sair. O uso dos efeitos visuais no decorrer da história também é bastante interessante e convencem de que aquele avião está realmente em movimento nas alturas. Embora o longa exagere nas reviravoltas, que nem sempre alcançam a tensão almejada, 7500 (nome da situação de emergência que o filme aborda) mostra-se um filme de suspense bastante eficiente.

7500 (Alemanha / Áustria / EUA - 2019) de Patrick Vollrath com Joseph Gordon Levitt, Omid Memar, Aylin Tezel e Carlo Kitzlinger. ☻☻

sábado, 20 de junho de 2020

PL►Y: Ford Vs. Ferrari

Damon e Bale: corridas de tirar o fôlego. 

Indicado a quatro categorias no Oscar deste ano (incluindo melhor filme) Ford Vs. Ferrari foi para a cerimonia com a ciência de que a categoria principal estava perdida - mas tinha chances de levar para a casa as três categorias técnicas em que concorria (levou as estatuetas de montagem e edição de som) o que é bastante justo. Tivesse conseguido cravar mais uma indicação para Melhor Ator para Christian Bale ele teria mais chances de convencer os membros da Academia de que não era um filme de ação qualquer. Bale vive Ken Miles, um veterano  britânico da 2ª Guerra Mundial que ganha a vida como mecânico nos Estados Unidos. Miles existiu de verdade e o filme busca traduzir em imagens a obsessão que ele tinha por automóveis e velocidade, já que ele também era piloto - só que não muito bem visto pelo temperamento explosivo (que fica visível logo na primeira corrida em que aparece no filme). Ao lado de Miles está Carroll Shelby (Matt Damon), ex-piloto, designer e engenheiro automotivo que recebe nos anos 1960, do próprio Henry Ford II (Tracy Letts), a missão de mudar a imagem que o público tinha da Ford utilizando as pistas de corrida. Shelby teria que provar que os automóveis da empresa eram melhores do que os da lendária Ferrari usando como palco a lendária corrida de 24 horas de Le Mans na França. Para alcançar este objetivo, Shelby convoca Miles para ser seu piloto e conselheiro na empreitada. Assim, o filme se concentra em dois personagens pouco conhecidos, mas importantíssimos na disputa que ocorreu entre duas das maiores empresas do mundo. Embora o roteiro se desvie por vários outros personagens em diversos momentos, são nas cenas em que Miles está em cena que o filme cresce consideravelmente, além de cumprir a missão de apresentar o quão arriscado e série é o trabalho do seu protagonista. O cineasta James Mangold (que já fez de tudo em Hollywood) evita a todo custo escorregar no melodrama e conduz as cenas de corrida com maestria. Não lembro qual foi a última vez que pistas de corrida me deixaram tão empolgado e apreensivo dentro de um filme. O ritmo é preciso, a velocidade das imagens também impressiona e a tensão daqueles momentos transborda da tela. Se como drama o filme tem seus problemas (talvez o roteiro precisasse de uma lapidada e melhorar um pouco a visão vilanesca de alguns personagens que nunca se desenvolvem direito na história), quando tem Bale e corridas em cena, vocês esquece de qualquer problema. Baseado em fatos reais, o filme não deixa de ser uma homenagem ao temperamental Ken Miles que entrou para a história do automobilismo forçando a porta dos fundos. 

Ford Vs. Ferrari (EUA-2020) de James Mangold com Christian Bale, Matt Damon, Tracy Letts, Jon Bernthal, Caitriona Balfe, Noah Jupe e Joshb Lucas. ☻☻

NªTV: Contos do Loop

Duncan Joiner: menino prodígio em série memorável. 

Em 2014 o sueco Simon Stålenhag lançou um livro chamado Contos do Loop que mexeu com a imaginação de muita gente ao misturar paisagens bucólicas com aparatos tecnológicos. O livro não tinha texto escrito, apenas paisagem com robôs gigantes, esferas metálicas ou máquinas misteriosas. As ilustrações com estética retro-futurista (ou seria apenas pós-moderna?) se tornaram bastante populares, se tornando protetores de tela, jogos de RPG e este seriado da Amazon Prime Video que investe numa ficção científica bastante original que imagina como seria a vida de uma cidadezinha aparentemente tranquila que precisa lidar com os misteriosos experimentos científicos de uma empresa que eles apelidaram de Loop. Por conta desta instalação que ninguém sabe ao certo como funciona (mas que muitos da cidade trabalham por lá), os personagens terão que lidar com viagens no tempo, trocas de personalidade, dimensões paralelas, robôs, alterações no eixo espaço-temporal.... no entanto, o mais curioso é que estes elementos não estão no centro da narrativa e aparecem como detalhes que revelam cada vez mais sobre os personagens. Apesar de ser composto de oito episódios, cada um dedicado a um dos seus personagens, Contos do Loop costura todos eles com um  fio condutor em torno de uma família, no caso, do principal administrador da empresa, Russ (Jonathan Pryce). As tramas se expandem para seu filho (Paul Schneider), sua nora (Rebecca Hall), seus netos e pessoas que gravitam em torno deles. Os detalhes de ficção científica surgem então como uma espécie de tempero para os dilemas daqueles personagens sobre amizade, insegurança, amor, família, morte, envelhecimento... obtendo um resultado bastante coeso e impressionante. Com excelente trilha sonora, fotografia caprichada e efeitos especiais que primam pelo realismo a série rapidamente foi comparada com outras séries das quais seu criador, Nathaniel Halpern quer distanciamento, tanto que em entrevistas deixou claro que seu programa seria um anti-Black Mirror. Ao invés de inspirar o medo e a raiva, Contos do Loop prefere um caminho oposto que aborda sentimentos mais sutis e também complicados.  Muita gente estranha o tom lento da série, criticam que alguns episódios são arrastados e tal...mas quem foi que tudo precisa ser repleto de ação e correria? O tom mais contemplativo cai como uma luva para as tendências existencialistas do roteiro e aumentam o suspense que emerge das histórias calcadas nos personagens - e vale ressaltar que todo o elenco está impecável, especialmente no último episódio dirigido por Jodie Foster! O capítulo é de rasgar o coração e deixa aquela angústia de final de temporada que fecha redondinha, mas que você anseia por outra. Contos do Loop ainda se beneficia muito do que deixa nas entrelinhas sobre aquele universo cheio de possibilidades. Ao não localizar suas histórias em um tempo específico, deixa a sensação de que se passa num tempo incerto, uma outra dimensão talvez, com imenso potencial para muitas outras temporadas. Até o momento foi a série mais interessante que assisti a este ano (e cai como uma luva para quem não aguenta mais de ansiedade para a terceira e última temporada da alemã DARK na Netflix). 

Contos do Loop (Tales From the Loop / EUA -2020) de Nathanile Halpern com Rebecca Hall, Jonathan Pryce, Daniel Zolghadri, Paul Schneider, Ato Essandoh, Duncan Joiner, Jane Alexander e Tyler Barnhardt. ☻☻☻☻

PL►Y: Sócrates

Christian e Tales: desejo em meio ao caos.  

Desde sua primeira cena fica claro que a vida do jovem Sócrates não será fácil. O filme começa com o menino aos gritos tentando fazer a mãe acordar, não tem jeito, ela está morta. Dali em diante tudo só piora na vida do rapaz. Ele precisa dar conta do aluguel atrasado, aparece trabalhar no lugar da mãe, mas o fato de ser menor de idade não ajuda. Resolve procurar emprego e não consegue. Começa a trabalhar em um ferro-velho e se mete em confusão e se não pagar o aluguel não terá para onde ir. Procurar o pai? Nem pensar, Sócrates prefere viver à deriva do que voltar a viver sob o mesmo teto que ele. Aos quinze anos ele precisa lidar com a falta de dinheiro e os preconceitos em torno de sua sexualidade. Este ponto parece ser apenas um detalhe no texto de Alexandre Moratto e Thayná Mantesso, mas paira sobre a inadequação ao mundo que cerca o garoto, havendo a mescla de dois estigmas, o econômico e o sexual.  O ótimo Christian Malheiros realiza um excelente trabalho na pele de Sócrates, no início, mesmo em meio a situação desesperadora, o jovem ator demonstra olhares e sorrisos de esperança diante do futuro, mas aos poucos esta esperança vai embora com as decepções que atravessam seu caminho. Existe a promessa de um romance que nunca se concretiza (com outro destaque do elenco, Tales Ordakji), um emprego que nunca surge e o anúncio de uma situação limite perante o que ele deseja e o que seria suportável. A direção de Moratto tem um senso de urgência que impressiona, sua narrativa é dinâmica, enxuta e alcança um tom visceral graças ao elenco mais que eficiente. Os cortes precisos se mostram fundamentais para que o filme funcione, cria a sensação de um verdadeiro jorro que sabe exatamente a hora de parar e prosseguir. Ambientado na Baixada Santista, litoral de São Paulo, o filme é feito por uma equipe que entende bastante da realidade da região. Realizado por jovens de 16 a 20 anos das Oficinas Querô (projeto social do Instituto Querô, ONG de Santos que atua há mais de dez anos com adolescentes de baixa renda interessados em fazer cinema), o filme transborda esta jovem energia. Moratto foi voluntário nestas oficinas e se interessou a contar histórias sobre aqueles pessoas dali, o resultado foi um filme premiado em vários festivais e que surpreendeu a ser  indicado em três categorias do prestigiado Independent Spirit nos Estados Unidos que indicou o longa nas categorias John Cassavetes (para filmes de baixíssimo orçamento), melhor ator para Christian Malheiros (que concorreu ao prêmio de melhor ator ao lado de Adam Sandler, Robert Pattinson e Mattias Schoenaerts) e Alexandre Moratto levou para casa o prêmio de Revelação. Apesar do nome do protagonista ser referente ao jogador de futebol, ao ver a jornada do personagem eu só lembrava daquela célebre frase do outro Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo" e, isso torna-se fundamental para o personagem, especialmente na última parte (de tirar o fôlego, literalmente) em que se percebe forças para continuar. 

Sócrates (Brasil/2019) de Alexandre Moratto com Christian Malheiros, Tales Ordakji, Jayme Rodrigues e Vanessa Santana. ☻☻☻☻ 

sexta-feira, 19 de junho de 2020

4EVER: Ian Holm

12 de setembro 1931 ✰   19 de junho de 2020

Ian Holm Cuthbert nasceu em Goodmaynes (Londres, Inglaterra) e se consagrou primeiramente na lendária Royal Shakespeare Company antes de conhecer o sucesso nacional com seu trabalho na televisão. Ele recebeu destaque pelo seu trabalho como Ricardo III na série produzida pela BBC em 1965 após receber vários prêmios por seu trabalho no teatro. Seu primeiro papel creditado no cinema foi em 1968, mas seu rosto ficou conhecido nas telonas quando interpretou o andróide Ash no clássico Alien, O Oitavo Passageiro (1979). Sua primeira e única indicação ao Oscar (na categoria de ator coadjuvante) veio em 1981 com Carruagens de Fogo (1980) e também esteve presente em vários sucessos do cinema, como O Quinto Elemento (1997) de Luc Besson, nas trilogias Senhor dos Anéis (2001 e 2003) e Hobbit (2012 e 2014) no seu papel mais conhecido, o de Bilbo Bolseiro  (mas o meu trabalho favorito do ator é em O Doce Amanhã/1997 de Atom Egoyan). Holm casou quatro vezes e teve cinco filhos ao longo da vida. Faceleu em decorrência da doença de Parkinson aos 88 anos. 

segunda-feira, 15 de junho de 2020

NªTV: I Know this Much is True

Ruffalo e Ruffalo: irmãos com problemas. 

A minissérie I Kow This Much is True da HBO chegou ao final de seus seis episódios neste domingo e provou mais uma vez que o diretor Derek Cianfrance adora um drama familiar. Mas ele não curte um draminha trivial não, ele curte sobrepor dores, sofrimentos e segredos familiares de forma que beiram o excesso. Assim ele constrói não apenas a dramaticidade de seus personagens como sugere também um suspense, um tom que parece construir uma tragédia gradativa até o final (que pode trazer alguma redenção, ou não). O programa é baseado no livro de Wally Lamb que conta a história de dois irmãos gêmeos, um deles com quadro severo de esquizofrenia e o outro responsável por ele. Mark Ruffalo não apenas topou o desafio de viver os irmãos com personalidades distintas como também produziu a minissérie e o resultado deve ser lembrado nas premiações de fim de ano. Na pele de Dominick ele é o homem que tinha um futuro promissor que acaba soterrado nos dramas de sua família. Ao longo da vida recebeu a tarefa de zelar pelo bem estar do irmão, Thomas, que se tornou cada vez mais confuso, tão confuso que é capaz de se auto-mutilar em um local público porque a Bíblia mandou. O episódio gera uma internação com consequências que perduram até o final da história, mas até lá conhecemos um pouco da história de ambos, situações da infância, da adolescência, da vida na faculdade, a relação com a mãe (Melissa Leo) que nunca lhes contou nada sobre o pai e o padrasto (John Procaccino), que sempre esteve por perto. Não bastasse as pendengas de sua família de origem, Dominick também tem histórias complicadas sobre seu casamento com Dessa (Kathryn Hann) que deixaram sua vida ainda mais desamparada. Some isso ao relacionamento problemático com  uma jovem namorada (Imogen Poots) e a autobiografia do seu avô italiano (Marcello Fonte de Dogman/2018) que você verá os ingredientes para Cianfrance construir um verdadeiro inferno na vida de seu protagonista. Este inferno é embalado em uma fotografia azulada que não deseja embelezar nada que aparece diante da câmera (que às vezes parece estar escondida nos cenários). Com a expressão de quem carrega o mundo nas costas, Dominick encontra algum alento nos encontros com a assistente social Lisa Sheffer (Rosie O'Donnell em um excelente desempenho) e na Doutora Patel (Archie Panjabi), que percebem o quanto aquele homem está cansado prestes a explodir. Assim como Ruffalo, todo o elenco tem desempenhos fundamentais para a história não perder o tom e cair no exagero. As atuações são contidas, melancólicas (tirando a de Juliette Lewis numa participação especial memorável). O mais interessante é que por baixo de todo o drama, a história apresenta uma verdadeira cruzada em busca do autoconhecimento - que constitui a catarse do protagonista. Cianfrance demonstra aqui mais uma vez sua assinatura que ficou conhecida em seu segundo longa, o ótimo Blue Valentine/2010 (lançado no Brasil com o enganoso título de Namorados Para Sempre), depois causou estranhamento pelo denso O Lugar onde tudo Termina (2012), por este último falaram tanto que ele filma "feio" (?!) que ele se aproximou do cinema mais clássico (especialmente pelo trato com as imagens e locações) com  A Luz Entre os Oceanos (2016). Com I Know This Much is True, Cianfrance diz que ele prefere fazer as coisas do seu jeito e muita gente gosta. 

I Know This Much is True (EUA-2020) de Derek Cianfrance com Mark Ruffalo, Melissa Leo, Kathryn Hahn, Archie Panjabi, Rosie O'Donnell, Imogen Poots, Bruce Greenwood e Juliette Lewis. ☻☻☻

domingo, 14 de junho de 2020

PL►Y: Troop Zero

A Tropa Zero: a produção mais fofa de 2020. 

No interior do estado da Geórgia em 1977, a pequena Christmas Flynt (McKenna Grace) sonha em conhecer o espaço. Pensando em estrelas e planetas na vastidão do universo, ela percebe em um concurso a chance de poder estar mais próxima das estrelas, afinal, em breve, vozes infantis serão escolhidas para mandarem uma mensagem dentro de uma espaçonave da NASA. No entanto, para participar, Christmas tem apenas um problema: ela precisa fazer parte de um grupo de escoteiras. Como ela não é aceita pelo grupo da cidade (é considerada estranha por conta de seus gostos diferentes e pelo boato de que ainda faz xixi na cama) ela inventará seu próprio grupo.Assim, ela conta com algumas crianças consideradas desajustadas pela vizinhança. A começar pelo melhor amigo Joseph (o ótimo Charlie Shotwell) que enfrenta problemas por não dar conta de ser tão masculino quanto seus irmãos. Participarão ainda da tropa a encrenqueira Hell-No Price (Milan Ray), sua parceira nada delicada Smash (Johanna Colón) e da religiosa Anne Claire (Bella Higginbotham) que sempre enfrenta comentários maldosos por ter apenas um olho. Para cuidar deste grupo é escolhida uma amiga do pai de Flynt, Miss Rayleen (Viola Davis, que também assina a produção do filme) que é considerada a pessoa mais inteligente que ela conhece. O filme segue de uma maneira bastante simples, com o grupo tentando se entender e ganhando suas medalhas para conseguirem participar do concurso. No entanto, a cada passo do grupo, eles precisam lidar com o discurso ofensivo e excludente de suas oponentes que não aceitam que um grupo tão diferente possa ter qualidades (e as qualidades brotam justamente do que muitos consideram defeitos). Assim, o fato de ser deliciosamente cômico, um tanto nostálgico e até ácido não isenta do filme de fingir sua inocência. Debaixo de sua história aparentemente inofensiva, existe uma bem armada trama sobre sonhos, amizade e aceitação - e se você tem dúvidas de que o filme enxerga fora da caixa é só ver o número em que se inspiram em David Bowie. No ótimo elenco, que ainda conta com Alisson Jeanney como a mentora do grupo opositor à Tropa Zero, o destaque fica mesmo por conta das crianças que estão excelentes em todas as cenas! A mais conhecida do grupo, McKenna Grace, faz aqui mais um ponto para sua precoce carreira (ela já apareceu como a ótima menina Tonya Harding em Eu, Tonya/2017 e era uma das crianças assombradas da série A Maldição da Residência Hill/2018). Troop Zero é uma produção original da Amazon e quando termina deixa você com vontade de sorrir o dia todo. O filme é o primeiro longa da dupla de diretoras Bert & Bertie, uma ótima estreia!

Troop Zero (EUA/2020) de Bert & Bertie com McKeena Grace, Viola Davis, Allison Janney, Charlie Shotwell, Milan Ray, Johanna Colón, Milan Ray e Bella Higginbotham.☻☻☻

PL►Y: Nunca Deixe de Lembrar

Tom Schilling: trajetória de um artista e de um país. 

Em 2019 a disputa para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi a mais acirrada em muito tempo. No final das contas a categoria foi vencida pelo favorito: Roma (que concorria em dez categorias, incluindo melhor filme do ano e levou para esta e mais duas - diretor e fotografia). Porém, não são poucas as virtudes dos outros concorrentes daquele ano. Guerra Fria, Cafarnaum, Assunto de Família e Nunca Deixe de Lembrar colheram vários elogios e prêmios naquele ano e, comparado aos seus oponentes, este longa alemão escrito e dirigido por  Florian Henckel von Donnersmarck deve ser o que segue um tipo de narrativa mais tradicional. Com mais de três horas de duração e fatos históricos em sua trama, o filme é bastante ambicioso ao contar a história de um jovem artista a partir da Segunda Guerra Mundial. A trama começa com o pequeno Kurt visitando um museu com sua tia (Saskia Rosendahl) e vendo uma série de obras rotuladas de degeneradas pela Alemanha hitlerista. Embora sua tia aprecie aquelas obras, ela também tem seu fascínio pelo führer e a euforia de seu encontro com o líder nazista a tira do eixo de forma determinante. Ironicamente, a trama deixa claro qual é o destino das pessoas que apresentavam qualquer tipo de inadequação dentro do regime. É com o fantasma da tia, talvez sua primeira musa, que o  Kurt terá que lidar por toda a vida. Ele cresce (e passa a ser interpretado por Tom Schilling) desenvolvendo seu talento com pincel e tinta diante de uma nova Alemanha, que flerta cada vez mais com o comunismo e que valoriza seu talento para pintar murais tão gigantescos quanto imponentes sobre a nova realidade. Paralela à vida do jovem, conhecemos o que aconteceu com o médico responsável pelo destino de sua tia, o professor Carl Seeband (Sebastian Koch) que, embora tenha ligação importante com os nazistas conseguiu escapar de um julgamento mais rígido por conta de um... favor. O roteiro irá cuidar para que os caminhos de Kurt e Seeband se encontrem novamente em breve. Embora o filme não seja tão empolgante quanto o primeiro filme de Donnersmarck, a obra-prima (ganhadora do Oscar de Filme Estrangeiro) A Vida dos Outros/2006, Nunca Deixe de Lembrar serve para que esqueçamos da sua horrorosa aventura em Hollywood com O Turista (aquele desastre de 2010 com Johnny Depp e Angelina Jolie). Aqui ele também não se repete, assume aquele tom de cinema clássico, pausado, grandiloquente que segue um herói pela trajetória de uma vida. Embora Tom Schilling crie um protagonista bastante humano e o resto do elenco esteja tão eficiente quanto ele, a trama principal do filme é a própria história da Alemanha. Do nazismo, passando pela construção do muro de Berlim, sua influência no mundo das artes, tendo um roteiro que sabe ser irônico nos momentos certos (reparem como o pensamento autoritário aparece várias vezes e em um determinado personagem ele nunca se apaga, independente da ideologia que abrace). É verdade que o filme tem até uma história de amor (e com várias cenas de sexo filmadas de forma muito romântica) que serve de fio condutor da trama, mas o principal está no que aparentemente seria o pano de fundo. Não por acaso, a voz do protagonista está na arte e sua capacidade de retratar o mundo. Como o filme demonstra, ainda que deixem a realidade fora de foco, a história permanece e, o pior, se repete. 

Nunca Deixe de Lembrar (Never Look Away / Alemanha - Itália / 2018) de  Florian Henckel von Donnersmarck com Tom Schilling, Sebastian Koch, Saskia Rosendahl, Paula Beer, Oliver Masucci, Hanno Koffler e Jonas Dassler. ☻☻☻☻ 

sexta-feira, 12 de junho de 2020

PL►Y: A Pé Ele Não Vai Longe

Joaquin e Jonah: temas pesados em leve abordagem. 

Gus Van Sant é um dos nomes mais importantes do cinema indie americano, ironicamente, com as indicações e prêmios que seus filmes Gênio Indomável (1997) e Milk (2008) receberam, seus projetos costumam ser aguardados com a expectativa de repetirem o mesmo feito. Não acho que Gus se preocupe muito com isso, tanto que seus últimos projetos foram bastante despretensiosos e passaram em branco nas premiações - e ele segue fazendo a mesma linha com a cobrança desconfortável que possa existir. A Pé ele Não Vai Longe já chama a atenção por contar com Joaquin Phoenix, Rooney Mara e Jonah Hill, o elenco escolado ajuda a contar a história de um personagem real numa narrativa fragmentada  que pode soar como filme de auto-ajuda para muita gente, mas o filme é mais do que isso. O protagonista, John Callahan (Joaquin), sempre foi um tanto inconsequente e não sabia muito bem o que fazer da vida até que um acidente mudasse sua rotina. Van Sant não conta a história de forma linear, mistura o passado do personagem com o presente, cenas da terapia de grupo, de uma palestra motivacional, de sua dolorosa recuperação e uma espécie de redenção através de quadrinhos polêmicos que despertam desconforto em muita tente. Depois que ficou dependente de uma cadeira de rodas para se locomover, Callahan viu nos quadrinhos a chance de expressar suas inquietações. Sarcástico e debochado, através deste trabalho ele consegue encontrar sua voz e demonstrar um olhar astuto conjugado à um senso de ironia que até então ele mesmo desconhecia. A obra de Callahan aparece costurada em vários momentos do filme (incluindo o título que ao abordar a rotina de um personagem com dificuldades para se locomover soa até ofensivo). Não precisa dizer que Joaquin Phoenix está muito bem, para além do trabalho físico, o ator dá conta do temperamento do personagem com uma facilidade impressionante - e torna mais fácil simpatizar com um personagem difícil. Misturando drama e comédia, o filme dá conta de emoções complicadas do biografado, como a ausência materna desde pequeno, os problemas com bebida, as dificuldades de sua nova realidade e as ofensas que ouviu por conta de suas obras. Rooney Mara que não tem muito o que fazer em cena além de ser o par romântico do protagonista, mesmo assim, ela está luminosa num papel bem mais leve do que costuma interpretar. Destaque mesmo fica por conta de Jonah Hill como o guru gay zen do protagonista, cabeludo, barbudo e com um tom de voz bastante particular, Hill tem aqui um ótimo trabalho que poderia ter lhe rendido uma terceira indicação ao Oscar de coadjuvante. A Pé Ele não Vai Longe é um filme que consegue ser leve apesar do histórico de vários personagens e ainda consegue ser habilidoso ao se esquivar do julgamento moral daquelas pessoas de carne e osso.

A Pé Ele Não Vai Longe (Don't Worry, He Won't Get Far on Foot / EUA -2018) de Gus Van Sant com Joaquin Phoenix, Rooney Mara, Jonah Hill, Jack Black, Kim Gordon e Udo Kier. ☻☻☻☻ 

PL►Y: Más Notícias para o Sr. Mars

François e Veerle: dias de apuros. 

Phillipe Mars (François Damiens) é um homem maduro que trabalha em uma empresa de informática faz tempo. Ele tem dois filhos, mas devido a um divórcio eles ficaram sob a guarda da mãe. Seus pais são falecidos, sua irmã resolveu ser artista plástica e a maior aventura de sua vida atual parece ter sido designado para trabalhar com um parceiro meio estranho, Jérome (Vincent Macaigne). Espero que toda esta tranquilidade que Sr. Mars transpira tenha lhe rendido dias melhores do que aparecem nesta comédia francesa dirigida por Dominik Moll, já que mal o filme começa as adversidades começam a mudar a rotina do protagonista, mas nunca seu temperamento - é bom ficar claro. Devido a compromissos profissionais da ex-mulher, os filhos irão morar com ele por algum tempo, o que só irá evidenciar o abismo existente entre ele e o filho vegetariano Grégoire (Tom Rivoire) e a filha presunçosa Sarah (Jeanne Guittet), não bastasse isso ele sofrerá um acidente no trabalho, irá receber um hóspede inesperado e até o final irá impedir três desmiolados de cometer um verdadeiro desastre. O roteiro se beneficia muito do humor das situações que acontecem durante a história e mais ainda da atuação impassível de François Damiens, que tem a tarefa complicada de nos fazer simpatizar com este homem comum que não consegue segurar as rédeas da vida. Mesmo que tente, ele sempre acaba submerso na vontade que quem está ao seu redor. Sua insatisfação silenciosa pode ser percebida nas expressões do personagem um tanto farto de sua própria passividade. O roteiro tem ótimos momentos com Mars visivelmente se sentindo deslocado em um mundo que deixou de entender faz tempo. É interessante como o filme explora esta vontade de se distanciar de um  mundo que parece cada vez mais confuso com os sonhos do personagem vestido de astronauta indo para o silêncio do espaço. Não por acaso o filme caminha para uma explosão que pode colocar fim à sua existência e acrescenta um  tom de aventura atrapalhada num roteiro que até então primava pelo bom humor. O tom preciso desta comédia francesa funciona como uma bela crônica sobre aquelas pessoas bem intencionadas que precisam perceber a responsabilidade em se deixar afetar pela bagunça dos outros. Uma boa surpresa do filme foi reencontrar a atriz belga Veerle Baetens (do magnífico Alabama Monroe/2012) como a estranha pretendente de Jérome. 

Más Notícias para o Sr. Mars (Des nouvelles de la planète Mars / França - Bélgica / 2016) de Dominik Moll com  François Damiens, Vincent Macaigne, Jeanne Guittet, Tom Rivoire, Julien Sibre e Veerle Baetens. ☻☻☻

quinta-feira, 11 de junho de 2020

NªTV: I Love Dick

Katrhyn: na pele da autora Chris Kraus

Foi com certa desconfiança que comecei a assistir a série I Love Dick da Amazon Prime Video. A começar por ela ter este título, digamos, sugestivo e segundo por saber que ela durou somente uma temporada. A sensação de que eu veria uma história que não teria fim me deixou um tanto receoso, mas ao descobrir que a série é baseada num livro eu prontamente já o deixei no meu Kindle. Diquei bastante surpreso de que a autora do livro, Chris Kraus é a própria personagem da série (vivida por Kathryn Hahn) o que deixa tudo ainda mais curioso e sincero. A trama conta a história de um casal maduro que se muda para uma comunidade acadêmica no interior dos Estados Unidos, uma cidadezinha chamada Marfa, no Texas. Apesar de ter pouco mais de dois mil habitantes, Marfa tem uma cena artística de prestígio, com várias galerias na região. Neste cenário existe um Instituto que contrata bolsistas para realizar pesquisas e trabalhos, neste processo é selecionado o trabalho do professor Sylvére (Griffin Dunne) sobre o Holocausto. A esposa cineasta, Chris, que está prestes a exibir seu filme no Festival de Veneza o leva até lá e ao conhecer, logo fica intrigada com a figura de Dick (Kevin Bacon), o diretor do Instituto. Um artista plástico renomado com estilo de cowboy e atmosfera de intelectual inatingível. Puro fetiche. A figura de Dick desestabiliza Chris de tal forma que tudo em sua vida parece indicar que ela deve permanecer ali (e um problema com seu filme fará isso soar ainda mais inevitável). Inquieta em suas emoções, Chris resolve exorcizar seus desejos através de uma carta que nunca será enviada a Dick. Os desdobramentos do desejo de Chris irá desestabilizar o trio e trará à tona algumas reflexões sobre sexo, casamento, fidelidade, objetificação, acordos, tratos, tesão, consenso e (por que não?) arte. O livro é todo construído através das cartas concebidas por Chis que por hora são engraçadas, melancólicas, contraditórias, conflituosas e sempre provocadoras. A série mantém este tom, o que a transforma numa comédia adulta (gênero caro às séries americanas) que gera risadas e provoca algum estranhamento pela abordagem diferenciada. O tesão está latente em cada episódio e o expande para outros personagens interessantes que gravitam em torno de Dick. A série explora um pouco a narrativa de "carta" entre os episódios, assim como referências a um cinema mais experimental, neste formato a colaboração das cineastas responsáveis pelos episódios (Jill Soloway, Kimberley Pierce, Andrea Arnold além do diretor Jim Forhna que dirige somente o sexto episódio) se torna fundamental. No elenco, Kathryn Hahn faz algo que já se tornou especialista, a protagonista confusa, que reencontra o desejo e não sabe o que fazer com ele - e ela sabe dosar comédia e drama nesta construção como poucas. Kevin Bacon também está confortável como o homem objetificado que tem algo a dizer, embora quase sempre troque as palavras nos piores momentos. A minha surpresa foi reencontrar Griffin Dunne (talvez o papel mais famoso dele seja do crush comportado de Madonna em Quem é Essa Garota? nos idos de 1987... lembra?), o ator está envelhecido e seguro como nunca na pele do intelectual Sylvére. Existe ainda uma penca de coadjuvantes cheios de possibilidades, mas, assim como o trio principal ganha um final aberto na conclusão temporária do oitavo episódio. I Love Dick é uma série interessantíssima e que merece uma chance, ainda que seja para você continuar os andamentos do programa em sua mente ou, pelo menos, se interessar pelo livro. 

Kevin Bacon: um Dick objeto de desejo. 

I Love Dick (EUA / 2016-2017) de Sarah Gubbins e Jill Soloway com Kathryn Hahn, Griffin Dunne, Roberta Colindrez, Bobbi Salvör Menuez e Lily Mjekwu. 

PL►Y: O Relatório

Driver: bom trabalho em um filme esquecido. 

Com as práticas adotadas pelo governo após o atentado de onze de setembro, Daniel J. Jones (Adam Driver) é escolhido pela senadora Dianne Feinstein (Annette Bening) para realizar um levantamento sobre as ações da CIA nos interrogatórios de prisioneiros suspeitos de envolvimento com grupos extremistas considerados perigosos pelo governo dos EUA. A investigação realizada por Daniel tem início em 2007 e com a ajuda de outros comissionados, ele realiza levantamentos de documentos que indicam que aconteceram ações de abuso de autoridade e até mesmo tortura praticados pela agência em suas investigações. Ao longo dos anos, os parceiros começam a desconfiar que será muito difícil um documento tão explosivo ser divulgado. A própria senadora se vê em uma situação bastante delicada com as revelações que aos poucos chegam até ela e, diante das atrocidades encontradas por Daniel, o próprio emocional do rapaz se altera. Terminado o monstruoso documento (em termos de registro e número de páginas) uma série de tramites e questões burocráticas começam a servir de obstáculo para a divulgação do mesmo. Este é o segundo filme dirigido por Scott Z. Burns (o primeiro foi A Vida de Timofey Berezin/2006) e ele costuma trabalhar mais como  produtor e roteirista (ele assina o roteiro de  O Ultimato Bourne/2007 e do famigerado Contágio/2011) e desde o início se percebe seu apreço pelos diálogos numa narrativa que pretende construir uma tensão crescente diante de uma história real. Sua intenção é construir uma espécie de Todos os Homens do Presidente (1975) trocando jornalistas investigativos por pessoas ligadas ao governo do Tio Sam, nesta tarefa ele  conta com o empenho de Adam Driver e... pouco mais do que isso. Talvez a inexperiência de Burns não colabore para que o filme alcance a intensidade que ele tanto almeja. É verdade que ele recria cenas de tortura angustiantes e recria um verdadeiro labirinto burocrático para que a verdade não seja divulgada, mas  falta ao longa o tom de tensão crescente até o desfecho. Existem tantas reviravoltas, complicações, segredos, que o filme soa truncado e palavroso na sucessão de desgostos e dissabores que já imaginamos como irá terminar. Outro fator que também não colabora muito para o suspense da história é que nada nas atrocidades que aparecem são novidades. Em tempos de tão vasto acesso à informação fica difícil encontrar alguma novidades ao tema e criar um filme que possa ser surpreendente em seu cunho de  "filme denúncia", gênero que chega bastante desgastado ao século XXI. Talvez por conta disso, a Amazon teve pudores em investir na alardeada campanha para o Oscar que o filme receberia. Lançado timidamente em meados de novembro (entre os pesos pesados da temporada) o filme passou em branco nas premiações. 

O Relatório (The Report / EUA - 2019) de Scott Z. Burns com Adam Driver, Annette Bening, Corey Stoll, John Hamn, Maura Tierney, Michael C. Hall e Ted Levine. 

PL►Y: American Son

Kerry, Pasquale e Jeremy: diálogos potentes. 

A peça teatral American Son escrita por Christopher Demos-Brown chamou atenção ao entrar em cartaz pela temática sempre atual aqui tratada por um roteiro bem elaborado que expõe um verdadeiro emaranhado de situações envolvendo o racismo. A ideia deu tão certo que a Netflix realizou uma adaptação da peça em formato de filme mantendo o mesmo elenco que se via nos palcos. O filme não tem pudores em demonstrar a sua origem teatral, sendo bastante fiel ao texto e o uso de um único cenário - ele insere apenas alguns flashes para evidenciar algo externo ao cenário e a tensa troca de diálogos que conduz a narrativa até o final. No elenco, Kerry Washington vive a mãe desesperada que espera notícias em uma delegacia após o desaparecimento do filho. Atendida por um policial novato (Jeremy Jordan) a conversa começa a demarcar alguns pontos que evidenciam seus piores pesadelos sobre ser mãe de um jovem negro na Terra do Tio Sam. Aos poucos ela tenta ressaltar que seu filho é um bom filho, um adolescente tímido e estudioso, mas nota que pesa sobre ele uma série de estigmas  preconceituosos. Kerry e Jeremy conseguem estabelecer uma dinâmica interessantíssima neste momento, demonstrando que o racismo está presente em palavras e atitudes sutis, que revelam uma estrutura bastante cruel. Se ela não consegue muitas informações sobre o que pode ter acontecido com o filho, resta à mãe esperar a chegada de um encarregado que possa lhe dar maiores esclarecimentos.  O uso de um cenário apenas e a câmera sempre bem localizada deixa o tom claustrofóbico ainda mais evidente nos diálogos sufocantes que se seguem sem saber ao certo para onde. As palavras e a razão tropeçam em contradições, segredos, inseguranças... deixa sempre a  sensação de que algo está perdido. Quando o pai  (Steven Pasquale) chega o discurso do filme se amplia e a identidade do filho desaparecido entra em pauta, se misturar aos sonhos do pai, aos conflitos familiares, as insatisfações e a busca por se fazer o que se quer (e não o que esperam de você). Fica latente a  sensação de que uma mínima falha, um pequeno detalhe (aparentemente fácil de ser evitado), será capaz de tomar o rumo de uma tragédia dentro da estrutura já comprometida. Dirigido por Kenny Leon o filme consegue manter a tensão do início ao fim e alimenta o suspense através dos diálogos cortantes, que por vezes parecem ter a força de um soco no rosto. Neste processo, o elenco já habituado ao texto nos palcos também realiza um ótimo trabalho e não deixa aquele ar pesaroso de teatro filmado. O único momento em que a origem teatral do texto atrapalha é o desfecho, nos palcos pode funcionar com a luz e as cortinas se fechando, mas a catarse do casal soa interrompida de forma um tanto abrupta ao chegar no ponto final. Em tempos de protestos sobre o tema, American Son propõe ótimos pontos de reflexão.  

American Son (EUA-2019) de Kenny Leon com Kerry Washington, Steven Pasquale, Jeremy Jordan e Eugene Lee. ☻☻☻

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Ciclo Palma de Ouro: A Doce Vida (1960)

Mastroianni na praia: entre festas e futilidades. 

Para encerrar o nosso Ciclo com os filmes premiados com o prêmio máximo do Festival de Cannes, eu escolhi A Doce Vida de Federico Fellini -  um daqueles filmes que tenho medo de escrever sobre. Cultuado por cinéfilos do mundo inteiro é uma daquelas pedras angulares do cinema mundial e levou para a casa a Palma de Ouro da 13ª edição (em 1960), deixando para trás os outros vinte e oito concorrentes, entre eles o brasileiro "Cidade Ameaçada" de Roberto Farias, o francês "Sete Dias... Sete Noites" de Peter Brook, o sueco "A Fonte da Donzela" de Ingmar Bergman e o espanhol "Os Delinquentes" de Carlos Saura. Esteticamente irretocável, A Doce Vida surgiu como uma crítica à sociedade do estrelato, dos famosos, dos paparazzi, do sucesso pelo sucesso e envolve tudo isso em uma casca sedutora para revelar o vazio disso tudo. Não por acaso o protagonista da história é um jornalista que gravita em torno de eventos e celebridades, ele já foi um escritor sério e pretende retomar esta carreira, mas está ocupado demais cem festas e eventos nos quais aparece sempre com seu ar entediado, rodeado de belas mulheres e com um copo de bebida na mão. O roteiro é uma colagem sarcástica  de diversos acontecimentos que desnuda o que há de postiço em tudo aquilo e, por incrível que pareça, o título de caráter irônico fez com que muita gente acreditasse que aquela vida realmente fosse doce e, por consequência, ideal. Trata-se de uma pegadinha de Fellini, que tem como maior desafio  aqui se equilibrar para não sucumbir ao universo que critica. Marcello Mastroiani ganha a tarefa de personificar Marcelo, não o ator, mas o jornalista que não consegue ser levado a sério ao longo da narrativa e vive uma série de  desventuras que o ganham cada vez mais um tom decadente. Seja acompanhando uma estrela de cinema internacional (Anita Ekberg), cobrindo um milagre da chuva celebrado por um grupo de crianças que dizem ver aparições divinas e uma série de outras situações que coloca à prova não apenas sua resistência mas, principalmente sua inércia. O auge desta vida sem propósito acontece no ensaio de uma orgia que nunca se concretiza e termina com o que restava da máscara de cavalheiro cair por terra ao constranger uma de suas convidadas que exagera na bebida. A cena é desconfortável e provocadora na medida certa para revelar que aquela vida não é doce. Fellini constrói aqui uma crítica mordaz sobre a sociedade que avistava se aproximar (e permanece atual até hoje e ainda mais frívola com a fama gerada por reality shows e redes sociais). Não por acaso o filme termina com um tubarão morto na praia observado como se fosse um monstro. A face da morte talvez pareça ainda mais assustadora para quem tem uma vida sem propósito. Feito para ser tão fútil quanto seus personagens, A Doce Vida ainda provoca um fascínio ilusório aos olhos dos desavisados, seduzidos pela elegância de seus figurinos (que ganhou o Oscar) e pela linda fotografia em preto e branco. Outros dez filmes agraciados com o prêmio máximo do festival podem ser vistos nesta lista aqui do blog.

A Doce Vida (La Dolce Vita / 1960) de Federico Fellini com Marcelo Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk Aimée, Alain Cuny, Yvonne Furneaux, Magali Noël, Annibale Ninchi e Walter Santesso. ☻☻