domingo, 31 de outubro de 2021

HIGH FI✌E: Outubro

 Cinco filmes assistidos no mês que merecem destaque:

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PL►Y: A Grande Mentira

Ian e Helen: encontro de titãs. 

Não e todo dia que podemos ver artistas do porte de Ian McKellen e Helen Mirren no mesmo filme e, somente a conjunção do talento destes dois gigantes ingleses já seria necessário para um filme chamar a atenção. Sorte que A Grande Mentira tem outros predicados. A começar pela direção de Bill Condon, que quando deixa as firulas de lado e se prende no trabalho dos atores, consegue entregar bons trabalhos (basta lembrar que esta é sua terceira parceria bem sucedida com McKellen), outro ponto positivo é a narrativa envolvente adaptada do livro de Nicholas Searle, que no final surpreendente corre um risco danado de cair no ridículo... mas, neste ponto, voltamos ao melhor ponto do filme: sua dupla de protagonistas (que são capazes de nos fazer relevar qualquer exagero que o desfecho possa apresentar). O filme começa com um casal da terceira idade procurando romance na internet, eis que Betty (Helen Mirren) e Roy (Ian McKellen) se conhecem e resolvem se conhecer um pouco melhor. Bem, se conhecer dentro do que Roy considera permitido, já que logo depois de se mostrar um homem encantador para Betty, ele revela para plateia uma índole bastante duvidosa. Acostumado a aplicar golpes milionários com a ajuda de seu comparsa Vincent (Jim Carter, o mordomo de Downton Abbey) parecem ter um plano para tomar de Betty o patrimônio que ela acumulou ao longo da vida. Betty parece realmente encantada com Roy, que diz ter um filho (com quem não se dá muito bem) e inventa estar com dores crônicas na perna (o que acaba rendendo o convite para passar um tempo na casa da pretendente). Existe de fato um joguinho de sedução entre os dois, o que torna a experiência ainda mais divertida para o casal de protagonistas. Se Ian dá um verdadeiro show em suas expressões faciais que mudam de uma hora para a outra perante os fingimentos do seu personagem, Helen é pura discrição como uma mulher esperta que deixa a plateia sempre admirada em como pode se deixar enganar de tal forma por aquele sujeito. Vale ressaltar que de nada adianta o neto dela (Russel Tovey) despejar toneladas de suspeitas sobre Roy: a avó parece realmente cega de afeição por ele, ao ponto de um grande segredo do passado daquele senhor não provocar arranhões nos sentimento que nutre por ele. Seria um SPOILER dizer que o título em português deveria estar no plural? Bem, melhor parar por aqui. Embora o filme sofra por apresentar uma carta oculta (nunca mencionada) em seu último ato, Ian e Helen já fizeram do filme uma obra mais interessante do que qualquer final surpresa. 

A Grande Mentira (The Good Liar / Reino Unido - Alemanha - EUA / 2019) de Bill Condon com Ian McKellen, Helen Mirren, Russel Tovey, Jim Carter, Mark Lewis Jones, Laurie Davidson e Phil Dunster. ☻☻☻☻

PL►Y: Quarto 212

 
Chiara e Vincent: o peso do matrimônio. 

A verdade é que aos vinte anos casada com o mesmo homem, Maria Mortemart (Chiara Mastroianni) nunca foi adepta da monogamia. Segura de si e com uma queda por rapazes mais novos, o seu matrimônio com Richard (Benjamin Biolay) está com os dias contados, ou pelo menos, se o filme de Christophe Honoré seguisse normas e padrões, a coisa seguiria por este caminho mais convencional. Enquanto Richard quer conversar e tentar entender como o casamento chegou naquele ponto, Maria prefere ir embora, mas não para um lugar distante, ela vai para um hotel de frente para o apartamento em que o casal viveu por tantos anos. Ali, no quarto 212 ela começa a pensar que ela não deixou de gostar de Richard, mas que o peso dos anos de rotina debaixo do mesmo teto ajudaram a causar um desgaste ao qual não estava preparada para lidar. Diante de suas reflexões ela recebe a visita do jovem Richard, com vinte e poucos anos (Vincent Lacoste), com quem parece reviver ao passado sem perder de vista os problemas do presente. Não demora para que outros personagens importantes na vida de Maria comecem a aparecer por lá também, incluindo vários dos seus parceiros sexuais, sua mãe, uma antiga rival (que está disposta a conquistar Richard mesmo depois de tanto tempo) e até a voz da consciência de Maria encarnada em Charlez Aznavour. Perante a visita de tantas pessoa que atravessam a crise matrimonial de Maria, Chiara Mastroianni tem seu trabalho mais elogiado (foi premiada em Cannes pela performance e indicada ao Cesar de melhor atriz). A filha dos gigantes Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni, poderia facilmente fazer cara de perplexa a maior parte do tempo na brincadeira surreal que o texto de Honoré promove, mas ela prefere temperar sua personagem também com inteligência e bom humor na medida certa. Por conta disso, são nas cenas em que ela está em cena que o filme se torna mais interessante. Enquanto Quarto 212 centra seu devaneio na personagem, o filme funciona que é uma beleza, mas quando ele se desvia para o outro lado da rua o filme perde ritmo e compromete a brincadeira -  muito por conta do apaixonado Richard maduro ser um bocado tedioso. Ainda que não seja perfeito, o filme é divertido e faz pensar sobre como a rotina pode esmagar o romance na vida dos meros mortais. Inusitado em sua proposta, o filme é uma grata surpresa. 

Quarto 212 (Chambre 212 / França - 2019) de Christophe Honoré com Chiara Mastroianni, Vincent Lacoste, Benjamin Biolay, Camille Cottin,  Carole Bouquet, Harrison Arevalo e Claire Johnston. ☻☻ 

#FDS Halloween: A Mansão

 
Barbara: intenções desperdiçadas. 

Para terminar o #Fim de Semana eu assisti um filme que acaba de chegar no Prime Video. Confesso que me animei de ver o primeiro por conta da presença da veterana Barbara Hershey, uma das atrizes mais interessantes (e subestimadas de Hollywood), indicada somente uma vez ao Oscar (de coadjuvante por Retrato de Uma Mulher/1996) e considerada duas vezes a melhor atriz no Festival de Cannes (por Gente Diferente/1987  e Um Mundo à Parte/1988), a atriz teve seu último papel relevante no cinema em Cisne Negro (2010), filme que parece ter lhe aberto as portas para os filmes de terror, seja na franquia Sobrenatural, da qual participa de dois filmes ou em séries de TV (ela era a melhor coisa da malfadada Damien/2015). Aos 73 anos, Barbara já enfrentou dias melhores na carreira, mas ainda consegue ser o melhor motivo para vermos um filme como A Mansão, um dos lançamentos irregulares da parceira da Blumhouse com o Prime Video. A atriz vive Judith, uma ex-bailarina plenamente consciente dos efeitos da idade em seu corpo, mas física e mentalmente capaz de cuidar de si mesma. Após um episódio em uma festa de família, ela considera que é melhor internar-se em uma casa de repouso para ter maiores cuidados. A filha concorda na hora, mas o neto (Nicholas Alexander) não gosta da ideia, já que não consegue perceber a necessidade da avó ir para um lugar daqueles. Embora Judith faça amigos no lugar, ela percebe que alguns hóspedes possuem uma situação bastante complicada, mas, ainda assim, considera que a equipe do local por vezes exagera no tratamento - especialmente quando começam a força-la a tomar remédios para dormir. Não demora para que ela comece a ter visões estranhas e fique mais atenta aos alertas de idosos do local que ninguém leva a sério. Com o talento e profissionalismo de sua atriz, por vezes A Mansão parece que irá desenvolver uma trama interessante sobre a forma como os idosos são vistos e tratados na sociedade obcecada pela juventude (o que poderia ser um ponto ainda mais aprofundado no final do filme). Muitas vezes considerados incapazes e tratados de forma infantilizada, existem vários diálogos que deixam claro o desconforto da protagonista com a mudança na forma como é vista e tratada, ao ponto de suas vontades e  observações sobre o que está acontecendo naquele lugar serem completamente  ignoradas. Pena que o filme não aprofunda estas questões e quando se aproxima do desfecho opte por soluções apressadas que fazem até a surpresa do final perder o impacto, afinal, a ambiguidade que era anunciada até a metade se perde logo depois. A impressão é que lá pelo meio do caminho o orçamento ficou curto e resolveram terminar logo com as gravações, desperdiçando não apenas a ótima atriz que topou a empreitada como a ideia promissora também.

A Mansão (The Manor / EUA - 2021) de Axelle Carolyn com Barbara Hershey, Bruce Davison, Fran Bennett, Nicholas Alexander e Jill Larson. ☻☻

sábado, 30 de outubro de 2021

#FDS Halloween: Maligno

 
Anabelle Wallis: um assassino sempre por perto. 

Descendente de chineses malasianos, James Wan se tornou um dos nomes mais rentáveis quando o assunto é filmes de terror. Afinal, ele está envolvido com as duas franquias mais rentáveis do gênero no século XXI. Foi ele que concebeu a atmosfera de Jogos Mortais em seu curta de 2003 para no ano seguinte inaugurar a franquia. Quando o filme rendeu várias sequências ao longa da década, Wan já se firmava não apenas como diretor mas também produtor e roteirista no cinema e na televisão. Em 2008 inaugurou outra franquia milionária com Sobrenatural que criou toda uma seara de spin offs isnpirado em seus artefatos amaldiçoados e nas desventuras do caçador de assombração Josh Lambert (Patrick Wilson). Caído nas graças dos estúdios por sua inventividade, orçamentos baixos e grandes retornos de bilheteria, Wan acabou dirigindo até um filme de super-herói, o Aquaman (2018) - que tem a continuação anunciada para o ano que vem. Entre um e outro o diretor trabalhou em Maligno, filme que visa trazer algo completamente novo para o gênero, mas que enfrentou problemas com a produção e a distribuição em tempos de pandemia. Acabou lançado de forma bastante discreta e agora está disponível no HBO MAX (que criou até uma cinelist dedicada ao diretor chamado Hallo-Wan). De fato, Maligno está sempre na busca de trazer algo novo e surpreender o espectador, ao ponto de sua primeira hora parecer uma grande confusão enquanto a plateia tenta entender o que está acontecendo. A introdução não deixa muito claro do que estamos prestes a ver, não sabemos se é um monstro, um alienígena, uma pessoa com deformações, uma assombração... sua real protagonista, Madison (Annabelle Wallis), mulher que enfrenta dificuldades para ter filhos e enfrenta dificuldades com o esposo agressivo (Jake Abel). Eis que após uma briga, o esposo é assassinado por uma criatura sombria e este é só o início de uma sucessão de mortes sem explicação que parecem ter relação com Madison. Aos poucos a história da personagem começa a ter ligação com as mortes - e o fato de ter sido adotada e ter sua origem desconhecida, faz com que a família de Madison e a polícia comecem a investigar o passado da protagonista. Como eu já disse anteriormente, Wan cria uma verdadeira bagunça no início para confundir o espectador com todas as possibilidades que a trama oferece, para aos poucos filtrar as pistas e criar uma relação bastante incomum entre a mocinha e o assassino da história. Depois da primeira hora Maligno entra nos eixos e  oferece explicações tão mirabolantes que é impossível ficar indiferente, especialmente quando o vilão da história se revela e aquele arrepio é inevitável. Vale ressaltar que o envolvimento de Wan com os filmes da DC colaborou muito para a concepção do monstrengo que aparece por aqui, as cenas de luta protagonizadas por ele na segunda metade do filme impressionam e não fariam feio num filme de origem de um supervilão (a cena na cela é a mais memorável do filme). Se você não levar a sério e der um desconto para os momentos em que o filme se enrola nas próprias intenções, a produção pode ser bastante interessante em sua busca por originalidade.

Maligno (Malignant / EUA -2021) de James Wan com Annabelle Wallis, Maddie Hasson, George Young, Michole Briana White, Susanna Thompson e Jake Abel. ☻☻

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

#FDS Halloween: Trilogia Rua do Medo (1994 | 1978 | 1666)

 
1994: a cara do terror juvenil do final do século XX.  

Com o Dia dos Bruxas batendo à porta no dia 31, resolvi dedicar o #FimDeSemana de outubro aos filmes de terror disponíveis nas plataformas de streaming por aqui. Para começar, resolvi destacar a trilogia de terror que faz alguns meses está em cartaz na Netflix. Os filmes da trilogia Rua do Medo foram concebidos para ser lançados nos cinemas, mas devido à pandemia e o medo de uma bilheteria baixa, fez com que o estúdio optasse por outra estratégia de lançamento. Baseado na série de livros do escritor R.L. Stine, os filmes são pautados na maldição que paira sobre a cidade de Shadyside, que mesmo sendo aparentemente pacata, periodicamente é marcada por um morador surtado que resolve assassinar alguns moradores das redondezas.  Em Rua do Medo - 1994 o assassinato acontece dentro de um shopping e começam as especulações na cidadezinha sobre o que pode ter gerado aquele acontecimento. Logo um grupo de amigos liderado por Deena (Kiana Madeira) começa a juntar as peças e perceber que existe uma estranha lógica naqueles crimes desde que a cidade executou uma jovem acusada de bruxaria e... melhor não contar mais, já que as motivações dos crimes se estendem por três filmes bem amarradinhos e que a Netflix lançou sabiamente com um intervalo curto entre um e outro (eu esperei o lançamento dos três para assistir todos de uma vez e não me arrependo, já que considero que acabou funcionando melhor assim). Também ajuda que as três partes sejam dirigidas pela mesma pessoa, no caso da diretora Leigh Janiak, que já é escolada no gênero - ela dirigiu um terror indie chamado Honeymoon (2014) que vale a pena ser peneirado por aí, além de episódios das séries Outcast e Pânico. Falando em Pânico (1996), o longa de Wes Craven é uma forte referência para o primeiro filme desta trilogia, já que a cena inicial lembra muito a quebra de paradigmas estabelecida na franquia, sendo seguida pela humor e a concepção do assassino mascarado. O tom jovem que deu novo fôlego aos Slasher Movies dos anos 1990, dá o tom por aqui oferecendo espaço para a apresentação de toda uma mitologia envolvendo a cidade e seus assassinos assustadores, além disso o filme capricha na trilha sonora noventista e põe um verniz mais atual ao colocar como par romântico central Deena e sua namorada, Sam (Olivia Scott Welch) - adolescente que se torna a principal motivação para os desdobramentos da maldição. Responsável por introduzir a história, o filme acerta em suas escolhas e aumenta a expectativa para as partes seguintes. 

1978: A origem Slasher como referência. 

Se a primeira parte é baseada na reciclagem dos slashers realizada nos anos 1990, a segunda parte bebe diretamente nos clássicos do gênero, mais especificamente em Sexta-Feira 13 (1980) e sua trama ambientada em um acampamento para adolescentes.  A sequência é um desdobramento dedicado à sobrevivente de um dos acontecimentos macabros de Shadyside, no caso, o inexplicável massacre executado por um pacato monitor de acampamento. Em Rua do Medo - 1978 (que não por acaso é o ano de lançamento de Halloween de John Carpenter), nós acompanhamos duas irmãs bem diferentes, a rebelde Ziggy (Sadie Sink da série Stranger Things) e a comportada Cindy (Emily Rudd) que vão precisar colocar as desavenças de lado para saírem com vida daquela carnificina. Aqui, o tom do filme é diferente, as mortes são bem mais chocantes, especialmente por envolver crianças o que compromete os momentos de alívio cômico. A atmosfera é bem mais sombria. No entanto, é interessante ver as histórias de Shadyside ganhar corpo e começar a revelar um pouco da lógica que está por trás dos acontecimentos que tornaram a cidadezinha em um lugar bastante assustador. Talvez por se moldar demais nos grandes clássico so gênero, o filme pareça o menos criativo da trilogia (ele até explora mais a conduta sexual dos personagens, apresentando até cenas de nudez juvenil - o que no gênero significava ser a próxima vítima do assassino). Para fechar a história, a trilogia vai para a origem de tudo em 1666, quando conhecemos a história de Sarah Fierce que foi executada por acusações de bruxaria, sendo que... nem tudo o que era anunciado nos filmes anteriores sobre ela mostra-se verdadeiro. Questões como preconceitos, relações abusivas, extremismo religioso e misoginia recebem destaque numa trama que bebe nas fontes dos clássicos do terror envolvendo bruxas, mas sem perder de vista uma leitura atualizada e contemporânea. A crítica considera este o melhor da trilogia, ao conseguir amarrar as pontas dos filmes anteriores de forma bastante coerente e assustadora em seu contexto de retrato social de uma época em que mulheres que não se enquadravam nos padrões eram queimadas sob acusação de bruxaria.  Aqui, os slashers movies ficam de lado e elementos como magia negra e satanismo ganham destaque, revelando alguns segredos muito bem escondidos de Shadyside. Outro ponto interessante do filme  é a utilização do elenco jovem dos filmes anteriores vivendo outros personagens em outro tempo, num exercício de versatilidade muito bacana. Como não poderia deixar de ser, o filme retorna ao ano de 1994 para que as coisas se resolvam, mas deixa alguns elementos para produções futuras. Para quem curte filmes de terror, a trilogia Rua do Medo é uma boa pedida, especialmente pela coerência com que apresenta sua história.  

1666: dissonantes na fogueira. 

Rua do Medo - Parte 1: 1994 (Fear Strear - 1994 / EUA - 2021) de Leigh Janiak com Kiana Madeira, Olivia Scott Welch, Benjamin Flores, Jr., Julia Rehwald, Fred Hechinger, Ashley Zuckerman e Gillian Jacobs. ☻☻

Rua do Medo - Parte 2: 1978 (Fear Strear - 1978 / EUA - 2021) de Leigh Janiak com Sadie Sink, Emily Rudd, Ryan Simpkins, McCabe Slye, Matthew Zuk, Michael Provost, Ted Sutherland e Kiana Madeira ☻☻

Rua do Medo - Parte 3: 1666 (Fear Strear - 1666 / EUA - 2021) de Leigh Janiak com Kiana Madeira, Olivia Scott Welch, Ashley Zuckerman, Benjamin Flores Jr., Fred Hechinger e Jeremy Ford ☻☻

PL►Y: O Espião Inglês

 
Benedict, Angus e Rachel: a eficiência de ter tudo no lugar certo. 

Greville Wyne (Benedict Cumberbatch) é um cidadão britânico comum. Engenheiro mecânico em sua formação e trabalhando com  venda de peças, Greville é casado com Sheila (Jessie Buckley) e tem um filho pequeno. A vida dele é bastante comum e, por isso mesmo, foi recrutado para atuar como espião do MI5 para trazer informações da União Soviética durante o famigerado período da Guerra Fria no início dos anos 1960. Por ser considerado acima de qualquer suspeita em suas viagens de negócios, ele parece mal saber o risco que está correndo ao realizar uma ponte entre as informações privilegiadas do soviético Oleg Penkovsky (Merab Ninidze) e o mundo da espionagem. Os problemas começam quando os dois começam a levantar suspeitas e suas vidas são colocadas em risco. Baseado em uma história real, O Espião Inglês é o segundo filme do britânico Dominic Cooke, que embora tenha pouca experiência no cinema, merece elogios por fazer tudo certinho com o roteiro eficiente que tem em mãos. Cooke sabe conduzir o bom elenco (especialmente Benedict e Merab que apresentam uma ótima liga em cena), acerta no tom que foge do estilo pomposo comum a este tipo de produção e consegue trabalhar o humor antes que a tensão invada a trama de vez. No entanto, o mais importante é que consegue se desviar da tentação de tratar seus personagens como heróis e os apresenta como pessoas comuns, com suas rotinas familiares e de trabalho, seus prazeres em assistir um espetáculo no teatro e a construção do laço de amizade que se torna fundamental para o desfecho desta história. O maior problema do filme nem está no filme, mas no fato da história ser muito parecida com a de Ponte dos Espiões (2015) de Steven Spielberg, o que deixa um sabor de reprise por boa parte da sessão. A sorte é que o filme de 2015 está entre os filmes mais frios e mecânicos de Spielberg e Cooke, sabiamente, investe num tom completamente diferente. Particulamente, considero o resultado deste aqui bem mais atraente do que o filme estrelado por Tom Hanks ( e que rendeu o Oscar de coadjuvante para o calejado Mark Rylance). O Espião Inglês só perde um pouco o pique quando chega na parte em que Greville sofre as consequências de sua lealdade ao informante e apela para algumas cenas que parecem implorar uma lembrança de Cumberbatch nas premiações (nem precisava, ele já está cotado por outro filme, Year of The Dog da Jane Campion), o filme derrapa um cadinho no sentimentalismo, mas  nada que comprometa o saldo geral da produção. 

O Espião Inglês (The Courier / Reino Unido - EUA / 2021) de Dominic Cooke com Benedict Cumberbatch, Merab Ninidze, Jessie Buckley, Rachel Brosnahan, James Schofield, Fred Haig, Emma Penzina, Angus Wright e Keir Hills. ☻☻☻☻

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

10+ Denis Villeneuve

Nascido no Canadá em 1967, Denis Villeneuve caiu nas graças de Hollywood na última década após chamar atenção com seus dramas inventivos. Esta lista relembra os dez filmes que o diretor fez até agora de acordo com a minha ordem de preferência (e, confesso, que fiquei surpreso com a cotação de alguns filmes que aparecem no blog). Vale ressaltar que está lista é totalmente subjetiva, o que não impede que você discorde e tenha a sua ordem preferencial (se puder escrever a sua nos comentários, eu agradeço). Segue a lista por ordem de favoritismo e, ironicamente, começando do início da carreira do moço...

Começando os trabalho após dirigir curtas e vídeos, Villeneuve constrói uma comédia romântica diferente com toques surreais (a começar pelo título) sobre um casal que se ama mutuamente de forma platônica. Tendo início em um acidente (e estendendo o mês de agosto até que as coisas se resolvam) é uma obra que serve mais pela curiosidade acerca da estreia de Denis. 

Sucesso de bilheteria e de crítica, o filme foi o segundo projeto de Villeneuve em Hollywood. O curioso é que apesar de ser um filme sobre combate ao tráfico de drogas, o cineasta utiliza caminhos inesperados em sua execução - a começar por colocar Emily Blunt como protagonista para aos poucos dar cada vez menos destaque à sua personagem. O resultado foi o filme ter ganho três indicações técnias ao Oscar uma sequência sem Emily e sem Villeneuve. 

Nesta segunda obra o diretor começou a refinar sua estética e a buscar os sentimentos difíceis de seus personagens no decorrer da trama. Questões como morte, culpa e redenção são os elementos que compõem o relacionamento da modelo Bibi Champagne (Marie-Jozée Croze) e Evian (Jean Nicolas Varreault). Se o filme parece comum para você, acrescente a ideia de que ele narrado por um peixe...

Sou daqueles que dão crédito à versão cinematográfica do cineasta para a obra de Frank Herbert - na esperança de que o melhor ainda está por vir na sequência prometida para 2023. Aqui, Villeneuve tem mais uma vez a chance de construir um mundo para seus personagens e constrói momentos impressionantes e outros de puro didatismo sobre a obra adaptada. Que venha a segunda parte. 

Baseado na obra de José Saramago, este deve ser o filme mais enigmático do diretor. Contando a história de um homem que se depara com seu duplo e as situações que colocam em dúvida suas escolhas e a própria identidade, o filme se desenvolve lentamente na sobreposição dos dois personagens (no que muitos consideram uma alegoria sobre o adultério). Agora... explica aquela aranha!

Jake Gyllenhaal gostou tanto de trabalhar com o diretor nas ambiguidades que este filme reserva que acabou trabalhando com ele novamente em seguida. Jake vive um policial que investiga o sequestro de duas meninas e, junto ao pai de uma delas (vivido por Hugh Jackman), irá ultrapassar os limites entre justiça, crime e vingança. Um filme bastante tenso e provocador, mas que talvez seja o mais convencional do diretor. 

O terceiro filme de Villeneuve deve estar entre os mais assustadores que já assisti. Ao reproduzir uma tragédia em uma escola em Montreal no Canadá em 1989, Villeneuve tenta desvendar um pouco da psique do responsável pelo massacre (e revela elementos assustadores). A narrativa multifacetada, apresentando o fato pela ótica de outros personagens, promove um resultado ainda mais impressionante. 

Apesar de muita gente lembrar desta produção como o filme que não rendeu aquela merecida indicação ao Oscar para Amy Adams, o filme tem o mérito de desviar o foco da ficção científica para outro lado. É verdade que a ideia do Tio Sam de resolver tudo com uma guerra está lá, mas perde espaço para a ideia de que comunicar-se com o que lhe parece estranho ser uma experiência bastante reveladora. 

Depois dos elogios e prêmios de Politécnica, Villeneuve foi parar no Oscar com sua adaptação para a aclamada peça de Wajdi Mouawad (mas inacreditavelmente perdeu a estatueta de filme estrangeiro para o xaroposo Num Mundo Melhor). A trama conta a história de dois irmãos que se deparam com um segredo inusitado da mãe em seu testamento. O fato os levará ao contato com uma realidade que nunca imaginaram e revelará um passado doloroso para toda a família. Um filme surpreendente. 

Podem me tacar pedra, mas eu adoro a continuação feita para o clássico de Ridley Scott pelas mãos de Villeneuve. Acho genial a forma como ele amplia aquele universo e constrói uma sequência original e plenamente conectada ao original que insere o investigador K (Ryan Gosling) plenamente conectado à mitologia da obra de Phillip K. Dick. Além disso, tem aquelas cenas que fazem os fãs de Deckard e Rachel ficarem presos na cadeira... o filme é tão fiel ao original que fracassou nas bilheterias (tal e qual o filme de 1982). Um novo clássico!

Na Tela: Duna

 
Thimothée e Rebecca: mãe e filho num deserto grandiloquente. 

Duna, o livro de Frank Herbert, é uma obra-prima da ficção científica e, por conta disso, coleciona milhares de fãs desde o seu lançamento em 1965. Alguns deles resolveram fazer uma versão para o cinema em 1984 com direção de David Lynch, mas o filme foi um fracasso de bilheteria, se tornou motivo de piada por suas bizarrices e até recebeu o desprezo do seu próprio diretor. Afinal, reza a lenda que Lynch filmou uma versão de quatro horas para contar a história do herói Paul Atreides, mas que os produtores exigiram um corte de duas horas e ainda começaram a vetar as solicitações feitas por Lynch.  Dito isso, não é surpresa que o filme foi um fiasco (como fã de Lynch eu tentei assistir, mas desisti antes da primeira meia-hora. Agora que o longa está em cartaz na Netflix, tentarei assistir novamente). Eis que passado o trauma, resolveram criar outra versão. Quase quatro décadas depois, convidaram o canadense Denis Villeneuve para a empreitada. Denis também tinha lá seus traumas quando a produção começou, já que depois do fracasso comercial do ambicioso Blade Runner 2049 (2017) chegou a considerar que não seria convidado para trabalhar novamente. Sorte que quem entende de cinema sabe que a sequência do filme de Ridley Scott é tão obra-prima quanto o primeiro filme e que o diretor merecia novas chances de construir mundos para a telona. Interessante que antes do sucesso de A Chegada (2016), era difícil imaginar que o diretor se tornaria o grande nome da ficção científica cinematográfica do século XXI (embora já demonstre sinais de saturação). Chegado a dramas intimistas na fase inicial de sua carreira, este deve ser o diferencial para dar alma ao corpo de efeitos especiais de suas obras no gênero. No fim das contas, parece que Duna curou os traumas de todo mundo. Tornou-se a maior bilheteria mundial desde a reabertura dos cinemas em tempos de pandemia e recentemente teve a sua sequência garantida - o que é muito importante para a apreciação do filme. Lembra do que houve com a versão de David Lynch? Pois é. Villeneuve também criou uma adaptação pensada para mais de um filme (na verdade pensou numa trilogia) e esta acaba se tornando a grande restrição do filme que, visivelmente, serve como espécie de introdução à trama. Falando em introdução, demora um bocado para o filme engrenar com toda a preocupação de tornar compreensível aquele universo construído por Frank Herbert. Haja nomes e palavras estranhas em torno da história do planeta Arrakis, que é constantemente explorado por conta da substância conhecida como "especiaria", uma espécie de droga alucinógena benéfica para  quem a consome. Por ela as guerras são travadas, assim como jogos de poder e traições que movimentam a trama. O engraçado é que Villeneuve opta por ser bastante conciso em alguns momentos (como a introdução na voz de Zendaya que resume a história do planeta em poucas frases) e bastante moroso em outros. Em vários momentos Duna se arrasta em pura contemplação à grandiloquência do mundo construído para o filme. Dos imensos desertos habitados por vermes gigantescos, passando pelas naves impressionantes e os veículos que parecem libélulas mecânicas, a atenção a estes elementos parecem ter tanto peso quanto os personagens da trama. A história é centrada na família do Duque Atreides (Oscar Isaac), que casou com uma mulher ligada à bruxaria (Rebeca Ferguson) e tiveram um filho, Paul (Thimothé Chalamet), que parece predestinado a algo grandioso. No entanto, tão logo a família chega à Arrakis, existe um clima de conspiração no ar, já que o planeta e seus habitantes calejados rejeitam a ideia de um novo explorador. No entanto, existe outras figuras imponentes de olho na extração das especiarias... é estranho que dada a alardeada complexidade da obra literária, o filme pareça carregar uma história tão simples. Levando em consideração o didatismo do roteiro na apresentação daquele universo, personagens e ações (que às vezes transborda em exageros como os momentos como um personagem dizendo "vamos decolar" para no minuto seguinte a nave decolar ou de Jason Momoa trancando uma porta para no minuto seguinte uma personagem dizer que "ele trancou a porta") e ter tudo no lugar certo (atuações convincentes, efeitos especiais competentes, trilha sonora excelente e cenas de ação grandiosas para espantar o sono quando ele aparece), Duna termina com a sensação de ser uma longa introdução e, não é por acaso, que a personagem de Zendaya diga que "isso é apenas o começo" quando esta primeira parte está em seus minutos finais - pouco depois do franzino Paul de Chalamet demonstrar que está disposto a crescer e assumir seu papel neste conflito instaurado por outras instâncias. Não vou tecer muitos comentários sobre o trabalho do mocinho até que a sequência saia em 2023. Se o objetivo é apresentar a ideia ao espectador para que ele compre esta nova versão, o filme funciona, mas depende muito da segunda parte para justificar sua existência. 

Duna - Primeira Parte (Dune/Estados Unidos - Canadá - Hungria - Noruega - Ìndia /2021)  de Denis Villeneuve com Thimothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Jason Momoa, Zendaya, Javier Bardem, Dave Bautista, Josh Brolin, Charlotte Rampling, Stellan Skarsgård eDavid Dastmalchian. ☻☻☻

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

PL►Y: Vento Seco

Teóphilo e Lelo: o desejo em cenas para maiores. 

Selecionado para a Mostra Panorama do Festival de Berlim do ano passado, o brasileiro Vento Seco chamou a atenção não apenas por suas cenas homoeróticas (bastante) explícitas,  mas também por ser um filme brasileiro ambientado em Goiás, mais precisamente na cidadezinha de Catalão, terra natal do diretor Daniel Nolasco. Em entrevistas o cineasta sempre ressaltou como as pessoas ficavam surpresas quando relatava as histórias do vivência homossexual em sua cidade e o filme é a sua forma de recontar os causos em formato cinematográfico. Entre histórias, points e personagens, Vento Seco se constrói entre a realidade, a fantasia e o fetiche, em cortes, narrações em off e uso bastante inventivo das cores para contar a história de Sandro (Leandro Faria Lelo), homem maduro que não assume a sua identidade sexual na vida real - mas a vivencia plenamente entre as árvores de eucalipto das redondezas e nos sonhos banhados de luxúria. Se por um lado ele se relaciona com um colega de trabalho (Allan Jacinto Santana), por outro lado, ele se sente cada vez mais atraído por um novo empregado da fábrica de fertilizantes em que trabalha (Rafael Teóphilo). Assim, mesmo sem se dar conta dos conflitos que carrega há tempos dentro de si, ele começa a mergulhar cada vez mais nos desejos mais escondidos. Pode se dizer que Nolasco é um cineasta ousado, sem pudores para mostrar o que o cinema convencionou considerar inadequado para a plateia, no entanto, imprime ao seu primeiro longa metragem a mesma estética já exibida em seus curtas. Existem muitos closes em partes específicas do corpo masculino, muita nudez e cenas afrontosas que não torna o filme recomendável para quem considera a anatomia masculina ofensiva na tela grande ou que considera sexo entre homens algo a não ser revelado em filmes que fogem à seara pornográfica. Debaixo das cenas tórridas (e acreditem, o diretor vai mais longe do que a maioria ousa ir), existe uma vasta gama de emoções a ser trabalhada. A não aceitação de si mesmo, a vergonha, o preconceito, a intolerância, o ciúme, a censura, a violência... o texto de Vento Seco constrói sua história e personagens através de elementos que já foram vistos em inúmeros filmes de temática LGBTQIA+, no entanto, os costura com personalidade, coragem e fluídos corporais. Em algumas cenas o filme parece evocar o estilo de David Lynch no que possui de mais onírico, embaçando o que é real e o que é imaginário, abraçando uma cadência imagética entre a rotina mais comum entre um sonho (ou seria pesadelo?) erótico. No entanto, para além do sexo como elemento narrativo, Nolasco apresenta várias ironias no seu texto que fazem a diferença e sustentam o filme em seu objetivo de ser levado a sério, são elas os comentários sobre o clima seco e a frieza noturna de doer os ossos, os lábios que se deterioram naquele ambiente, a ideia de um segredo proibido que deve ser mantido (mas que outras pessoas já conhecem faz tempo), a cena no parque de diversões ou o discurso no rodeio enquanto Sandro busca alguma satisfação com um desconhecido. No entanto, o filme peca em alguns cortes que retiram da edição final momentos que seriam importantes para a trama (a violência contra um dos personagens e o desfecho de Cezar), mas acho que a ideia de Nolasco é fugir de tudo que é convencional, já que o cenário escolhido já traria esta ideia de monótona normalidade. Vale destacar que o filme oferece ao protagonista Leandro Faria Lelo um grande desafio, mas que ele executa com bastante destreza. Da exposição corpórea às emoções que estão escondidas sob o rosto de pedra (que por vezes revela a vulnerabilidade em sua plenitude), o personagem se torna fácil um dos mais interessantes da cinematografia nacional, embora seja necessário ter maior de dezoito anos para conhecer sua história, real ou imaginária. Porém, definitivamente, não é para todos os gostos.

Vento Seco (Brasil/2020) de Daniel Nolasco com Leandro Faria Lelo, Allan Jacinto Santana, Renata Carvalho, Rafael Teóphilo, Leo Moreira Sá e Mel Gonçalves. ☻☻☻

terça-feira, 26 de outubro de 2021

4EVER: Gilberto Braga

1º de novembro de 1945✰ 26 de novembro de 2021

Nascido na cidade do Rio de Janeiro em 1º de novembro de 1945, Gilberto Tumscitz Braga era filho de um escrivão da polícia e uma dona de casa. Formado em literatura pela PUC - RJ, seus primeiros trabalhos foram como professor na Aliança Francesa e crítico de teatro e cinema no jornal o Globo. Sua estreia como autor na TV foi com uma adaptação de A Dama das Camélias estrelada por Glória Menezes em 1972, mas sua primeira telenovela só aconteceu dois anos depois com A Corrida do Ouro, em parceria com Janete Clair e Lauro Cesar Muniz.  Seu primeiro grande sucesso foi com A Escrava Isaura (1976) que se tornou uma febre mundial, foi o primeiro hit de uma carreira brilhante na teledramaturgia. Gilberto assinou novelas do porte de Dancin' Days (1978), Vale Tudo (1988), Força de um Desejo (1999), Celebridade (2003) e Paraíso Tropical (2007), além das minisséries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992). Gilberto era famoso por sua discrição, enquanto suas novelas eram marcadas pela sofisticação e a  profundidade dos conflitos geralmente atrelada a um retrato ácido da elite brasileira. O autor faleceu em decorrência do quadro de infecção generalizada e complicações do Mal de Alzheimer. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

PL►Y: Falsos Milionários

Gina, Richard e Evan: rumo ao trambique perfeito. 

Suspeita-se que Old Dolio (Evan Rachel Wood) recebeu este nome em homenagem a um idoso que estava à beira da morte e que seus pais acreditavam que ela herdaria tudo que era dele. Como esta ambição não se concretizou, restou este nome estranho para uma garota que precisou crescer sob a responsabilidade de um casal de trambiqueiros. Vivendo de pequenos golpes, Robert (Richard Jenkins) e Theresa (Debra Winger), criaram a filha de uma forma bastante peculiar. Educada desde pequena para ser cúmplice das tramoias, sobrou pouco tempo para sua educação sentimental, o que a tornou uma jovem distante e incapaz de demonstrar emoções ou saber digerir seus próprios sentimentos. Além disso, crescer sempre sob a ameaça de despejo, ainda que morem em um escritório com uma parede que sempre escorre espuma em determinado horário, torna a rotina da família ainda mais esquisita. Eis que diante da necessidade de pagar o aluguel, o trio conhece Melanie (Gina Rodriguez), que se tornará cúmplice em alguns golpes e irá mudar a sólida dinâmica instaurada naquela estranha família. É preciso deixar registrado que a direção e o roteiro do filme são de Miranda July que em seu status de artista multimídia pode ser acusada de tudo, menos de ser convencional. Escritora, diretora, atriz, cantora e artista performática digital ou ao vivo, Miranda curte pitadas de nonsense em sua obra e neste seu terceiro longa-metragem, talvez ela tenha alcançado o seu resultado mais próximo do "normal". Eu disse próximo. Kajillionaire (o nome original que se refere à ideia de prosperidade que aqui se tornou o enganoso Falsos Milionários) parece ser uma dramédia bizarra sobre uma família complicada, mas consegue ser um tanto mais do que isso, quando começa a fazer sua protagonista desconfiar que existe algo de muito equivocado em sua trajetória. A começar pelo curso de maternidade que começa a frequentar para ganhar alguns trocados e depois com a chegada da luminosa Melanie, que começa a lhe proporcionar um desconforto jamais experimentado. É possível notar que até determinado ponto, ela era vista menos como uma filha e mais como uma cúmplice, sujeita às ideias, mandos e desmandos dos pais, pelo menos até que ela comece a questionar o que ela deseja para si mesma. É neste ponto, lá pela segunda metade do filme que a história engata de vez, demonstrando como o desejo pode ser uma força transformadora. Nesta guinada, Miranda capricha na sutileza, deixando o espectador perceber aos poucos a mudança que esta acontecendo na personagem de Evan Rachel Wood, num caminho que aos poucos se torna até óbvia dentro de uma estrutura anticonvencional. Embora seja um filme repleto de esquisitices, Miranda transforma aquela relação que aos poucos ganha contornos quase inevitáveis o aspecto mais natural de seu filme. Em seus filmes anteriores (Eu, Você e Todos que Conhecemos/2005 e O Futuro/2011), Miranda também assumia o posto de protagonista, aqui ela preferiu ficar somente atrás das câmeras e com isso cedeu espaço para a atuação mais estranha de Evan Rachel Wood (que está mais robótica do que em Westworld) que se torna um ótimo contraste ao carisma de Gina Rodriguez, que muda diretamente o tom do filme (e o foco de interesse da história) assim que aparece. Tão ambicioso quanto estranho, o filme peca pelo excesso de artifícios bizarros em seu início, mas tão logo deixa de enfatiza-los a todo instante, torna-se uma produção interessante. 

Falsos Milionários (Kajillionaire / EUA-2020) de Miranda July com Evan Rachel Wood, Gina Rodriguez, Richard Jenkins e Debra Winger. ☻☻☻ 

sábado, 23 de outubro de 2021

PL►Y: Honey Boy - O Preço do Talento

 
Noah e Shia: relação complicada. 

Acho que não resta dúvidas de que Shia LaBeouf é um sujeito complicado. Nascido em 1986 e se tornando nos anos 1990 um dos mais promissores atores infantis de sua geração, ele ensaiou uma boa carreira no cinema no início do século XXI, mas se envolveu em complicações tão variadas que seu próximo passo sempre parece incerto. Por conta das polêmicas envolvendo sua vida pessoal, seus bons trabalhos no cinema sempre ficam eclipsados (o último em Pieces of a Woman poderia ter lhe rendido uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante, mas denúncias de abuso de sua ex-namorada praticamente o baniram da divulgação do filme). Seria um exagero considerar que Honey Boy é um pedido de desculpas a todas as besteiras que Shia já fez na vida, mas ao menos serve para entender os elementos que fazem a cabeça do ator funcionar do que jeito que funciona. O longa marca a estreia do ator como roteirista e convence como uma espécie de diário realizado para exorcizar os demônios do passado, especialmente os ligados ao problemático relacionamento com o pai, um ex-palhaço de rodeio que o acompanhou a maior parte do tempo enquanto a carreira do astro mirim engatinhava. Não por acaso, o pai é vivido por LaBeouf (indicado ao Independent Spirit e com muito material para Freud explicar) enquanto o ator (rebatizado de Otis) é vivido na versão mirim pelo sempre ótimo Noah Jupe (também indicado ao Independent Spirit) e na fase adulta por Lucas Hedges. Por conta de problemas com a polícia que o levaram a fazer acompanhamento psicológico (além de internação em uma instituição), Otis acaba realizando um diários sobre os acontecimentos que marcaram sua infância e que, provavelmente, contribuíram para seu diagnóstico de estresse pós-traumático. Eu não sei se de fato o roteiro é baseado neste diário (isso se ele realmente existiu), mas o fato é que o filme se constrói de forma bastante eficiente com base neste argumento. A narrativa consegue ser bastante sincera e costurar realismo com toques de fantasia (por vezes amparada por referências à carreira do ator) alcançando um resultado envolvente, embora melancólico e tenso com base na relação entre pai e filho. Embora outros personagens apareçam com destaque no decorrer da história, o ponto nevrálgico da narrativa é o relacionamento complicado entre os dois que revela aos poucos camadas bastante sensíveis e agressivas desta convivência. A diretora Alma Har'el (famosa por seus trabalhos em vídeos e documentários nos Estados Unidos) realiza um um belo trabalho em sua estreia fora de sua zona de conforto. Ela filma de forma tão crua que o realismo daquela relação transborda da tela e incomoda o espectador, seja nas relações ásperas que vemos na tela ou pelas consequências que vieram depois. Embora caminhe de forma quase aleatória, o filme tem um trajeto bastante particular a seguir e termina quase como o início de sua razão de ser. Seja como for, Honey Boy (ou o Preço do Talento, como foi chamado por aqui) cumpre suas intenções da forma que deveria, ainda que em uma clara alusão ao perdão em tempos de cancelamento. 

Honey Boy: O Preço do Talento (Honey Boy - EUA/2019) de Alma Har'el com Lucas Hedges, Noah Jupe, Shia LaBeouf, Laura San Giacomo, FKA Twigs, Clifton Collins Jr., Martin Starr e Natasha Lyonne. ☻☻☻☻

PL►Y: The Trip

 
Aksel e Noomi: casamento em  crise sobrevivendo a assassinos.

Presente entre as produções mais vistas da Netflix, The Trip é um verdadeiro deboche à sanguinolência. Suas cenas de violência são tão absurdas que beiram o cômico. Some isso a um casamento em crise e três bandidos calhordas que não primam pela inteligência e você terá um prato cheio para uma comédia bastante obscura dirigida pelo senso de humor peculiar de Tommy Wirkola. O diretor de Zumbis na Neve (2009) que se aventurou por Hollywood em João e Maria: Caçadores de Bruxas (2013) e se tornou parceiro da Netflix no hit Onde Está Segunda? (2017) volta à trabalhar com a gigante do streaming repetindo sua protagonista, a sueca Noomi Rapace. Rapace vive Lisa, uma atriz que ainda não alcançou o reconhecimento que almeja. Casada com  um diretor insatisfeito pelos trabalhos na tv, Lars (Aksel Hennie), os dois resolvem passar alguns dias em uma casa casa isolada do pai de Lars. O que poderia ser um período para viverem bons momentos, logo deixa claro que será um momento complicado já que o casamento esfriou já faz um tempinho. Só que, ninguém imaginava que Lars iria querer se livrar da esposa por conta do seguro de vida ou que Lisa está disposta a inverter este plano ou que três bandidos cruzariam o caminho do casal - e os dois terão que engolir as desavenças para escapar do trio que resolveu aparecer por ali. Demora para que o filme coloque na mesa todas as cartas que tem na manga, chega até a abusar do recurso de voltar no tempo toda vez que uma novidade acontece - o que cria o efeito colateral de quebras de ritmo que nem sempre funcionam como deveriam. O fato é que entre torturas, ameaças, furos, tiros, cortes e muitas outras sandices regadas com muito sangue, Wirkola conta uma história de amor que tenta entrar nos eixos já que a vida do casal precisa que este sentimento seja reaceso, ou, pelo menos, demonstrem alguma cumplicidade. Como nos outros filme do diretor, ele não tem interesse algum de se levar a sério ou abordar questões relevantes junto aos seus personagens, aqui o principal é a sobrevivência e ponto. Se você tem estômago sensível é melhor não assistir ao filme repleto de cenas de riso nervoso, que por vezes parece uma versão revisitada do cultuado (e arrepiante) Funny Games (1997) de Mikael Haneke. Misturando edição nervosa, violência e jorros de sangue, The Trip serve para para passar o tempo, mas não traz nada que fique na memória por muito tempo. 

The Trip (I Onde Dager / Noruega - 2021) de Tommy Wirkola com Aksel Hennie, Noomi Rapace, Atle Antonsen, Christian Rubeck e André Eriksen. ☻☻

terça-feira, 19 de outubro de 2021

NªTV: Maid

Margareth e Rylea: a vida é dura.

Algumas produções tem o mérito de estrearem no momento exato para alcançar o sucesso desejado. Com todas as discussões atuais sobre relacionamentos abusivos, a minissérie Maid - que está em cartaz na Netflix se mostra um grande acerto ao se adequar à uma temática bastante atual através da história de Alex (Margareth Qualley), uma jovem que sonhava se tornar escritora mas engravida do namorado e embarca em um relacionamento bastante complicado, afinal, enquanto Alex tenta fazer o melhor que pode com os rumos que sua vida tomou, Sean (Nick Robinson), seu namorado, costuma buscar refúgio na bebida e, conforme Alex observa, ele se torna cada vez mais agressivo. É justamente quando ele cruza os limites daquela relação (e a frase "não quero tirar cacos de vidro do cabelo de minha filha novamente" ecoa um bom tempo em nossa cabeça), que ela foge com a menina (a fofa Rylea Nevaeh Whittet) sem saber muito bem para onde ir. Afinal, Alex tem um relacionamento complicado com a mãe (Andie MacDowell, mãe de Margareth na vida real), o pai sumiu faz algum tempo e ela não possui formação para exercer uma profissão rentável. Logo ela estará no meio do labirinto burocrático do Serviço Social do Tio Sam - e os momentos em que ela tenta entender a (i)lógica do sistema são bem interessantes -, ela também frequentará um abrigo para mulheres que sofreram com relações abusivas e encontrará um emprego de diarista que parece uma grande exploração. Entre brigas pela guarda da filha, promessas de uma vida melhor e várias outras situações que cruzam o seu caminho, é quase um milagre a forma como Maid consegue prender nossa atenção com a sucessão de dramas que recaem sobre sua protagonista. No entanto, a sua cadência parece tão realista, honesta e, sobretudo, esperançosa que torna-se uma empreitada envolvente para o espectador. Não por acaso, a minissérie é baseada em uma história real retratada no livro homônimo de Stephanie Land sobre a sua própria trajetória, talvez por isso, entre uma faxina e outra, a personagem demonstre sua sensibilidade literária para escrever crônicas sobre seus clientes (como "A Casa Pornô") ou divagar sobre um adolescente procurado pela polícia (após crescer em uma casa cheia de cadeados e um sótão assustador - que muda os rumos da narrativa). No entanto, a costura dos episódios seria completamente diferente se não contasse com Margareth Qualley na pele da protagonista. A estadounidense de 26 anos mostra-se cada vez mais interessante em cena e aqui apresenta sua performance mais cheia de nuances - e deve figurar nas premiações que se aproximam (acho que sua mãe seguirá pelo mesmo caminho na pele da instável Paula, mas eu também gostaria de ver Anika Noni Rose sendo lembrada pelo papel de Regina, mulher que vivencia uma transição muito interessante na história). Maid pode até não trazer grandes novidades, mas se constrói de forma bastante  contundente perante os temas que aborda de forma sensível e realista.

Maid (EUA-2021) de Molly Smith Metzler com Margareth Qualley, Andie MacDowell, Nick Robinson, Tracy Villar, Billy Burke, Raymond Abblack, Rylea Nevaeh Whittet, BJ Harrison e Anika Noni Rose. ☻☻☻☻

NªTV: Cenas de Um Casamento

 
Oscar e Jessica: amigos na vida real em crise na telinha. 

É preciso mais do que coragem para refazer um texto já filmado pelo mestre Ingmar Bergman, é preciso também um tantinho de cara de pau para lidar com todas as expectativas e a ampla disponibilidade geral de falar mal de sua obra que, jamais chegará aos pés do original. Afinal, poucos cineastas são capazes de construir atmosferas tão dramaticamente densas como Bergman, por vezes, tenho a impressão que seus dramas constroem verdadeiros filmes de terror psicológico dada a precisão da complexidade apresentada por eles. Não por acaso, vários diretores tentam imitar seu estilo e, por vezes, colhem até elogios. Nada do que escrevi até agora deve ser novidade para o israelense Hagai Levi, produtor, diretor e roteirista mais do que calejado, mas que resolveu fazer uma releitura atualizada do clássico Cenas de um Casamento do cultuado diretor sueco. Se a obra de Bergman foi concebida como minissérie de TV em seis episódios no ano de 1973, depois a obra foi estruturada como um longa com quase três horas de duração em 1974 (que levou para casa o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro daquele ano). Vale ressaltar também que o mergulho de Bergman pelos meandros de um casamento em crise deu origem a montagens teatrais pelo mundo (incluindo várias no Brasil), dito isso, é preciso ver esta minissérie da HBO com a clareza de que ela não ambiciona superar a obra de Bergman, mas construir uma releitura para os tempos atuais do clássico sueco. Dito isso é divertido notar que com todo o esmero da produção as maiores atenções recaiam mesmo sobre Jessica Chastain e Oscar Isaac, algo que parecia profetizado desde que os dois divulgaram o programa no último Festival de Veneza rendendo aquele vídeo comentado mundialmente - que se mostrou um verdadeiro triunfo marketeiro. Pena que durante a exibição dos cinco episódios na HBO (e sua disposição semanal no HBOMAX) a série tenha rendido mais comentários pela cena de nudez frontal de Oscar (dizem que por uma cláusula contratual em que Jessica solicitava à produção que seu corpo fosse exposto na mesma medida que de seu colega de elenco). Além de terem trabalhado juntos no magnífico O Ano Mais Violento (2014), Oscar e Jessica são amigos desde o tempo da escola de arte dramática (a renomada Juilliard School) e a intimidade de ambos é palpável em cada episódio, seja quando estão em crise ou quando se deparam com um laço afetivo mais forte do que imaginam. Aqui, Hagai mantém a espinha dorsal da história, faz uma alteração aqui e ali, mas principalmente insere muitas atualizações sobre as relações de gênero ocorridas nas quase cinco décadas que separa a minissérie da produção original. Mira (Jessica) e Jonathan (Oscar) são casados, possuem uma vida confortável, uma casa aconchegante e uma filha pequena, mas basta ver a entrevista presente no primeiro episódio para percebermos que aquele relacionamento começa a ruir. A partir daí o texto segue a rotina do casal, com cortes temporais a cada episódio de momentos específicos desta relação complicada. Entre a crise, uma traição, um divórcio, agressões (verbais e físicas), tentativas de reconciliação e desilusões variadas  a série se sustenta especialmente pelo trabalho da dupla que já provou ser das mais talentosas do cinema atual (embora nem sempre consigam papéis à altura de suas habilidades). Hagai ainda brinca com o fato de ser uma obra de ficção, iniciando os quatro primeiros episódios com cena de bastidores (em uma delas Oscar até comenta sobre o original, sinalizando uma das principais alterações feitas na dinâmica entre o casal). No entanto, a estrutura dos episódios cria um verdadeiro problema, já que o primeiro funciona muito bem ao apresentar os personagens, o segundo instaura a crise, o terceiro e o quarto se tornam o ápice da tensão deixando o quinto episódio meio sem graça em uma certa repetição cênica, o que faz do desfecho sem graça um verdadeiro pecado para a ambiciosa produção. 

Cenas de Um Casamento (Scenes of a Marriage / EUA - 2021) de Hagai Levy com Oscar Isaac, Jessica Chastain, Corey Stoll, Nicole Beharie e Sophia Kopera.  

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

PL►Y: Interrompemos a Programação

 
Bartosz (à esquerda): um motivo para ver o filme. 

Assisti ao polonês Interrompemos a Programação por conta de Bartosz Bielenia (Corpus Christi/2019), sem saber muito sobre a história ou ter lido críticas sobre a produção. Assim que vi o rosto do ator na Netflix eu assisti ao filme. O mais engraçado por perceber que o filme é muito parecido com o americano Jogo do Dinheiro (2016), dirigido por Jodie Foster e estrelado por George Clooney e Julia Roberts. Curiosamente, o filme perde ritmo na segunda metade, assim como americano, apesar de optar por um caminho diferente, mas que não aprofunda muito as questões que deseja abordar. Interrompemos a Programação almeja ampliar o leque em torno da história de um rapaz que invade armado um estúdio de TV para vincular sua mensagem em rede nacional. O filme de Jakub Piatek tenta radicalizar algumas questões, se torna mais agressivo e até chocante em alguns momentos, mas por vezes derrapa na gratuidade e na pressa em finalizar algumas questões que sinaliza sobre os conflitos de seus personagens, sobretudo do protagonista cheio de possibilidades e defendido com talento por Bartosz. Na pele de Sebastian podemos perceber sua urgência, angústia e um tanto de vulnerabilidade, construindo um contraste interessante nas cenas mais agressivas ao lado da apresentadora que se torna refém (Magdalena Poplawska) e do segurança que entendeu as demandas do rapaz, mas que também é vítima da situação. A tensão está lá no ponto de partida, as atuações também são competentes, mas o texto começa a se perder nas intenções e se torna apenas repetitivo conforme avançam as negociações e dos contornos da cabeça quente de Sebastian. Até a atmosfera claustrofóbica amparada pela locação única em um estúdio, aos poucos se dilui e perde a chance de compor o filme ambicioso que queria ser. Se não houvesse seu anterior americano, talvez o filme impressionasse até um pouco mais, mas ao desviar para espantar a sensação de déjà-vu, acaba tomando um caminho mais cerebral que não consegue dar conta. O resultado deixa o gosto da decepção. 

Interrompemos a Programação (Prime Time / Polônia - 2021) de Jakub Piatek com Bartosz Bielenia, Magdalena Poplawska, Andrzej Klak, Cezary Kosinski e Pola Blasik. 

PL►Y: Piratas da Somália

 
Peters na Somália: a verdade por trás de uma notícia. 

Acompanho a carreira de Evan Peters já faz algum tempo, mas só recentemente me dei conta que o moço já tem 34 anos e deixou de ter aquela cara de menino melhor amigo do Kick-Ass (2010), parece que finalmente sua transição para a fase adulta foi legitimada com o Emmy de ator coadjuvante pelo trabalho na minissérie Mare of Easttown (que ainda não assisti). Antes ele já tinha feito um trabalho que provava sua disposição de deixar o papel de adolescentes no passado. Em Piratas da Somália, em cartaz na Netflix, ele começa com aquele jeitão adolescente sem rumo que já vimos em trabalhos anteriores (como no ótimo Animais Americanos/2018) e termina barbudo, como se a cara de menino devesse ficar de vez para trás. Aqui ele interpreta Jay Bahadur, um rapaz que ambicionava se tornar um jornalista renomado, mas que não vê sinais de ter o sonho realizado. Apesar de ter no quarto o pôster do clássico Todos os Homens do Presidente (1975) - que já estabelece o tipo de jornalismo em que acredita - sua vida segue um caminho completamente diferente. Ele trabalha para uma empresa que pesquisa lenços de papel em supermercados, mora no porão na casa dos pais e ainda amarga o rompimento com a namorada que se mudou para várias milhas de lá. Eis que uma crise de coluna acaba dando início a um divisor de águas em sua vida, afinal ele conhece um jornalista renomado (participação especial de Al Pacino) que acredita que para ser um bom jornalista não precisa de um diploma, mas de características inatas para se impor perante a demanda por notícias. Ao assistir uma matéria em um telejornal (sobre o que o título anuncia), Jay decide partir para Somália por conta própria (financiado pela família) e conhecer a realidade local para vender as informações a quem possa interessar - pelo menos esta é a ideia inicial até que ele resolva escrever um livro sobre seu contato com o país. O que dá graça ao filme é justamente a forma como Jay dribla o total desamparo e inexperiência para conseguir atingir seus objetivos. Em sua jornada ele conta com a ajuda de Abdi (Barkhad Abdi), que lhe serve de guia, tradutor e espécie de mentor para sobreviver naquela realidade. Aos poucos Jay consegue conhecer um pouco daquela realidade e ter uma visão bem mais ampla do país, seus piratas e problemas sociais. Escrito e dirigido por Bryan Buckley, o filme pode não ser uma obra-prima (a parte final tem uma queda de ritmo bastante brusca), mas consegue manter o interesse do espectador ao apresentar uma visão mais tridimensional do que  costumamos ver na imprensa sobre aquele país. Bem cuidado e com doses de humor temperando sua simpatia, Piratas da Somália é baseado em uma história real que gerou um livro de sucesso e cita até o fato que gerou o filme Capitão Phillips (2013) que rendeu para Barkhad Abdi uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante, pelo papel do chefe dos piratas daquele filme (e aqui ele faz um papel completamente diferente se tornando um dos destaques da produção). 

Piratas da Somália (The Pirates of Somalia / Somália - Quênia - Sudão - África do Sul - EUA / 2017) de Bryan Buckley com Evan Peters, Barkhad Abdi, Al Pacino, Melanie Grifitth, Coral Peña e Robert Hobbs. ☻☻