segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

4EVER: Jandira Martini

10 de julho de 194529 de janeiro de 2024

Jandira Lúcia Lalia Martini nasceu na cidade de Santos em São Paulo. Graduou-se em Letras pela UniSantos e depois concluiu a Escola de Arte Dramática da USP. Jandira estreou profissionalmente como atriz aos vinte anos com o espetáculo A Crônica. Seu talento logo foi notado e lhe rendeu papéis de destaque em montagens de clássicos como A Falecisa (1966) de Nelson Rodrigues, Medeia (1970) de Eurípedes e Ricardo III (1975) de Shakespeare. Na década seguinte se tornou ainda mais conhecida por sua parceria na autoria e produção de peças teatrais ao lado de Marcos Caruso, entre elas as premiadas Sua Excelência, O Candidato (1986) e Porca Miséria (1993). Nos anos 1980 ganhou destaque na televisão como a esposa fantasma da novela Sassaricando (1987) na Globo e na participação na segunda versão de Éramos Seis (1994) no SBT.  Sua popularidade só aumentou como a Zoraide de O Clone (2001) e Puja de Caminho das Índias (2009). Ao longo da carreira, a atriz foi premiada com os maiores prêmios teatrais de nosso país, entre eles o APCA, Moliére, Shell e Mambembe. A atriz faleceu após uma longa batalha contra o câncer de pulmão.

domingo, 28 de janeiro de 2024

PL►Y: Nimona

Ballister e Nimona: união de excluídos.

Desde pequeno, Ballister sonha em ser um cavaleiro, mas sempre soube que era uma tarefa difícil já que a função no reino é desempenhada por nobres. Mesmo com a origem pobre, ele investe em seu sonho e sua trajetória se torna um exemplo para a quebra dos paradigmas daquele reino murado para proteger dos monstros que vivem do lado de fora. Com os olhos voltados para Ballister, seu grande momento será no dia em que ele se formará e a rainha irá honra-lo com o título de cavaleiro e fazê-lo um ponto de partida para que novas pessoas humildes possam ultrapassar os limites impostos por aquela sociedade. No entanto, no que era para ser o dia mais feliz de sua vida, Ballister acaba sendo acusado de um crime e passa a ser perseguido por todos, até pelo seu fiel amigo Goldenloin. Considerado um fugitivo, ele não pode contar com mais ninguém até que ele é procurado por Nimona, uma menina diferente que acha o máximo o fato dele ser o vilão da história. Mas Ballister não é o vilão. Ele apenas precisa de ajuda para  provar a inocência e, meio contrariado, aceita o apoio da menina que apresenta poderes de metamorfose, sendo capaz de assumir a aparência de pessoas e animais distintos. Apesar dele perguntar o tempo inteiro o que Nimona é, ela apenas se define como "Nimona", o que já é muita coisa. A animação de Nick Bruno e Troy Quane baseado na graphic novel de mesmo nome é quase um manifesto conta a ideia conservadora de colocar as coisas em caixinhas com suas classificações, no confronto reducionista do nós (o padrão) vs eles (os diferentes). Nimona é o que quer na hora que quer e, não por acaso, a amizade de Ballister (com voz de Riz Ahmed) e Ambrosius Goldenloin (voz de Eugene Lee Yana) sempre pretende ser algo mais. A ideia e a estética moderninha tem no entanto uma mensagem muito mais importante a dizer: o que importa não são os rótulos, mas as pessoas. Neste ponto, seja a índole, a amizade ou o amor, servem de contraponto para as mentiras e relações de poder que envolvem inveja, cobiça, traições e outras situações nada nobres. O grande truque do filme é em momento algum explicitar isso em diálogos, mas em ações para o  espectador possa presenciar esse princípio da forma mais lúdica possível. Assim, em momento algum duvidamos das virtudes de Ballister, assim como  descobrimos que toda fúria de Nimona na verdade é por conta da ideia de nunca ter sido compreendida ou acolhida em suas peculiaridades. Para ela, diante de um mundo que a rejeita, cabe apenas revidar, ou até, destruí-lo. O mundo aqui é uma mescla de medieval e futurista, mas que deixa bem claro que do que adianta tantas inovações se as ideias retrógradas permanecem? Com marcas da cultura queer em seu roteiro e a amplitude do alcance proporcionado pela Netflix obviamente que o filme gerou alguma polêmica em seu lançamento, mas foi lembrada com louvor na lista dos cinco finalistas da categoria de melhor animação no Oscar desse ano. A indicação consagra não apenas a estética do filme que foge do visual "fofinho" que se tornou comum ao gênero, mas também a ousadia de trazer personagens mais complexos para uma animação made in Hollywood

Nimona (EUA-2023) de Troy Bruno e Nick Quane com vozes de Chloë Grace Moretz, Riz Ahmed, Eugene Lee Yang, Frances Conroy, RuPaul e Lorraine Toussaint. ☻☻

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

INDICADOS AO OSCAR 2024: Ator

Bradley Cooper (Maestro) ao dar vida ao maestro Leonard Bernstein, o ator acumula a atuação com dirigir a si mesmo mais uma vez - ele fez o mesmo em sua estreia como cineasta em Nasce Uma Estrela. Aqui ele almeja retratar a genialidade e a bissexualidade do maestro assim como o casamento cheio de conflitos com a esposa. Esta é a quarta indicação ao Oscar de ator de Bradley, antes ele concorreu por Nasce Uma Estrela (2018), O Lado Bom da Vida (2012) e Sniper Americano (2014). Ele também já concorreu a ator coadjuvante por Trapaça (2013).  Pelo filme, ele também concorre como roteirista e produtor (categorias em que já concorreu antes). No geral, hoje, o ator possui doze indicações ao Oscar.

Cillian Murphy (Oppenheimer) atua desde o final dos anos 1990, mas chegou até Hollywood em 2002 com Extermínio de Danny Boyle. Desde então já fez diversos filmes, inclusive com Christopher Nolan (com quem trabalhou outras seis vezes). Para o grande público ele ficou mais conhecido após seus notório trabalho na série Peak Blinders. O irlandês de 47 anos finalmente foi notado pela Academia em seu trabalho como o cientista J. Robert Oppenheimer, o idealizador da bomba atômica. Em um trabalho intimista, Cillian vive a obstinação e a angústia do homem que criou algo que mudaria para sempre os rumos da humanidade. Pelo trabalho, Cillian já recebeu o Globo de Ouro de melhor ator dramático. 

Colman Domingo (Rustin) na pele do ativista que se tornou braço direito de Martin Luther King, o ator de 54 anos, foi indicado ao Oscar pela primeira vez. Colman tem um trabalho excepcional como o militante que teve que lidar com muitos preconceitos não apenas pela cor de sua pele, mas também por ser homossexual em uma época que os preconceitos era legitimado pelas próprias autoridades. O filme rendeu indicações do ator ao BAFTA, Globo de Ouro e Critics Choice o consagrando como um dos melhores atores da temporada. Colman ficou conhecido por seus trabalhos na série Fear the Walking Dead (2015-2023), nos filmes Zola (2020) e a versão recente de A Cor Púrpura (2023).

Jeffrey Wright (American Fiction) é outro ator que concorre ao Oscar pela primeira vez. Desde que ganhou destaque no cinema por seu trabalho em Basquiat (1996) o ator de 58 anos já fez muitos trabalhos importantes para o cinema e para a televisão (provavelmente o cientista de WestWorld/2016-2022 seja o seu papel mais famoso). No filme de estreia do diretor Cord Jefferson, ele vive um escritor que nunca foi muito levado a sério até ser orientado a escrever mais "feito um negro". Esta crítica mordaz sobre o mundo da literatura e seus estereótipos foi premiada no Festival de Sundance e rendeu a Jeffrey indicações aos maiores prêmios de atuação da temporada. O filme permanece inédito no Brasil. 

Paul Giamatti (Os Rejeitados) atua desde 1990 e já pode ser considerado um veterano, pena que o Oscar não costuma lembrar muito dele - lembra das esnobadas por  excepcionais trabalhos em American Splendor (2002), Sideways (2004) e Almas à Venda (2009)? Giamatti foi lembrado pela Academia somente em seu trabalho como coadjuvante em A Luta Pela Esperança (2005). Em seu novo trabalho com o diretor Alexander Payne, o ator vive um professor rabugento que os alunos amam odiar - mas que fica responsável por tomar conta de um estudante que não pôde ir para casa para os feriados de fim de ano. Equilibrando drama e comédia, Giamatti ganhou o Critics Choice de melhor ator e o Globo de Ouro de ator de comédia pelo papel, despontando como um dos favoritos da categoria. 

O ESQUECIDO: Leonardo DiCaprio (Assassinos da Lua das Flores) perdia cada vez mais espaço na mídia conforme as premiações se aproximavam. Scorsese até tentou dar um empurrãozinho elogiando o ator por seus trabalhos, mas foi tarde demais. DiCaprio ficou de fora da categoria de melhor ator desse ano. O fato é que o trabalho cheio de ambiguidades feito em torno de seu personagem, Ernest Burkhart deve ter deixado muita gente confusa (e a intenção era essa mesmo). Pelo menos o ator já tem uma estatueta por O Regresso (2015) e suas outras seis indicações (sendo uma como produtor por O Lobo de Wall Street/2014).

PL►Y: Rustin

Domingo (ao centro): uma das melhores atuações da temporada 2023.

Bayard Rustin nasceu em 1912 na Pensilvânia, sua mãe tinha apenas 16 anos quando deu a luz ao menino que foi criado pelos avós. Devido a influência familiar tornou-se membro de um grupo cristão chamado Sociedade dos Amigos, algo que influenciou diretamente suas ações como ativista no futuro. Na Universidade começou a se envolver em movimentos estudantis e mais tarde com a luta pelos direitos civis. Muitos apontam Rustin como o braço direito de Martin Luther King, de quem era amigo e conselheiro, de forma que a importância de Bayard Rustin se reflete na organização da Marcha sobre Washington para Trabalho e Liberdade. A Marcha reuniu mais de 250 mil pessoas em uma manifestação pacífica em 28 de agosto de 1963 e entrou para a história pelo discurso antológico de King. No entanto, a História não costuma lembrar muito de Rustin, muitos apontam que é por conta de assumido sua homossexualidade desde sempre - isso custou ver seu nome envolvido em polêmicas e acusações, ao ponto de ser rotulado como pervertido e agressor sexual. Por conta disso, por várias vezes, o próprio movimento do qual participava o boicotava. Rustin sempre soube que o fato de ser um homem negro e gay tornaria sua vida bastante complicada em uma sociedade em que o preconceito era legitimado pelas autoridades e, por isso mesmo é um personagem que vale ser lembrado. Ou seja, Rustin é um personagem cheio de atributos capaz de render um filme interessante e o diretor George C. Wolfe sabe disso. O diretor realizou anteriormente A Voz Suprema do Blues/2020, em que já demonstrava sua habilidade para conduzir seus atores em performances marcantes (tanto que Viola Davis e Chadwick Boseman foram indicados ao Oscar), aqui o show é de Colman Domingo, que está excelente no papel principal. Colman acaba de receber sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator por seu trabalho (que já o havia indicado ao BAFTA, Critics Choice e Globo de Ouro) e de fato é muito merecido por explorar todos os desafios enfrentados pelo personagem. Ele consegue transparecer todas as virtudes de seu personagem, sem perder de vista suas vulnerabilidades, especialmente quando sua sexualidade era apontada como um demérito. Embora o filme se perca um pouco no início atribulado, aos poucos ele encontra seu ritmo conforme Rustin se revela para o público enquanto  organiza a famosa marcha sobre Washington. Entre toda a organização do evento, o filme também apresenta a inteligência de Rustin em ótimos diálogos além do envolvimento de Rustin com um jovem pastor, que traz um pouco o peso da religiosidade em sua vida, mas também a única opção que tinha de viver seus amores escondido em meados do século XX. Rustin é um filme que se torna melhor conforme abraça o que havia de mais controverso em seu personagem, criando um resultado bem mais verossímil do que o visto de Leonard Bernstein em Maestro. Enquanto Bradley Cooper é o exagero em pessoa (o que não o impediu de estar no páreo de melhor ator) na vontade de ser o personagem, Colman Domingo está na medida certa como o ativista. Vale lembrar que Colman poderia já ter sido indicado como ator coadjuvante por seu papel de cafetão barra pesada em Zola (2020), um papel completamente diferente que só comprova o quilate de seu talento. 

Rustin (EUA-2023) de George C. Wolfe com Colman Domingo, Gus Halper, CCH Pouder, Johnny Ramey, Chris Rock, Jeffrey Wright e Glynn Turman.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

INDICADOS AO OSCAR 2024

Assassinos da Lua das Flores: favorito na disputa contra Oppenheimer.

E finalmente chegamos ao anúncio dos indicados aos Oscar que acontecerá no dia 10 de março. Até lá, os concorrentes deverão convencer de que merecem mais o título de melhor filme do que Oppenheimer, que desponta como o grande favorito com suas 13 indicações. Obviamente que o anúncio trouxe surpresas e, com elas, algumas esnobadas. As minhas surpresas favoritas ficaram na categoria de melhor animação com as lembranças para Meu Amigo Robô e Nimona (que depois de adiar horrores para ver, assisti ontem e postarei aqui em breve), também curti ver a Academia cravar dois filmes estrangeiros entre os dez candidatos a melhor filme (Zona de Interesse e Anatomia de Uma Queda, ambos aparecendo em outras categorias). Entre as esnobadas mais notórias estão nas categorias de atuação, com Margot Robbie fora do páreo de melhor atriz, DiCaprio não lembrado na categoria de atuação e a esnobada completa para a trinca de ouro de Segredos de um Escândalo (lembrado somente em roteiro original). Quanto à Greta Gerwig estar fora do páreo de direção, eu já considerava esperado, achava muito difícil a Academia colocar duas mulheres na categoria novamente (feito que aconteceu em 2021!) e a francesa Justine Triet demonstrava ter mais força entre os votantes do que Greta (que já foi indicada antes pelo meu amado LadyBird/2017). Não liga para eles, Greta, o futuro irá te recompensar em breve. Mas a lição que fica mesmo foi para a França, que esnobou Anatomia de Uma Queda ao não indica-lo na categoria de melhor Filme Internacional (principalmente pelo filme ser falado em três línguas) e ver seu escolhido (O Sabor da Vida) ser ignorado pela Academia. Anatomia concorre cinco categorias (e o vejo como favorito na categoria de melhor roteiro original). Façam suas apostas:


    Filme
    American Fiction
    Anatomia de uma Queda
    Barbie
    Os Rejeitados
    Assassinos da Lua das Flores
    Maestro
    Oppenheimer
    Vidas Passadas
    Pobres Criaturas
    A Zona de Interesse
 
   Direção
    Justine Triet, por Anatomia de uma Queda
    Martin Scorsese, por Assassinos da Lua das Flores
    Christopher Nolan, por Oppenheimer
    Yorgos Lanthimos, por Pobres Criaturas
    Jonathan Glazer, por A Zona de Interesse
 
    Atriz Coadjuvante
    Emily Blunt, por Oppenheimer
    Danielle Brooks, por A Cor Púrpura
    America Ferrera, por Barbie
    Jodie Foster, por NYAD
    Da'Vine Joy Randolph, por Os Rejeitados
 
    Roteiro Original
    Justine Triet & Arthur Harari, por Anatomia de uma Queda
    David Hemingson, por Os Rejeitados
    Bradley Cooper & Josh Singer, por Maestro
    Sammy Burch, por Segredos de um Escândalo
    Celine Song, por Vidas Passadas
 
    Melhor Animação
    O Menino e a Garça
    Elementos
    Nimona
    Meu Amigo Robô
    Homem-Aranha: Através do Aranhaverso
 
    Filme Internacional
    Io Capitano (Itália)
    Perfect Days (Japão)
    A Sociedade da Neve (Espanha)
    The Teacher's Lounge (Alemanha)
    A Zona de Interesse (Reino Unido)
    
Melhor Documentário
    Bobi Wine: The People's President
    The Eternal Memory
    Four Daughters
    To Kill a Tiger
    20 Days in Mariupol
 
    Documentário em Curta-metragem
    The ABCs of Book Banning
    The Barber of Little Rock
    Island in Between
    The Last Repair Shop
    Nai Nai & Wai Po
 
    Melhor Curta-metragem
    The After
    Invincible
    Knight of Fortune
    Red, White & Blue
    The Wonderful Story of Henry Sugar
 
    Melhor Curta-metragem de Animação
    Letter to a Pig
    95 Senses
    Our Uniform
    Pachyderme
    War is Over 
 
    Canção Original
    "The Fire Inside" (Flamin' Hot)
    "I'm Just Ken" (Barbie)
    "It Never Went Away" (American Symphony)
    "Wahzhazhe" (Assassinos da Lua das Flores)
    "What Was I Made For?" (Barbie)
 
    Melhor Som
    Resistência
    Maestro
    Missão: Impossível - Acerto de Contas
    Oppenheimer
    A Zona de Interesse
 
    Cabelo e Maquiagem
    Golda
    Maestro
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas
    A Sociedade da Neve
 
    Melhores Efeitos Visuais
    Resistência
    Godzilla Minus One
    Guardiões da Galáxia Vol. 3
    Missão: Impossível - Acerto de Contas
    Napoleão

PL►Y: A Rota Selvagem

Plummer: performance de gente grande.

Às vezes penso se existe uma espécie de competição para quem encontra o pior título para uma produção estrangeira quando ela chega no Brasil. A Rota Selvagem foi um desses casos, o título me parece tão descabido que o filme (em inglês Lean on Pete) estava entre meus interesses quando foi lançado no exterior, mas ficou fora do meu radar quando chegou por aqui (com muito atraso) com este título que diz nada sobre o filme. Meu interesse pelo filme começou por ser o primeiro filme do diretor Andrew Haigh para o cinema após sua aclamação por 45 Anos (2015) que rendeu a primeira indicação ao Oscar para a veterana Charlotte Rampling. O cineasta ainda assina o roteiro baseado no livro de Willy Vlautin que narra a trajetória do adolescente Charlie (Charlie Plummer), que vive com o pai Ray (Travis Fimmel) em uma cidade para a qual se mudaram a pouco tempo. Para ganhar algum dinheiro, Charlie começa a trabalhar para Del (Steve Buscemi) no cuidado com cavalos para campeonatos e exposições. O rapaz acaba se apegando a um experiente cavalo de corrida, Pete, que já teve dias melhores em sua carreira. Del não parece ser um sujeito muito bacana, mas por vezes parece se importar mais com o garoto do que o pai que soa bastante irresponsável. A situação familiar do menino não é muito promissora, mas ele sempre lembra de uma tia, que demonstrava se importar muito com ele e que já tentou conseguir a guarda diante das desventuras que vivenciou com o pai. Eis que um golpe do destino irá deixar o menino por conta própria e, junto com a ameaça do encaminhamento de Pete para o sacrifício, deixam Charlie ainda mais perdido. Haigh tem em mãos um filme de passagem para a vida adulta, com a diferença de ter situações tão carregadas que seria um desafio por si só alinhavar tudo isso sem cair no exagero. Situações como negligência familiar, luto, fome, situação de rua, roubo e violência atravessam a vida do menino em uma narrativa de desamparo que não é para qualquer um (seja para o espectador assistir ou o diretor conduzir na telona). Por vezes o filme é bastante irregular, como  na parte em que Charlie e Pete vagam pelo deserto (e o filme se arrasta junto com eles), mas o longa também revela que Haigh tem boas sacadas para cenas de movimento, como as cenas de corrida ou aquela do atropelamento (talvez a melhor do filme). Embora Haigh já seja experiente, o que segura o filme mesmo é o ótimo desempenho de Charlie Plummer. Digno de prêmios, ele enfrenta momentos complicados na pele do protagonista e torna fácil o espectador acompanhar suas lágrimas durante o filme. É o jovem que salva o filme de suas irregularidades e o faz digno de uma olhada, ainda mais com o lançamento do novo filme de Andrew Haigh, All of Us Strangers que recebe cada vez mais espaço nas premiações indies. É sempre interessante ver como um diretor tenta se desviar de sua zona de conforto atrás das câmeras.

A Rota Selvagem (Lean on Pete / EUA - 2017) de Andrew Haigh com Charlie Plummer, Steve Buscemi, Chloë Sevigny, Travis Fimmell, Lewis Pullman, Steve Zahn e Alison Elliot.

PL►Y: Afire

Thomas e Paula: os opostos se atraem?

Enquanto o documentário Sur L'Adamant de Nicolas Philibert levou para casa o Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim do ano passado, o alemão Afire ganhou o Grande Prêmio do Júri (ou Urso de Prata, uma espécie de segundo lugar do Festival) e fico me perguntando que se não fosse a assinatura de Christian Petzold o filme seria acolhido com tanta devoção. O filme está longe de ser ruim, mas impressiona bem menos do que os outros longas do cineasta. Quem conhece a carreira de Petzold (dos aclamados Phoenix/2014, Transit/2018 e Undine/2020) sabe que ele gosta de histórias de amor complexas e com impossibilidades bastante demarcadas. Aqui ele quis seguir um caminho completamente oposto, ele não apenas segue um caminho mais sutil com sujeitos comuns, mas também apresenta um casal protagonista que possui mais em comum do que imaginamos. O filme conta a história de Leon (Thomas Schubert), um jovem escritor que encontra dificuldades para finalizar seu segundo livro. Ele resolve então passar uns dias com Felix (Langston Uibel) em uma casa junto ao mar Báltico. Lá ele espera ter o sossego que precisa para finalizar sua obra enquanto o amigo pensa em seu portfólio a ser apresentado na conclusão da Faculdade de Artes. Embora sejam amigos, os dois não poderiam lidar de forma mais diferente com suas responsabilidades, já que Felix aproveita os dias na casa que costuma ser usada nas férias de sua família, enquanto Leon apenas fica sentado diante do computador sem fazer muita coisa o dia inteiro (literalmente, ele não consegue escrever). Colabora muito para ressaltar esse contraste a presença de Nadja (Paula Beer), uma mulher responsável por cuidar da casa. Desde a primeira cena o escritor considera a moça interessante, mas sempre utiliza a necessidade de trabalhar em seu livro para justificar o distanciamento constante - o que não impede sua decepção ao conhecer Devid (Enno Trebs), o salva-vidas da praia local que costuma passar as noites com ela. O filme avança  ancorado na inabilidade social de seu protagonista, o que por vezes o torna bastante arrogante e desagradável, bastante destoante da vibe do trio de personagens que está perto dele. Enquanto ele tenta escrever e o trio desfruta dos dias juntos ali, existem sempre relatos de um incêndio que avança em direção contrária à localidade em que estão (e que justifica o título original em alemão Roter Himmel, ou Céu Vermelho traduzido para o português). Petzold é conhecido pelos elementos trágicos em torno de seus personagens, por isso Afire  surpreende os fãs do cineasta a maior parte do tempo - até que uma série de acontecimentos ruins começam a acontecer para que o jovem escritor pretensioso aprenda a enxergar (e valorizar) a vida diante de si e colocá-la no papel. Apesar de considerar que o roteiro por vezes parece tão empacado como seu personagem principal, vale registrar que o elenco está ótimo em cena e segura o interesse do espectador até o desfecho. Thomas Schubert se sai muito bem como o jovem pretensioso do qual é muito fácil ter antipatia, mas também um bocado de pena por viver em sua bolha particular (só alguém assim não perceberia que um livro com o título que ele escolheu não é uma boa ideia, sem falar que o texto quando é exposto no filme é bastante sofrível), o que funciona muito bem em contraste com Paula Beer (uma das atrizes favoritas do cineasta, a outra é a Nina Hoss e adoraria vê-las juntas num filme dele) que está luminosa com uma personagem muito mais complexa do que os jovens "artistas" imaginam. Feito de oposições, seja dos atos de sua narrativa ou entre seus personagens, Afire é um bom filme. 

Afire (Roter Himmel - Alemanha / 2022) de Christian Petzold com Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel, Enno Trebs e Matthias Brandt.

domingo, 21 de janeiro de 2024

PL►Y: O Paraíso

Jean e Khalil: estreia premiada no Festival de Berlim.

Joe (Khalil Gharbia) é um jovem de origem árabe que vive em uma instituição para  menores infratores faz algum tempo. Falta pouco para ele completar dezoito anos e sair da instituição. Ele sabe que ainda será acompanhado para que o Estado tenha certeza de que está conseguindo seguir sua vida de forma adequada. No entanto, embora ele esteja bastante ansioso pela saída, Joe foge da instituição para ver o mar. Ele volta para a instituição e sabe que aquela ação pode comprometer sua saída, assim como, se fizer mais alguma atividade considerada ilegal, poderá ir para uma prisão, ainda que seja menor de idade. Resta apenas aceitar a rotina daquele lugar e esperar que os dias passem mais depressa. Os dias seguiriam seu curso sem maiores surpresas se não aparecesse um novo rapaz por lá, Will (Julien de Saint Jean), que dizem ter parado ali por ter esfaqueado um homem. Joe difere dos outros meninos por ser muito quieto e Will mostra-se bastante arredio. Os dois começam a conversar e entre um papo aqui e outro ali, surge um sentimento diferente entre os dois, de forma que precisam driblar a vigilância para encontros mais íntimos do que lhes é permitido. O relacionamento entre os dois começa a fazer Joe repensar se realmente quer sair dali, ao mesmo tempo, ele não conta para o parceiro que aquela proximidade está com os dias contados. O Paraíso foi exibido no último Festival de Berlim e saiu de lá com o Urso de Cristal pela sensibilidade com que o diretor Zeno Graton conta uma história de amor entre dois rapaz em meio à hostilidade que os cerca. Embora ambos tenham as trajetórias marcadas pela violência, o roteiro (assinado por Zeno em parceria com Clara Bourreau e Maarten Loix) sabe como tranformá-los em personagens interessantes por outros detalhes de sua personalidade, seja pelos desenhos de Will, as conversas através das paredes, o uso da música e os planos que são traçados (embora nem sempre sigam como o desejado), os dois são bem mais interessantes do que os censores possam julgar. Este é o primeiro longa metragem do belga Zeno Graton que demonstra bastante segurança na direção e um ótimo gosto para escalação de seus atores. Os promissores Khalil e Julien são verdadeiros achados que conseguem executar com precisão o equilíbrio os sentimentos contraditórios de seus personagens, boa parte do funcionamento do filme se deve ao fatos de ambos tornarem seus personagens bastante críveis na história de amor em uma ambiente nada favorável. O título faz alusão a um lugar sempre desejado, mas o  final é de partir o coração e me lembrou um pouco a sensação deixada pelo alemão Great Freedom (2021). Embora os dois filmes sejam bastante diferentes, a ideia de driblar os impedimentos e viver um amor proibido entre muros se fazem presentes. O filme é uma das pérolas faz parte da mostra My French Film Festival que chega à sua 14ª edição e tem parceria com a Reserva Imovision e Mubi até o dia 19 de fevereiro.   

O Paraíso (Le Paradis/Bélgica - França / 2023) de Zeno Graton com Khalil Gharbia, Julien de Saint Jean, Eye Haidara, Matéo Bastien, Samuel Di Napoli, Amine Hamidou e Nlandu Lubansu. ☻☻

PL►Y: Seguinte

Theobald: hábitos estranhos em apuros.

Com a proximidade de um possível Oscar de melhor direção para Christopher Nolan por seu trabalho em Oppenheimer (2023) é muito bem vinda a disponibilização de seu filme de estreia na Mubi nas últimas semanas. Eu mesmo fiquei surpreso ao descobrir que seu primeiro longa não era Amnésia (2000), já que Following permaneceu inédito nos cinemas brasileiros e ganhou notoriedade conforme os filmes seguintes do cineasta começaram a despertar atenção do público. No entanto, em listas de melhores filmes do cineasta ele costuma aparecer em último lugar. O motivo disso é bastante simples, já que o filme é curto (68 minutos) e por vezes ainda se torna arrastado pela forma como o diretor resolve contar sua história. A trama tem um ponto de partida interessante com um homem (Jeremy Theobald) que costuma seguir pessoas aleatoriamente pelas ruas, mas se envolve em situações surpreendentes quando escolhe seguir um sujeito que é na verdade um ladrão (Alex Haw) de métodos nada convencionais. O protagonista se interessando pelas atividades do ladrão e absorve algumas das características dele, especialmente quando cruzam o caminho de uma mulher misteriosa (Lucy Russell), que teve o apartamento roubado por eles e que tem sua cota de perigos a resolver. A edição embaralhada deixa o espectador se perguntando sobre o que de fato está acontecendo, até que percebemos que existe um plano envolvendo os três e que um deles está sendo passado para trás. Em Seguinte já podemos perceber várias marcas do cinema de Nolan, sua obsessão por embaralhar a narrativa, o gosto por personagens em situações complicadas e sua inspiração no film noir que era bastante visível em seus primeiros filmes (sobretudo Amnésia/2000 e Insônia/2002). Há quem enxergue por aqui a utilização de luzes e sombras que seriam resgatadas na trilogia do Cavaleiro das Trevas (iniciada em 2005), mas eu deveria ver o filme com mais atenção para perceber isso. Seguinte só não é um filme melhor porque é truncado demais e os personagens são pouco envolventes. Frios em demasia fica difícil para o espectador se envolver com qualquer um deles e se importar realmente com o desfecho da trama. É um filme que vale a pena assistir pela curiosidade de identificar o ponto de partida de um dos diretores mais bem sucedidos da atualidade, mas que por vezes fica tão preso à técnica que esquece de dar alma à história que está contando. 

Seguinte (Following/Reino Unido - 2023) de Christopher Nolan com Jeremy Theobald, Alex Haw, Lucy Russell e John Nolan.

#FDS Aki Kaurismäki: Folhas de Outono

Alma e Jussi: amor à moda antiga.

Ansa (Alma Pöysti) trabalha em um supermercado e ao chegar em casa tem apenas a companhia do rádio que não para de dizer notícias ruins. Holappa (Jussi Votanen) é um operário que para esquecer da vida sem graça sempre encontra tempo para tomar um pouquinho de álcool. Os dois são notoriamente solitários, mas se encontram num bar de karaokê e começam a demonstrar interesse um pelo outro. Os dois irão se encontrar mais algumas vezes até que tenham coragem de dizer um para o outro que consideram que um é a companhia que o outro precisa. Fosse uma comédia romântica feita em Hollywood os dois falariam aos montes, agiriam feito adolescentes, discutiriam por qualquer bobagem até perceberem que são almas gêmeas. Como se trata de um filme do finlandês Aki Kaurismäki, os dois vão passar a maior parte do tempo remoendo seus sentimentos e expressando o que sentem pelos olhares carregados dos sentimento  um pelo outro. Folhas de Outono é o novo filme de Kaurimäki que acaba de chegar na MUBI após uma temporada nos cinemas brasileiros. O filme estreia no streaming com o prestígio de ter ganho o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes no ano passado e ser um dos favoritos a conquistar uma indicação ao Oscar de filme internacional (os anúncios serão feitos no dia 23 de janeiro e se a indicação se consolidar, será a segunda vez que a Finlândia entra no páreo - a primeira vez foi também com Kaurismäki com O Homem sem Passado/2002). Prova de que o filme caiu nas graças do público internacional foi a valiosa indicação de Alma Pöysti ao Globo de Ouro de melhor atriz de comédia por seu trabalho perfeito na pele de uma mulher que ainda procura o amor, por mais que ele seja difícil em sua vida. Embora a ambientação seja igual a todos os filmes de Kaurismäki e passe a sensação de que a história acontece no passado, as notícias no rádio sobre a guerra na Ucrânia deixam claro que o filme se passa em tempos atuais. Folhas de Outono é mais uma prova de que os filmes do cineasta parecem passar em um lugar isento de linha do tempo, embora sejam de épocas distintas, no entanto, poucas vezes nesse universo os personagens impassíveis do diretor apresentaram tanta alma quanto Ansa e Hollapa. Acho que muito se deve aos olhos brilhantes da atriz que só ressalta a química que existem entre os dois, mesmo quando se instaura um conflito entre os dois, a plateia ainda torce para que os dois se reencontrem e se acertem. Obviamente que o senso de humor peculiar do cineasta está presente a todo instante, seja nos bilhetes perdidos, nos empregos sempre deixados para trás, na cachorra abandonada que encontra finalmente um lar, num acidente, nos dois assistindo a um filme de zumbi (o pífio Os Mortos não Morrem/2019) ou na hilariante música de synth pop com versos do porte de "eu gosto de você, mas não me suporto" e "até os cemitérios tem cercas"). Não resta dúvidas de que Ansa e Hollapa foram feitos um para o outro e que essa história de amor só poderia ser contada com os temperos que só Kaurismäki possui. 

Folhas de Outono (Kuolleet lehdet / Finlândia - Alemanha / 2023) de Aki Kaurismäki com Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Alina Tomnikov, Martti Suosalo e Janne Hyytiäinen. ☻☻

sábado, 20 de janeiro de 2024

#FDS Aki Kaurimäki: O Homem sem Passado

Peltola: o recomeço segundo Kaurismäki.

Houve grande surpresa quando a Finlândia cravou sua primeira indicação ao Oscar de filme estrangeiro com O Homem sem Passado em 2003. Ainda que o filme tenha recebido o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, todo mundo esperava que filmes como o sucesso francês 8 Mulheres de François Ozon, o elogiado espanhol Segunda-Feira ao Sol com Javier Barden ou o blockbuster brasileiro Cidade de Deus tivessem mais chances de agradar a Academia. No fim das contas, quem levou para casa o prêmio foi o alemão Lugar Nenhum da África que pouca gente lembra. A indicação filandesa atiçou a curiosidade em torno do filme e fez muita gente ver pela primeira vez um filme de Aki Kaurismäki e garanto que muita gente estranhou o ritmo lento, as interpretações impassíveis e o senso de humor seco que faz a glória dos fãs do cineasta (tente conter o riso nas cenas do cachorro "feroz" do filme). Trata-se de um universo bastante particular que o diretor construiu para suas histórias, com ambientações de estética retrô e pôsteres com a maior cara de clássicos do cinema. No entanto, debaixo de tudo que possa provocar estranhamento, existe uma bela história sobre recomeços. O filme constrói um tom de crônica ao nos apresentar um homem (Markku Peltola) que é espancado e roubado por um trio de assaltantes logo no início da sessão. Ferido, sem dinheiro ou documentos, ele é dado como morto em um hospital, mas desperta e sai do hospital sem fazer a menor ideia de quem seja e para onde deve ir. Sem lembrar de nada, resolve vagar pela cidade até que sua vida começa a ganhar novos rumos. Consegue um emprego, um lugar para morar e até uma namorada sempre por caminhos um tanto imprevisíveis e contando com a ajuda de algumas pessoas que encontra pelo caminho. Todos que estão em volta do personagem sabem que ele não tem lembranças do passado e ao mesmo tempo que algumas pessoas o acolhem, existem outras que apenas desejam se aproveitar dele. Outro ponto interessante na história é que toda figura de autoridade que poderia lhe ajudar a descobrir quem é, acaba o tratando muito mal por considerá-lo um delinquente subversivo. Kaurimäki tem um senso de humor bastante peculiar, ao inserir seu personagem desmemoriado em situações um tanto surreais, como aquela em que tenta abrir uma conta no banco e acaba testemunhando um assalto para logo depois ser preso por desacato ou quando passa a agenciar uma banda promissora. Provavelmente a Academia se rendeu ao filme por conta do caminho oposto que a maioria dos filmes em torno da temática seguiriam. Ao invés de buscar esclarecer algo sobre si mesmo, o personagem vive a partir do que surge em seu caminho e, quando o passado finalmente o reencontra, o filme de Kaurismäki demarca mais uma vez ser uma crônica sobre o recomeço como um sinal de esperança para seus personagens. Não é um filme para todos os públicos, mas merece atenção pela originalidade apresentada em um tema já usado diversas vezes.

O Homem sem Passado (Mies vailla menneisyyttä / Finlândia - Alemanha - França / 2002) de Aki Kaurismäki com Markku Peltola, Kati Outinnen, Anniki Tähti e Kaija Parkarinen. ☻☻

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

#FDS Aki Kaurismäki: Contratei um Matador Profissional

Leáud: muso francês no mundo de Kaurismäki.

O finlandês Aki Kaurismäki é um dos cineastas europeus mais cultuados do mundo e não é a toa que a MUBI preparou uma retrospectiva da carreira do diretor. No momento em que decidi fazer um #FimDeSemana dedicado à obra dele, foi difícil escolher apenas três filmes para escrever. Acabei escolhendo para começar este Contratei um Matador Profissional (1990), sua primeira aventura cinematográfica fora de seus país. Se o diretor já era bastante conhecido pelo seu estilo particular, com silêncios, interpretações contidas e um senso de humor seco, aqui ele agrega outros elementos que tornam o filme ainda mais interessante. A começar por uma atmosfera de film noir com tempero Hitchcockiano em torno de um homem infeliz que decide deixar de viver. Na Inglaterra do final dos anos 1960, o francês Henri Boulanger (Jean-Pierre Leáud) acaba de ser demitido após quinze anos de serviços prestados à uma empresa. O patrão não gasta muito tempo com justificativas e ressalta que diante de tempos de crise, os cortes se iniciam pelos estrangeiros. Henri já parecia um tanto deprimido com a vida solitária e perder o emprego que lhe preenchia os dias o deixa ainda pior. Ele começa a investir em tentativas de suicídio que nunca dão certo e, já que não se julga competente nem para acabar com a própria vida, ele resolve ir à um estabelecimento onde possa encontrar alguém que faça o serviço. Gastando seus poucos tostões com um matador profissional, ele imagina que em breve seu desespero terá fim. Só que ele conhece uma vendedora de flores, Margaret (Margi Clark) e os dois se apaixonam. Ali seria um recomeço para Henri, mas ele precisa entrar em contato com o assassino enviado para acabar com sua vida e dizer que mudou de ideia - o que complica muito o romance do casal. A trama demonstra bastante o humor peculiar de Kaurismäki e um tanto de seu olhar sobre a vida, já que enquanto Henri se dá conta que ainda lhe resta esperança para viver quando chega à sua decisão mais radical, enquanto isso também acompanhamos a trajetória do assassino às voltas com seus próprios dilemas perante a mortalidade. O filme avança sem maiores alardes promovendo alguns encontros curiosos entre o trio principal até terminar de forma irônica. Os conhecidos cenários de cores fortes e objetos gastos do diretor funcionam muito bem para ambientar a trama. O muso de François Truffaut, Jean-Pierre Leáud (que já foi aquele menino irresistível de Os Incompreendidos/1959) compõe um personagem de alma desgastada que reencontra uma razão de viver com um charme quase inexplicável enquanto Margi Clark parece uma das estrelas de Hitchcock com suas roupas de cores vivas e cabelo platinado. Em contraponto com os dois está Kenneth Colley com contornos humanísticos perante a mortalidade. Pode não ser o filme mais querido de Kaurismäki, mas é um dos mais curiosos e com uma premissa tão interessante que foi até reciclada no brasileiro Não Tem Volta (2023) de César Rodrigues e estrelado por Rafael Infante e Manu Gavassi.  

Contratei um Matador Profissional (I Hired a Contract Killer / Finlândia - Suécia - França - Alemanha - Reino Unido / 1990) de Aki Kaurismäki com Jean-Pierre Leáud, Kenneth Colley, Margi Clark, Nicky Tesco e Charles Cork. ☻☻☻

PL►Y: Dinheiro Fácil

Paul Dano: revolucionando o mercado de ações.

 Pode se dizer que a trama de Dinheiro Fácil é um conto de Davi vs. Golias do século XXI. É baseado em uma dessas histórias reais tão surreais que se fosse uma obra de ficção as pessoas não acreditariam no que estão vendo. É uma história recente, tão recente que as máscaras utilizadas pelo elenco deixam claro que estávamos atravessando a pandemia do Covid-19. O ano era 2021 e um youtuber conhecido como "gato raivoso" fazia suas análises bem humoradas sobre o mercado financeiro. Seguido por alguns pequenos investidores, ele sugeriu em um de seus vídeos que comprassem ações de uma pequena empresa, a GameStop, que por conta de uma manobra de mercado de ações provavelmente fecharia suas portas. com a ajuda do gato e seus seguidores, as ações eram vendidas e começaram a se tornar cada vez mais valorizadas, tornando aqueles pequenos investidores com ações que os deixariam cada vez mais ricos. Acontece que a situação chamou atenção dos grandes investidores que começaram a tomar medidas drásticas para conter a valorização das ações envolvidas em uma verdadeira corrente nas redes sociais. A "corrente" as tornavam cada vez mais valiosas e faziam com que pessoas comuns segurassem suas ações esperando uma cotação cada vez maior a cada dia. Gato Raivoso na verdade era Keith Gill (no filme vivido por Paul Dano), um homem comum, casado, com um bebê de colo e empregado sem maiores pretensões, mas que em uma especulação deflagrou um movimento que fez com que o mercado financeiro repensasse algumas de suas  atitudes. Confesso que não entendo nada sobre mercado de ações, mas a forma como o filme desencadeia seus acontecimentos, você consegue entender exatamente o que está acontecendo quando um casal de estudantes (Myha'la e Talia Ryder) hesitam em vender suas ações com a intenção de pagar suas dívidas com o crédito universitário e ainda juntar um pé de meia, ou quando a mãe desesperada com a hipoteca (America Ferrera) acredita que aquelas ações irão fazer com que durma mais tranquila nos próximos anos. Paralelo a essas pessoas comuns ainda temos peixes grandes como Ken Griffin (Nick Offerman), Steve Cohen (Vincent D'Onofrio) e o mediano Gabe Plotkin (Seth Rogen)  - este perdendo cada vez mais dinheiro conforme as ações da GameStop sobem de valor. Além disso tem os criadores de um aplicativo que sofrem pressão do mercado para conter as compras das ações que não param de valorizar (Sebastian Stan e Baiju Bhatt) e fazem um golpe baixo no decorrer de tudo isso. Os acontecimentos em torno do fenômeno da GameStop mereceu destaque da imprensa na época (e o filme utiliza muitas cenas de arquivo dos jornais e uma participação especial de Elon Musk em áudio) e foram parar até em uma investigação do Congresso dos Estados Unidos. Dirigido no ritmo de uma bola de neve por Craig Gillespie o filme funciona redondinho perante suas intenções de ser uma anedota financeira esperta e divertida. Interessante como Gillespie tem se tornado um nome certo para dar conta de projetos arriscados nos últimos tempos, desde Eu, Tonya (2017), ele acertou com Cruella (2021), a minissérie Pam & Tommy (2022) e agora com esta pequena pérola sobre o mercado financeiro. 

Dinheiro Fácil (Dumb Money/EUA-2023) de Craig Gillespie com Paul Dano, America Ferrera, Seth Rogen, Shailene Woodley, Sebastian Stan, Nick Offerman, Vincent D'Onofrio, Myha'la, Pede Davidson, Olivia Thirlby, Dane DeHaan, Anthony Ramos e Clancy Brown. ☻☻☻

PL►Y: Intruso

Saoirse e Paul: isso é tão Black Mirror.
 
Quando Foe começou a ser produzido recebeu bastante atenção da mídia, especialmente por contar com dois nomes aclamados, afinal, ninguém convence Saoirse Ronan (com suas quatro indicações ao Oscar no currículo) e Paul Mescal (recém saído de sua indicação ao Oscar por Aftersun/2022) a embarcar em um projeto se não for para ser levado a sério. Em se tratando de uma ficção científica de baixo orçamento, a presença de ambos é ainda mais relevante.  No entanto, o filme quando o longa estreou recebeu críticas mornas, principalmente pelo tratamento que o diretor Garth Davis imprime ao longa. A história é promissora baseada no livro de Iain Reid (que assina o roteiro ao lado de Davis): em um mundo devastado, um casal de jovens fazendeiros tentam driblar as dificuldades enfrentadas em um planeta Terra seco e poeirento. O cenário é bastante desolador e cientistas exploram cada vez mais as possibilidades da humanidade viver em estações espaciais. Acontece que quando recebem a visita de Terrance (Aaron Pierre), o casal Junior (Mescal) e Henrietta (Saoirse) descobre que ele foi selecionado para viver em uma dessas estações espaciais, mas ela deverá ficar na Terra na companhia de um clone do esposo (sim, você já viu isso em um episódio de Black Mirror). Embora o roteiro enrole nessa parte, ele nunca deixa claro o motivo dela não poder ir. Assim, o casal logo entra em crise e tudo parece tomar o rumo de uma terapia de casal. Existe propositalmente um jogo de contradições, seja nos diálogos e nas posturas dos personagens em crise, mas que se reconcilia e os diálogos continuam refletindo um relacionamento já desgastado proporcionando à Júnior uma postura cada vez mais estranha, pudera, o roteiro parece lhe oferecer mais uma tortura psicológica do que o envio para a tal estação espacial que nunca acontece. Eis que surge uma reviravolta e o espectador se vê diante de um plot twist que poderia ser envolvente se ele já não estivesse cansado da narrativa circular que enfrentou até ali. Se o filme enfrentou problemas até sua grande sacada, a coisa não melhora muito depois que sua grande pegadinha é revelada e o roteiro ainda precisa resolver o conflito entre o casal no desfecho decepcionante. O trio protagonista tem a tarefa árdua de segurar o interesse da plateia em um filme que não encontra o ritmo certo em sua narrativa: se alonga demais no primeiro ato, gera interesse quando boa parte da plateia já dormiu e não consegue amarrar a boa ideia em que se ampara. O resultado é bastante irregular, uma pena já que Paul Mescal entrega mais um bom trabalho em um personagem complicado, mas que acaba sendo prejudicado pela direção perdida de Garth Davis. Ele parece tão preocupado em enganar o espectador que acaba esquecendo da história que precisa contar. O filme está em cartaz no Prime Video e teve uma bilheteria decepcionante de pouco mais de duzentos mil dólares. 

Intruso (Foe / EUA - Austrália - Reino Unido) de Garth Davis com Paul Mescal, Saoirse Ronan, Aaron Pierre, William Freeman e David Woods.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

PL►Y: Meu Nome é Gal

Sophie: bom trabalho em filme sofrível.

Não é exagero dizer que Gal Costa é mais do que uma cantora brasileira. Gal na verdade se tornou mais do que uma referência, se transformou num verdadeiro ícone da música. Sua voz, álbuns, shows históricos e a forma como sua personalidade atravessou décadas no cenário musical brasileiro  fez dela uma artista reconhecida internacionalmente. A riqueza de sua trajetória é muito bem resgatada no documentário O Nome Dela é Gal (2017) dirigido por Dandara Ferreira exibido pela HBO em formato de minissérie em quatro episódios. O documentário é bastante rico em entrevistas e cenas de arquivo e se tornou uma bela homenagem para Gal antes de seu falecimento em 2023. Eis que Dandara resolveu fazer um filme sobre os primeiros anos de Gal como artista, com sua chegada ao Rio de Janeiro, quando Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia começavam a chamar atenção da mídia e deixavam claro que a baiana também deveria encontrar sua personalidade como artista. A ideia parece mais do que interessante, especialmente se você assistiu ao documentário e percebe que Dandara tinha material de sobra para realizar uma ótima biopic. Some isso ao trailer com atores dedicados a parecerem com os artistas citados (e muitos outros que aprecem ao longo do filme) e a ideia parecia não ter como dar errado, ou pelo menos, tinha tudo para dar certo se o roteiro não fosse um dos mais preguiçosos do gênero. De nada vale o esforço da global Sophie Charlotte para carregar o filme nas costas como Gal se o roteiro tem tão pouco a lhe oferecer, o pior é que o roteiro é assinado por três pessoas para fazer uma colagem muito pobre de fatos sobre a artista que qualquer fã está cansado de saber. Cadê a história? Da cena em que Gal aprende a dominar a voz ainda pequena com a cabeça dentro de uma panela, fato que ficou conhecido numa antológica entrevista ao Jô Soares ao dia em que é chamada de piolhenta na rua, tudo soa como um grande déjà vu. De nada adianta caprichar na estética de algumas cenas para evocar a psicodelia do período em contraste com a repressão da ditadura militar se está tudo frouxo e desalinhado, as situações são jogadas na montagem do filme e nunca são desenvolvidas, resultando num amontoado de anedotas sobre a artista. Com isso, existe o prejuízo no ritmo do filme que nunca decola, não alcançando a atmosfera certa para momentos tensos atravessados por Gal e sua turma. Com o roteiro capenga, resta curtir o elenco se esforçando para parecer com artistas consagrados como a própria Dandara encarnando Maria Bethânia e Rodrigo Lelis como Caetano Velloso, além da boa trilha sonora com músicas que por vezes são apresentadas na voz de Gal e por outras na voz da própria Sophie Charlotte (que soa esquisitíssimo considerar que a voz da atriz seja tão impressionante quanto todo o elenco diz o tempo inteiro, era melhor ter deixado a atriz dublar as canções o tempo todo). Em termos de atuação, Shophie está bem, mas fico imaginando como ela voaria muito mais alto se lhe dessem uma personagem para encarnar ao invés de uma personalidade. Por mais que ela se esforce, o filme não empolga e soa estacionado a maior parte do tempo, resultando numa obra abaixo do que Gal merecia. 

Meu Nome é Gal (Brasil/2023) de Dandara Ferreira e Lô Politi com Sophie Charlotte, Rodrigo Lelis, Luis Lobianco, Dandara Ferreira, Dan Ferreira, Ruria Duprat, Chica Carelli, Camila Márdila e George Sauma.