quarta-feira, 30 de junho de 2021

HIGH FI✌E: Junho

 Cinco filmes assistidos durante o mês que merecem destaque:

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Ciclo DiversidadeSXL: Getting It

Tom e Luca: comédia romântica despretensiosa. 

Não são poucos os que consideram os filmes em que são retratados romances homossexuais um tanto deprimentes com todos os problemas que os personagens sofrem e no final geralmente terminam cada um no seu canto. Vida que segue. Fim. Por isso mesmo é interessante quando um filme como Getting It cruza o seu caminho, afinal o filme escrito, dirigido e estrelado por Tom Heard tenta ser diferente e segue o caminho da despretensão sem deixar de lançar um olhar interessante sobre a relação de dois personagens com algumas décadas de distância entre suas idades. Heard vive Jamie, um homem maduro que deixou a carreira de cantor de lado após o desfecho um tanto traumático de seu último relacionamento. Desde então ele se limita a soltar a voz na privacidade de casa, lugar em que encontra-se a maior parte do tempo nos últimos meses. Cada vez mais recluso e evitando novos relacionamentos, sua postura preocupa os mais próximos. No entanto, tanta discrição acaba atraindo a atenção do jovem vizinho, Ben (Donato de Luca) que mora com o irmão grosseirão (Jason Graf) e a cunhada Alicia (Lesley Pedersen) que percebe que o rapaz é um tanto diferente dos outros de sua idade. Introspectivo e autor de poesias, Ben também tem lá seus problemas para se relacionar amorosamente (e um problema mal resolvido com a falecida mãe não ajuda), mas sente-se cada vez mais interessado pelo vizinho recluso. Claro que no início Jamie irá evitar ao máximo, especialmente pela diferença de idade, mas não vai demorar para que os dois percebam  que existe muita afinidade a ser descoberta. Não espere cenas ousadas, polêmicas ou sensacionalismo, o filme segue outro estilo e adota uma narrativa bastante naturalista o que contribui muito para conquistar a simpatia da plateia, especialmente pelo trabalho de Tom Heard que está muito a vontade em cena, incluindo nas cenas em que precisa soltar a voz (e a cena de abertura um tanto fantasiosa já o faz ser especial para a plateia). No entanto, existem dois  pequenos problemas, a primeira é que tão logo tudo está bem entre o casal, você já percebe que um conflito irá aparecer para atrapalhar e seguir a cartilha das comédias românticas mais convencionais, a segunda é que ao evitar polêmicas, o filme apresenta um mundo quase artificial em que os homossexuais são aceitos por todos que estão por perto. São dois problemas pequenos para um filme que consegue ser bastante leve e até charmoso em suas limitações de orçamento. 

Gettint It (EUA-2020) de Tom Heard com Tom Heard, Donato de Luca, Sharron Bower, Lesley Pedersen, Jason Graf, Luke Hill, Juliet Robb e Laura Galt. ☻☻☻

terça-feira, 29 de junho de 2021

Ciclo DiversidadeSXL: Um Fascinante Mundo Novo

Vanessa e Katherine: sem esperar o mundo que está por vir. 

Chamar o drama romântico de época The World to Come de Um Fascinante Mundo Novo é uma baita propaganda enganosa em terras brasileiras. A começar que no original em inglês o filme tem o bom senso de não empregar adjetivos para para "o mundo que está por vir" (que seria o nome em tradução fiel), cabe ao espectador imaginar como este mundo seria. É verdade que ao nos envolvermos com a história das duas protagonistas desejamos que elas vivessem em um mundo bem melhor do que o que as cerca. O título original faz alusão à uma promessa religiosa que não conforta a protagonista diante do que vivencia. Ela é Abigail (Katherine Waterston), mulher que vive com o esposo, Dyer (Casey Affleck) em um ambiente bucólico nos anos 1850 e bastam os primeiros minutos da narrativa para percebermos que ela é bem mais complexa do que aparenta. Com ambições diferentes do que se esperava de uma mulher na época, soma-se à insatisfação de Abigail as dores de um casamento que mergulha cada vez mais na frieza, principalmente após a morte de sua única filha. A morte da menina paira feito um fantasma sobre o casal e, se alguma vez a rotina da personagem teve alguma graça, ela foi embora junto ao luto da maternidade. Solitária em seus afazeres, a coisa melhora quando um casal de vizinhos se muda para as redondezas. Se Finney (Christopher Abbott) é bastante soturno, sua esposa, Tallie (Vanessa Kirby) é o oposto de tão luminosa. Ela logo percebe que a melancólica Abigail pode ser uma excelente companhia naquelas redondezas. Com os encontros cada vez mais constantes, a afinidade entre as duas cresce e ganha contornos de romance proibido, numa intensidade que pode gerar problemas junto aos esposos que começam a perceber que existe algo mais entre as duas mulheres. O segundo filme de Mona Fastvold não tem pressa em desenvolver sua história, segue num ritmo lento, sutil e melancólico, mas belamente amparado pelas locações e os trabalhos marcantes de suas duas atrizes (convenhamos que os seus respectivos parceiros não fazem nada do que já não fizeram em trabalhos anteriores). Se Katherine retoma aqui o caminho promissor de quando chamou atenção em Vício Inerente (2014) é Vanessa Kirby que rouba a cena como uma mulher intensa, de olhos e sorrisos incendiários capaz de sacudir todas as convicções de sua amante - e portanto torna-se uma grande ameaça para a sociedade marcadamente masculina. Pode se dizer que em meio à pandemia Vanessa Kirby teve um excelente ano em 2020! Afinal, saiu premiada como a melhor atriz do Festival de Veneza por Pieces of a Woman  ao mesmo tempo em que apareceu em Veneza com a atuação marcante neste outro filme que poderia facilmente ter lhe rendido uma indicação ao Oscar de atriz coadjuvante. Embora o filme caminhe para um desfecho desolador, The World to Come consegue enviar sua mensagem de que o mundo mudou, mas ainda não o bastante perante o que se faz necessário e urgente. 

Um Fascinante Mundo Novo (The World to Come / EUA - 2020) de Mona Fastvold com Katherine Waterston, Vanessa Kirby, Casey Affleck, Christopher Abbott e Karina Ziana Gherasim. ☻☻☻☻

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Ciclo DiversidadeSXL: Bem-vindo à Chechênia

 
Chechênia: o horror da homofobia legitimada pela Estado. 

Desde os primeiros minutos o documentário Bem-Vindo à Chechênia de David France, Tyler H. Walk deixa claro como o seu título pode soar irônico, mas vai além, apresentando uma realidade que nós não fazemos a mínima ideia que existe naquele país que vez por outra aparece nos noticiários. No entanto, o desconforto se torna ainda maior quando vemos o que acontece quando preconceito e política se tornam uma mistura perigosa e um governante faz de suas convicções pessoais a matéria-prima de seu governo no lugar de prezar o bem-estar da população acima de credo, sexualidade ou qualquer outra característica pessoal. Aqui conhecemos várias pessoas reais que sofrem perseguições sistemáticas por serem homossexuais em um país em que ser gay é considerado um ato criminoso - e a explicação para isso está nas conclusões mal ajambradas de uma operação anti-drogas. Vemos pessoas comuns que só gostariam de viver suas vidas, mas que são discriminadas, perseguidas, e torturadas por não corresponderem ao padrão que o governo do país considera adequado. São inúmeras histórias de pessoas assustadas que perderam a esperança de viver ali e apelam para uma rede de apoio clandestina que pretende lhes dar amparo, abrigo, empatia e um plano de fuga do país. Existe aqui um retrato bastante incômodo e amargo de uma realidade vivenciada vinte e quatro horas por dia naquele lugar. Vemos aqui como a intolerância é covarde e gera medo e angústia às pessoas por simplesmente serem o que são. Sendo assim, resta-lhes apenas a esperança de sair daquele país, com uma nova identidade e ter uma nova vida distante do horror embalado por sumiços e mortes. Mesmo com tantos recortes de jornais e programas de TV beira o inacreditável a perseguição vivida pelos homossexuais naquele país em pleno século XXI. Bem-Vindo à Chechênia se constrói de forma angustiante para o espectador em sua colagem de histórias e funciona como um filme de terror sobre a vida real, um terror tão verossímil que o rosto das pessoas precisou ser alterado digitalmente (um trabalho realmente impressionante que quase foi indicado ao Oscar de Efeitos Especiais deste ano) para evitar retaliações às pessoas que aparecem aqui.  

Bem-Vindo à Chechênia (Welcome to Chechnya / Estados Unidos - Reino Unido / 2020) de David France & Tyler H. Walk com Maxim Lapunov, Olga Baranova, David Isteev e Zelim Bakaev. ☻☻☻

domingo, 27 de junho de 2021

Ciclo DiversidadeSXL: O Acrobata

Yuri e Sébastien: frieza incandescente. 

Um homem está interessado em comprar um apartamento, em uma de suas visitas conhece uma pessoa por lá e aquele lugar se torna o cenário de um tórrido relacionamento. Lido assim, pode até parecer que vou comentar sobre O Último Tango em Paris/1972 (outro filme que estou devendo uma resenha faz tempo), mas na verdade estou falando de um filme diferente: O Acrobata, longa canadense escrito e dirigido por Rodrigue Jean que gerou polêmica ao ser exibido em festivais por suas cenas bastante explícitas. Foi esta semelhança que me deixou bastante curioso com esta produção. Sim, o filme de Bertolucci também gerou gera frisson por suas cenas de sexo (e inúmeras especulações sobre a sexualidade dos personagens), mas por aqui as cenas são bem mais desinibidas... e no lugar de Marlon Brando e Maria Schneider estão dois homens, o canadense Sébastien Ricard e o estreante bielorusso Yuri Paulau. Ricard tem vários filmes no currículo (incluindo o excelente ganhador do Oscar "As Invasões Bárbaras"/2003 de Denis Arcand) e surpreendeu muita gente pela desenvoltura como encarna Christophe, um homem maduro, solitário e que de vez em quando visita a mãe doente (a veterana Lise Roy) no hospital. O filme não gasta muito tempo apresentando os detalhes da vida do personagem, concentra-se mais nos efeitos que o encontro com Micha (Yuri) despertará em sua vida. O diretor opta por criar uma narrativa cheia de sobreposições e contrastes, seja da construção interminável que abre o filme e serve de paisagem para o apartamento habitado pelos amantes, até a relação dos guindastes com as cordas que suspendem os corpos dos acrobatas - e ao que tudo indica, uma desta cordas traiu Micha que se acidentou e está impossibilitado de continuar em seu ofício. De uma terra distante, sem trabalho e sem um lugar para ficar diante do rigoroso inverno canadense, Micha acaba retornando ao tal apartamento em que conheceu Christophe e os dois estabelecem um relacionamento tórrido que se intensifica em meio aos jogos de poder de um sobre o outro, com direito a traços sadomasoquistas. Neste ponto a própria forma como os dois personagens encaram as emoções torna o filme ainda mais interessante, a forma como Micha aprendeu a  suportar a dor e o desprezo que sente pela vida regrada de Christophe dá o tom de várias cenas, assim como o fato de Christophe sentir-se instigado por aquele rapaz desconhecido e do qual sabe quase nada. O maior contraste do filme é a frieza da narrativa e das ambientações com as cenas de sexo protagonizadas pelos dois atores (que definitivamente deve fazer do filme uma obra da qual os conservadores devem manter distância). Quem se aventurar, irá conhecer a história de dois homens em um mundo secreto no qual podem perder as rédeas e fugir do que existe da porta para fora. Vendo o filme ainda percebi outras semelhanças com o filme do Bertollucci: a mulher no leito de morte, a cena da dança no final com sentido completamente diferente e, ao longo de todo filme, a dinâmica dos papéis sexuais instaurada entre os dois personagens. O desejo pode ser mesmo bastante revelador.  

O Acrobata (L'Acrobate / Canadá - 2019) de Rodrigue Jean com Sébastien Ricard, Yuri Paulau, Lise Roy, Victor Fomine, Chloé Germentier, Françoise Mercure e Amine Farhat. ☻☻

PL►Y: À Segunda Vista

 
Ryan e Iliza: de amores e disfarces.

De vez em quando eu comento aqui no blog a minha dificuldade em ficar satisfeito com as comédias recentes. Geralmente considero as produções tão bobas, infantis, cheias de baixaria e repetitivas que não consigo encontrar motivos para dar risada. Então, quando resolvo encontrar algo para rir eu começo a ver uma comédia por uns dez minutos e, se a risada não aparecer, eu parto para outra. Para outra. Para outra... e geralmente eu termino vendo uma reprise ou outro tipo de filme. Eis que, ontem vagando na Netflix encontrei um filme que nunca ouvi falar com atores pouco conhecidos entre as produções mais vistas do serviço de streaming. À Segunda Vista conta a história de Andrea (Iliza Shlesinger), uma comediante de stand up (que ao que parece é mesmo a origem de Iliza no showbizz) que deseja ter mais reconhecimento e estabilidade em sua carreira de atriz. Se a profissão está meio estagnada, a vida amorosa também não avança muito. Ela também começa a sentir o peso da idade aos 34 anos, principalmente por todo mundo repetir que ela parece ter 35... no meio de tanta mesmice ela conta com a companhia da amiga Margot (Margaret Cho atriz fashionista que por um tempo apresentou o Fashion Police). Eis que numa viagem de avião, Andrea conhece o engravatado Dennis (Ryan Hansen), que de início parece ser um fã, mas aos poucos demonstra ter outros interesses por ela. A partir daí o filme irá se desenvolver como uma comédia romântica com um tom mais ácido e debochado, seja quando Andrea percebe que começa a ficar atraída por Dennis, embora ele esteja bem longe de ser o tipo que ela gosta. Se por um lado Iliza faz de tudo para se distanciar da heroína romântica que estamos acostumados a ver neste tipo de filme (ela está bem longe de ser ingênua e sonhadora), por outro lado o galã Ryan Hansen faz de tudo para esconder seu sex appeal, estão lá o cabelo lambido para o lado, o óculos sem graça, os ternos sem estilo, a barriga de espuma para disfarçar o físico de atleta e apela até para um dublê de corpo naquela  tradicional cena da piscina (e todo este disfarce do ator até faz parte da maior piada do filme), mas o fato é que debaixo de tudo isso é impossível não simpatizar por Dennis e torcer para que o romance se instaure... mesmo que logo depois o filme comece a indicar cada vez mais que aquele homem não é bem o que ele diz. Nesta parte o filme derrapa um pouco, já que Andrea era apresentada como uma mulher bem mais esperta que sacaria o que estava acontecendo rapidinho... mas tudo bem, imagine que ela estava cega de amor e por isso era fácil de ser enganada [sic]. O filme conta com um ótimo elenco de apoio e a diretora Kimmy Gatewood (que é também uma atriz esperta que já apareceu em Glow e Atipical, ambas da Netflix) consegue imprimir um ritmo agitadinho fluente durante a sessão. Confesso que vou ficar de olho nos novos trabalhos de Iliza Schlesinger, seu senso de humor é esperto, sem apelações e não me lembrava de tê-la visto em outras produções (inclusive em Pieces of a Woman/2020 filme que adoro e que também está na Netflix). À Segunda Vista  não vai revolucionar o gênero ou se tornar inesquecível, mas consegue dar uma sacudida no tipo de filme sempre castigado pela mesmice e, por isso mesmo, recebe o dificílimo selo de aprovação deste que vos escreve. Recomendo. 

À Segunda Vista (Good on Paper / EUA -2021) de Kimmy Gatewwod com Iliza Schlesinger, Ryan Hansen, Margaret Cho, Rebecca Rittenhouse, Adam Ray e Beth Dover. ☻☻☻

PL►Y: Paternidade

Hart e Melody: boas atuações em roteiro que não ajuda. 

Matt Logelin (Kevin Hart) parece ter encontrado sua alma gêmea e vive feliz e contente com a gravidez da esposa Liz (Deborah Ayorinde). Nascida a pequena Maddy, a alegria se torna completa, pelo menos até que as complicações no parto leve Liz ao falecimento. Agora, ele precisa consolidar o peso do luto e a responsabilidade de cuidar sozinho de sua filha. Filmes sobre pais que precisam cuidar de seus bebês sozinhos não são novidades no cinema, o difícil é fugir da cartilha deste subgênero e extrair alguma novidade. Pouca gente lembra, mas o diretor Paul Weitz tem uma indicação ao Oscar por seu magnífico trabalho no roteiro de Um Grande Garoto (2002) ao lado do mano Chris Weitz e Peter Hedges (curiosamente este era outro filme de um adulto precisando lidar com uma criança em seu cotidiano), no entanto, se você lembrar deste detalhe a expectativa sobre o filme aumenta consideravelmente e você pode ficar um tanto frustrado com a total despretensão desta produção que está em cartaz na Netflix. Como diretor, Paul costuma fazer o trivial, o mais comum feijão com arroz que funciona para quem só quer passar algum tempo diante de um longa metragem que não exige muito da plateia (e vice-versa). Paternidade segue passo a passo o que se espera deste tipo de filme, os pequenos dramas cotidianos, a superproteção paterna, a dificuldade em lidar com os parentes que tentam se meter na educação da filha, a tentativa de engatar um novo relacionamento, a desistência diante do primeiro obstáculo em ter outro membro na família e por aí vai até o final previsível. Montado como uma colagem de momentos engraçadinhos e outros para "emocionar" o filme se constitui num feel good movie que não deve arrancar elogios de quem espera um pouco mais desta ideia requentada. A grande curiosidade do filme fica por conta de Kevin Hart em um papel que lhe exige um pouco mais de carga dramática do que  o costume - e ele dá conta numa boa (embora o texto não deixe o drama se instalar por mais de dois minutos em momento algum). Kevin tem uma ótima interação com a fofíssima Melody Hurd que interpreta sua filha, a menina é realmente uma graça! Outra que merece destaque no elenco é a escolada Alfre Woodard, que interpreta a incansável sogra de Matt e doida para conseguir a guarda da neta. O trio faz milagre com o roteiro protocolar que tem em mãos. 

Paternidade (Fatherhood/EUA-2021) de Peter Weitz com Kevin Hart, Alfre Woodard, Melody Hurd, Lil Rel Howery, Paul Reiser, Anthony Carrigan e DeWanda Wise. 

sábado, 26 de junho de 2021

Pódio: Joan Allen

Bronze: a mulher amarga

3º A Outra Face da Raiva (2005) Foi por causa de Joan que acabei assistindo a esta comédia despretensiosa e confesso que não me arrependi, a atriz está ótima como a mulher traída que odeia o ex-marido (com razão), mas que adquire o efeito colateral de ter fel correndo pelas veias. A coisa muda um tanto de figura quando um novo pretendente cruza seu caminho e ela finalmente parece mudar um pouco o tom amargo com que olha a vida. Joan não foi lembrada nas premiações pelo papel, mas bem que poderia (e sua química com Kevin Costner é outro ponto positivo). Acho que este foi o último papel de destaque da atriz que, desde então, ficou restrita a pequenas participações. 

Prata: a mulher colorida
2º A Vida em Preto e Branco (1998) Muita gente achou que Joan seria lembrada no Oscar pelo seu excelente trabalho como a dona de casa que padece da doença de ficar colorida. Calma, eu explico. Na fantasia criada por Gary Ross, um casal de adolescentes é transportado para um programa de TV das antigas e acabam provocando mudanças na sociedade conservadora retratada ali. O que era preto e branco fica colorido e gera uma série de conflitos entre os personagens. Joan Allen interpreta a mãe do casal e capricha nos trejeitos dos programas clássicos americanos. Aos poucos sua personagem descobre que a vida pode ser diferente para além dos tons cinzentos, o que é só um dos pontos que fazem deste um ótimo filme. 

Ouro: a esposa difamada
1º As Bruxas de Salém (1996) Quando assisti ao filme, eu fiquei pasmo que ao lado de Daniel Day Lewis e Winona Rider estar aquela atriz que eu desconhecia que roubava a cena toda vez que aparecia gigante na telona. Era Joan Allen, atriz forjada no teatro e que ali ganhava de vez destaque no cinema. Nascida em Illinois em 1956, Joan recebia aqui sua segunda indicação ao Oscar de coadjuvante (a primeira foi por Nixon/1995 lançado no ano anterior). Na pele de Elizabeth Proctor, ela comove na pele da mulher acusada de bruxaria pela amante do esposo e que se torna alvo de uma terrível difamação. Sabe aqueles trabalhos que entram para história do cinema? Pois este é um deles. A atriz ainda concorreu ao Oscar mais uma vez por A Conspiração (2000) que lhe rendeu sua primeira indicação como atriz principal. 

FILMED+: Tempestade de Gelo

 
Sigourney e Kevin: o sexo nunca mais foi o mesmo. 

Dia desses fiquei surpreso que eu ainda não havia feito a postagem de um dos meus filmes favoritos do Ang Lee, eis então que tomei vergonha na cara e resolvi escrever assim que possível. Tempestade de Gelo, é o filme (baseado no livro de Rick Moody) que foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes e saiu de lá com o merecido prêmio de melhor roteiro. Assim como os seus melhores trabalhos em língua inglesa, o diretor taiwanês se beneficia muito de seu olhar estrangeiro sobre a cultura de outro país e constrói uma narrativa calcada nas sutilezas das relações humanas. Aqui ele tem um cenário mais do que especial, já que a história acontece em 1973 no confortável subúrbio de New Canaan, em Connecticut, período em que os moradores experimentam os efeitos da revolução sexual. A tradicional festa de Ação de Graças está chegando, mas o clima não está para comemorações na casa dos Hood, Benjamin (Kevin Kline) e Elena (Joan Allen) parecem cada vez mais distantes. Some isso ao crescimento dos filhos e a ebulição hormonal da adolescência e este universo só se amplia, afinal, enquanto Paul (Tobey Maguire) está interessado em uma colega da escola (Katie Holmes), sua irmã, Wendy (Cristina Ricci) mostra-se bem mais curiosa e ousada, ao explorar os interesses que dois meninos demonstram por ela. Mikey (Elijah Wood) e Sandy (Adam Hann Byrd) são filhos de um casal de amigos dos Hood e não fazem a mínima ideia de que Benjamin tem um caso com a mãe deles, a insatisfeita Janey Carver (Sigourney Weaver). Neste contexto, resta ao pai, Jim Carver (Jamey Sheridan)  nunca saber muito bem o que está acontecendo em casa. O apreço aos detalhes cai como uma luva diante das possibilidades que a trama apresenta, sempre deixando nas entrelinhas a intensidade e a fragilidade daquelas relações, merecendo destaque os diálogos saborosos de uma inspirada Sigourney Weaver que solta verdadeiras pérolas para o amante, seguida de perto da postura quase cientificamente exploratória de Wendy perante os meninos da vizinhança. No meio de tudo isso o que prevalece é a sensação de que a grande maioria dos personagens adultos precisaram compreender as mudanças que a sociedade estava atravessando, enquanto os mais jovens absorviam as novas referências com uma rapidez impressionante. Se existe uma cena bastante emblemática no filme é a antológica festa da chave, que despertou arrepios e discussões na plateia. O desconforto dos casais presentes transborda da tela e algumas revelações importantes finalmente vem à tona. Mas não pense que o filme é sisudo ou pesadão, com citações às revistas em quadrinhos, piadinhas visuais e um humor um tanto sarcástico sobre as hipocrisias abaixo da casca de perfeição do Tio Sam garantem ao filme um raro equilíbrio. Neste segundo filme feito em língua inglesa (o primeiro em solo americano), Ang Lee capricha também na melancolia de um mundo em transformação e enfatiza a perda da inocência como um verdadeiro choque de realidade aos personagens ao final da sessão. Apesar de não ter aquele final fechadinho que se espera, o filme funciona por deixar claro que as mudanças não pararam por ali na vida daquelas pessoas.  Embora tenha ótimos trabalhos do elenco, somente Sigourney Weaver recebeu algum reconhecimento por sua atuação (levou o BAFTA de atriz coadjuvante), mas Kline e Joan Allen também possuem trabalhos marcantes ao lado dos atores mirins que estavam começando a procurar papéis de gente grande no cinema. Grande filme. 

Tempestade de Gelo (The Ice Storm / EUA - 1997) de Ang Lee, com Kevin Kline, Joan Allen, Sigourney Weaver, Cristina Ricci, Tobey Maguire, Elijah Wood, Adam Hann Byrd, Jamey Sheridan, Henry Czerny, Allison Janney e  Katie Holmes. ☻☻☻☻

domingo, 20 de junho de 2021

PL►Y: A Luz No Fim do Mundo

Casey e Anna: mundo sem mulheres. 

Acho que aquele momento em que Casey Affleck levou para casa o Oscar de melhor ator por Manchester à Beira-Mar (2016) entrou para a história como uma das maiores saias justas da cerimonia, afinal, Casey acabava de ser acusada pela forma abusiva como tratou algumas atrizes durante a filmagem do bizarro Eu Ainda Estou Aqui (2010) estrelado por Joaquin Phoenix. O resultado foi que ele levou o prêmio para casa com certo constrangimento sem receber os aplausos da militante Brie Larson que lhe entregou o prêmio de cara amarrada. Por mais que apresente argumentos e se desculpe, a imagem do ator nunca mais foi a mesma. Prova disso é que o efeito do Oscar em sua carreira é praticamente nulo. Logo depois daquele momento complicado ele lançou seu segundo filme como diretor, A Luz no Fim do Mundo, a história de um pai (Casey Affleck) e uma filha (Anna Pniowky) que vagam por um mundo pós-apocalíptico em que uma vírus letal exterminou as mulheres. Assim, a humanidade contempla a sua extinção e a missão deste pai é proteger aquela que talvez seja a última criança do sexo feminino a nascer. Ciente dos perigos que a menina corre em um mundo habitado por homens pouco confiáveis, eles vivem escondidos a maior parte do tempo, a apresentando como menino aos estranhos que aparecem no caminho. O filme é perpassado por vários diálogos que parecem construídos para que Affleck peça desculpas pelo seu mal comportamento com as mulheres em seu set de filmagem, pontuando aqui e ali falas que ecoam a forma como a imprensa lidou com as denúncias que sofreu. Como ator ele apresenta um bom trabalho, assim como a menina Anna Pniowsky que é bastante carismática durante os longos diálogos que trava com seu parceiro de cena. Porém, se existe um problema no filme é justamente as longas conversas entre pai e filha, que nem sempre são conduzidas de forma interessante, mantendo a câmera parada e o tom monocórdio de Affleck a maior parte do tempo (e a fotografia pouco atrativa também não ajuda ao cansar a vista rapidamente). Apesar da premissa interessante de sobrevivência (que em alguns momentos me pareceu uma versão do excelente A Estrada/2009 de John Hillcoat) torna-se bastante irregular em sua execução, talvez por conta da pouca experiência de Casey atrás das câmeras (afinal, este apresenta a mesma dificuldade de manter o ritmo que seu filme anterior). Lá pela reta final o filme realmente cresce em tensão quando a dupla se abriga na casa de velhinhos e o que era adiado finalmente acontece.  A Luz no Fim do Mundo tem uma ideia interessante, mas padece com um diretor que confiou demais no próprio taco e na disposição das pessoas fazerem a leitura que seu filme guarda com sua vida pessoal. 

A Luz No Fim do Munto (Light of My Life / EUA-2019) de Casey Affleck, com Casey Affleck, Anna Pniowsky, Tom Bower, Elisabeth Moss, Thelonius Serrell-Freed e Tommy Clarke. ☻☻

PL►Y: Espontânea

Charlie e Katherine: adolescentes prestes a explodir. 

Uma das coisa mais comuns de serem relatadas pelos adolescentes é a pressão que sofrem com a proximidade da vida adulta. A busca pela própria identidade, a relação com os grupos para além do núcleo familiar, os anseios, as ambições, a hipervalorização da vida social, o término do Ensino Médio e a chegada do Ensino Médio, problemas de auto-estima, vida sexual, frustrações, somada à sensação de  impotência pode gerar ansiedade, depressão entre outras coisas... a vida não é fácil perante a explosão hormonal típica da idade. Agora, imaginem que diante este quadro, os adolescentes começassem a explodir, literalmente. Esta é a ideia por trás de Espontânea, filme de Brian Duffield com base no livro de Aaron Starmer, que foi considerado por alguns o filme mais sangrento do ano passado. O título é bastante merecidos, já que boa parte do elenco explode durante a trama, mas engana-se quem pensa que se trata de um filme de terror, muito pelo contrário o filme é bastante bem-humorado e acaba funcionando como uma comédia romântica adolescente com bastante... digamos, ketchup. A protagonista da história é Mara (Katharine Langford da série 13 Reasons Why), adolescente que tem como melhor amiga Tess (Hayley Law) e conhece a primeira jovem explosiva (ou explodida?) desde que começou a estudar. Enquanto a polícia e o governo buscam explicações para o que aconteceu, Mara acaba se aproximando do simpático Dylan (Charlie Plummer), um jovem cinéfilo que percebe naquele momento desesperador a fonte de coragem para declarar o seu amor para Mara - que está bem longe de ser a jovem ingênua e bobinha que aparece neste tipo de filme. Desencanada, a postura de Mara somada à leveza de Dylan são os pontos que tornam o filme uma verdadeira colagem de gêneros, que vai da comédia adolescente, ao suspense e até ao romance. Repleto de citações cinematográficas (Cronenberg, E.T., Carrie, Traffic...) o filme se desenrola muito bem até o momento em que precisa caminhar para o seu desfecho e a queda de ritmo torna-se considerável. Por outro lado é um grande prazer finalmente ver um romance adolescente em que alguém não está padecendo de uma doença degenerativa e o diretor pesa a mão para que o filme seja levado a sério. Espontânea não é nada disso, trata-se de uma alegoria sobre todo o peso que os adolescentes sentem sobre os ombros e a estranha sensação de que estão prestes a explodir. Embora o final não seja tão bacana quanto o resto da sessão, as performances de Langford (que adoro pelo fato de não parecer com a maioria das jovens atrizes de Hollywood, além de dona de uma elegância juvenil que faz toda a diferença) e Plummer (que não tem parentesco com o veterano Christopher Plummer) merecem a torcida da plateia durante toda a sessão enquanto o sangue jorra na câmera. 

Espontânea (Spontaneous/EUA-2020) de Brian Duffield com Katherine Langford, Charlie Plummer, Hayley Law, Yvonne Orji, Piper Perabo, Peter Bundic e Rob Huebel. ☻☻

sábado, 19 de junho de 2021

PL►Y: Ela Morre Amanhã

Kate: tediosa premonição. 

Quando vemos Amy (Kate Lynn Sheil) pela primeira vez temos a impressão que ela já não está bem há algum tempo. Solitária e melancólica, durante os primeiros minutos do filmes somos apresentados ao tom desolador de seus últimos dias, afinal, logo o letreiro e as declarações de Amy deixarão clara a forte sensação de que ela morrerá no dia seguinte. Ela não sabe dizer muito bem o motivo desta espécie de premonição, mas de alguma forma ela pressente de que a morte está cada vez mais perto. Ela comenta sua angústia com Jane (Jane Adams), que aos poucos passa a ter a mesma sensação e torna-se capaz de transmiti-la para quem se aproxima dela. Assim, como se fosse uma doença contagiosa, a diretora Amy Seimetz constrói seu filme e roteiro com um  grupo de personagens que começam a temer a morte iminente. O medo do fim da vida é algo bastante recorrente no cinema, mas em nenhum filme ele foi construído de forma tão direta e simplista (principalmente por conta da cadência irregular impressa pela diretora), muito por conta das várias oportunidades em desenvolver as personagens que o filme abandona pelo caminho. Se a postura de Amy indica que ela tenha um histórico de depressão ou crises de ansiedade (o que se torna presente nos diálogos), estes aspectos nunca recebem muito destaque na construção da história. Embora o filme emoldure a angústia de Amy com uma edição fragmentada, costurando momentos diferentes da personagem com outras que parecem retiradas de um filme experimental e o uso curioso de luzes coloridas na fotografia, as cenas de Amya sempre emperram a narrativa. Muito mais interessante é Jane (muito também por conta da excelente Jane Adams, grande atriz que nunca recebeu o devido reconhecimento desde que foi revelada em Felicidade/1998 de Todd Solondz) que não entende muito bem o que está acontecendo e extrai todas as potencialidades cômicas que esta trama inusitada pode render (e que poderiam ter sido mais exploradas ao longo da sessão). Algo me diz que Jane poderia render um bom filme sozinha ao contaminar todos os convidados de uma festa tediosa e que demonstra que o elenco é esforçado, mas o roteiro não ajuda muito. Embora tenha uma ideia interessante, Ela Morre Amanhã não consegue desenvolvê-la em toda a sua potencialidade, deixando várias possibilidades pelo caminho e pagando o preço de levar-se a sério demais - o que não impediu que este apesar do seu baixo orçamento e atmosfera indie, o longa ganhasse notoriedade durante a pandemia por conseguir retratar a sensação de vulnerabilidade conjugada à paranoia de que a morte está próxima. No entanto, enquanto filme, ele poderia ter galgado muito mais do que realmente tenta alcançar. 

Ela Morre Amanhã (She Dies Tomorrow / EUA - 2020) de Amy Seimetz com Kate Lynn Sheil, Jane Adams, Chris Messina, Tunde Andebimpe, Jennifer Kim, Josh Lucas, Michelle Rodriguez e Adam Wingard. ☻☻

NªTV: Sweet Tooth

 
Stefania, Christian e Nonso: a fantasia pandêmica na Netflix. 

Sucesso nas últimas semanas na Netflix (e forte candidata à série mais fofinha do ano), Sweet Tooth nem é tão fofa assim. O fato é que a história da criança que nasce com chifres e orelhas de servo e precisa se esconder com o pai no meio do nada para continuar vivo tem aqueles elementos de fantasia e suspense que de vez em quando casa tão bem na gigante do streaming. Além do protagonista infantil de aparência curiosa, outros fatores também ajudam a chamar atenção para o  programa. A começar por uma misteriosa pandemia que começa a dizimar parte da humanidade e que passa a ser chamada de "flagelo". A misteriosa enfermidade também é responsável pelo tom crescente de paranoia e faz com que pessoas que sempre se deram bem sejam capazes de ações escabrosas. No entanto, não é só de flagelo que vive a sociedade imaginada na história, já que junto a isso, as crianças começaram a nascer híbridas, carregando características de animais e provocando grande estranhamento, além da suspeita de que estas serem as grandes responsáveis pela contaminação da humanidade. Portanto neste mundo imaginário da história em quadrinhos criado pelo canadense Jeff Lemire em 2009, existem aqueles que querem exterminar os híbridos, pessoas que tentam protegê-las e pessoas empenhadas para descobrir a cura da terrível doença. Sim, Sweet Tooth possui suas semelhanças com o estranho mundo que vivemos desde março de 2020 e foi filmada durante a pandemia na Nova Zelândia que, como todos sabem, teve uma postura exemplar na contenção do Coronavírus e foi o primeiro país a livrar-se dele. Para além da situação de saúde mundial e seus protocolos de segurança, o grande desafio era determinar o público alvo da série e evitar que a violência presente na trama afugentasse os mais jovens. O incrível é que o programa adaptado por Jim Mickle e Beth Schwartz acerta no tom, deixando que ganhe a embalagem de uma produção infanto-juvenil, mas capaz de atrair a atenção dos adultos que são capazes de torcer pelo adorável menino de chifres, o Gus (o fofo Christian Convery de onze anos). A vida de Gus vira do avesso quando ele precisa se virar sozinho no mundo hostil que o pai (um bom trabalho de Will Forte) sempre tentou deixá-lo afastado, afinal, o menino pretende encontrar a mãe que não faz a mínima ideia de onde ele está. Claro que atrás dele terá um bando de malvados e ao seu lado um punhado de tramas paralelas que ne sempre ajudam a produção a manter o ritmo adequado para prender a atenção em seus oito episódios. Criado como um eficiente entretenimento, Sweet Tooth é uma produção caprichada, engenhosa na construção de seu mundo particular e cheia de possibilidades a serem exploradas em sua próximas temporadas. Se (a demorada) Stranger Things ainda ocupa o posto de série favorita da Netflix ao redor do mundo, Sweet Tooth tem chances de ameaçar este posto em breve. 

Sweet Tooth (Estados Unidos / 2021) de Jim Mickle e Beth Schwartz com Christian Convery, Will Forte, Nonso Anozie, Stefania LaVie Owen, Dania Ramirez, James Brolin e Adeel Akhtar. ☻☻☻☻

segunda-feira, 14 de junho de 2021

PL►Y: Quo Vadis, Aida?

 
Aida (Jasmila Zbanic): dores de uma tragédia anunciada. 

Desde que foi exibido na disputa ao Leão de Ouro no último Festival de Veneza, o longa Quo Vadis, Aida? se tornou um daqueles filmes tão comentados que se torna praticamente impossível não ter vontade de vê-lo. Some isso às indicações aos prêmios de filme estrangeiro que concorreu no Oscar e no BAFTA e a curiosidade só cresce ainda mais. No entanto, o bom mesmo, é que o filme da diretora Jasmila Zbanic (indicada ao BAFTA de melhor direção) é realmente impressionante. O filme conta as horas que precederam o aterrorizante massacre de Srebrenica, um dos momentos mais sangrentos da guerra civil iugoslava, marcada pelos conflitos entre países do Leste Europeu que perdurou de 1991 até 2001. Vale ressaltar que a narrativa do filme acontece durante os ataques da Sérvia à Bósnia e Herzegovia, cujas tropas promoviam um verdadeiro genocídio étnico após a Bósnia proclamar independência em 1992. A trama do filme é ambientada três anos depois, na cidade de Srebrenica que está prestes a ser invadida pelos Sérvios. É bom destacar este contexto histórico, já que o filme não se preocupa em contextualizar historicamente o que se vê na tela, para a emoção que a diretora pretende despertar em seus espectadores, basta saber que existe um grupo enorme de pessoas que deixam seus lares temendo por suas vidas e buscam abrigo na base da ONU. O que move todo o filme é a angústia do drama humano que transborda de uma tragédia anunciada. Conduzindo a narrativa está Aida (Jasmila Zbanic), a protagonista do filme, que teme por tudo o que pode acontecer perante o caos que se instaura no país, mas teme, principalmente, pela vida de sua família. Trabalhando como intérprete da ONU, ela transita entre os refugiados e as autoridades, sofrendo por ver os rumos dos acontecimentos sem poder fazer muita coisa perante o que acontece diante dos seus olhos. Aos poucos o local que deveria transmitir segurança se torna uma verdadeira bomba relógio, com acordos políticos surgindo aqui e ali, fermentando a permissividade de quem deveria protegê-los e que se tornam cúmplices de uma tragédia. A atriz Jasna Djuricic está perfeita como Aida, ela se comporta feito uma verdadeira leoa enjaulada, aos poucos sua angústia cresce perante a impotência que se revela implacável. O trabalho de Jasna é fundamental para que o filme alcance o nível que o trabalho da direção almeja: ser urgente, cru e numa linguagem quase documental (que é o formato dos primeiros trabalhos da diretora). Jasmila Zbanic filma como se estivesse dentro de uma panela de pressão e faz doer ao encaixar aqui e ali cenas de um passado próximo em que os inimigos eram vizinhos e amigos de longa data. Se terminasse naquela cena desoladora do pátio o filme seria perfeito, mas ele se estende um pouco mais e não era necessário. Ainda que seja um retrato de um período histórico recente de um país distante, o ódio disseminado pela política de "nós versus eles" mostra-se bastante próximo quando vemos até onde a sandice humana pode ir. 

Quo Vadis, Aida? (Bósnia e Herzegovina | Áustria | Romênia | Noruega | Alemanha | Polônia | França | Noruega | Turquia - 2020) com Jasna Djuricic, Izudin Bajrovic, Boris Ler, Johan Heldenbergh e Raymond Thiry. ☻☻

domingo, 13 de junho de 2021

#FDSérie DIVERSIDADESXL: Feel Good

 
Charlotte e Mae: ótima primeira temporada. 

Reza a lenda que as segundas temporadas são sempre as mais arriscadas, afinal, as séries não devem se repetir, mas precisam manter suas identidades aprofundando as questões que seus personagens apresentaram na temporada anterior. Quando assisti a primeira temporada de Feel Good na Netflix (lembro como se fosse hoje, era uma noite de domingo em que eu não fazia a mínima ideia do que assistir e resolvi dar uma chance para aquele programa que acabava de ficar disponível na gigante do streaming), vi os seis episódios (curtinhos em seus vinte minutos) de uma vez só, compondo uma espécie de filme episódico e que terminava com um dramático gancho para a segunda temporada. Confesso que fiquei bastante apreensivo com o que estava por vir. Talvez esta curiosidade de saber o destino das personagens tenha pesado quando tentei ver toda a segunda tmeporada de uma vez tão logo foi lançada nesse ano. Consegui ver dois capítulos por dia e olhe lá. Criado e escrito pela comediante Mae Martin (que conta com Joe Hampson na lapidação do texto), em sua primeira temporada, a série caprichava no humor (ainda que autodepreciativo) por conta de sua protagonista, Mae (Mae Martin) que ganha a vida como comediante e cai de amores por uma pessoa que assistia a um de seu shows de stand up, George (Charlotte Ritchie). As duas se aproximam, se apaixonam, passam a conviver, os problemas começam a surgir, mas toda a autenticidade do programa reside justamente na forma como constrói aquela relação. No entanto, conforme a temporada avança, o passado de Mae com o uso de drogas começa a se tornar mais presente e prejudicar o que poderia ser visto como um idílico romance. A química entre Mae e Charlotte é fundamental para que tudo funcione conforme o esperado e as duas dão conta de transformar o casal na alma do programa. Quando a segunda temporada começa, aquela sensação de angústia deixada na season finale retorna, mas aos poucos se dilui em um conjunto de situações tão repetitivas quanto previsíveis. É verdade que a trama constrói para si um conjunto de elementos que tornam esta segunda temporada muito mais densa, já que somado ao processo de reabilitação da protagonista, existe ainda um diagnóstico de estresse pós-traumático e revelações sobre o passado sobre relacionamentos abusivos que ela vivenciou. Talvez o problema seja que ficou coisa demais para ser trabalhada nos novos seis episódios e sobrou pouco espaço para o que vimos anteriormente. O humor foi praticamente embora e  Mae sofre um bocado... soa até exagerado todas as coisas complicadas que acontecem com ela durante a temporada. Em determinados momentos eu imaginava o motivo de ainda estar assistindo a série, talvez eu desejasse um final feliz para ela, mas do jeito que termina eu nem sei dizer se foi feliz ou não. Recentemente descobri que esta é a última temporada, o que só piora minha percepção sobre o que fizeram com o programa em 2021. Acho que complicaram demais as coisas em Feel Good e não tiveram tempo de trabalhar suas ambições de forma satisfatória, o resultado é que até o romance que era empolgante na temporada anterior se tornou tedioso nesta temporada. Feel Good virou Feel Bad

Feel Good (Reino Unido / 2020-2021) de Mae Martin com Mae Martin, Charlotte Ritchie, Phil Burgers, Lisa Kudrow, Shophie Thompson, Tom Andrews, Jack Barry e Ramon Tikaram. 1ª temporada ☻☻☻ / 2ª temporada 

sábado, 12 de junho de 2021

#FDSérie: Special

 
Jenkins e Connell (ao centro): série para deixar saudades. 

Foi com enorme tristeza que me despedi do seriado Special da Netflix. Descobri a série meio que por acaso, assim que ela estreou em 2019 e fiquei muito feliz quando foi renovada para a segunda temporada, que foi adiada por conta da pandemia de Covid-19 e depois foi finalizada com a notícia de que seria a última a ser produzida. Na segunda temporada a sensação de despedida me deixou a impressão de que o seriado poderia continuar por várias temporadas frente à temática única que tomou para si. Afinal, quantas vezes você viu uma comédia sobre um rapaz gay com paralisia cerebral e seus dilemas para viver a vida que sempre quis? Esta foi a ideia de Ryan O'Connell que depois de ganhar a vida como roteirista de séries para TV (como Awkward, Daytime Divas e o sucesso Will & Grace) resolveu passar para a frente das câmeras e acumular as funções de produtor, roteirista e ator. O resultado da primeira temporada (curtinha com oito episódios de pouco mais de vinte minutos cada), lhe rendeu uma indicação de atuação no EMMY e outra enquanto produtor da série. Na série, Ryan vive Ryan Hayes um rapaz que trabalha para um site que pretende ser descolado, mas o rapaz ainda precisa resolver algumas questões sobre a forma como lida com a paralisia cerebral, sua homossexualidade e até com sua mãe (um ótimo trabalho de Jéssica Hecht que foi indicada ao Emmy de atriz coadjuvante). Assim como o personagem, Ryan também possui paralisia cerebral, passou por cirurgias e outras situações para conviver com ela da melhor forma possível e aqui demonstra abordagens que só seriam possíveis através das vivências que acumulou ao longo da vida, assim a série retrata a forma como precisa lidar com o mundo ao seu redor e como este mundo lida com ele. Assim, quando inicia um relacionamento ou se envolve em alguma desventura, Ryan deixa claro que não é definido por esta ou aquela característica, mas pela junção de tudo que ele é. Por isso, torna-se ainda mais real a forma como agrega outros fatores ao desenvolvimento de sua personalidade. Neste ponto, o relacionamento com a mãe ganha destaque em vários episódios, por evidenciar como o zelo e a proteção em excesso podem atrapalhar em alguns momentos e tornar alguns desentendimento inevitáveis, seja quando ele decide morar sozinho (e encarar novos desafios) ou quando um novo relacionamento surge na vida dela - e ela fica visivelmente sem saber como lidar  com tudo isso  (afinal se privou destes sentimentos por tanto tempo em nome do filho). Special (que tem o maior jeitão de filme indie) tem outras qualidades que vão para além de sua ideia original e a simpatia de seus personagens, a começar pela naturalidade como explora a vida sexual de Ryan, sem usar de sensacionalismo quando aparece cenas de nudez, sexo, beijos ou diálogos improváveis em outros programas do gênero.  Quem também merece destaque é a melhor amiga de Ryan, Kim (Punam Patel também indicada ao EMMY de coadjuvante pelo papel), uma influenciadora digital que foge dos estereótipos e ajuda a caminhada de Ryan em encontrar a si mesmo como uma espécie de fada madrinha de carne e osso. No fim das contas o que Ryan e todos os outros personagens só querem ser amados pelo que são, igual a você, eu e todos os outros ao nosso redor.  Se você achou a primeira temporada curta, a segunda é ainda menor (seis episódios um pouco mais longos) e deixa aquela sensação que o programa tinha material para várias temporadas. Por enquanto terei que me contentar em criar novas histórias para Ryan na minha cabeça - e para Tanner (Max Jenkins) também. Elogiada pela crítica, mas sem a audiência esperada (talvez por ser muito fora da caixinha) a série só não é melhor por terminar na segunda temporada.   

Special - 1ª e 2ª Temporadas de Ryan O'Connell com Ryan O'Connell, Jessica Hecht, Punam Patel, Marla Mindelle, Patrick Fabian e Max Jenkins. ☻☻

sexta-feira, 11 de junho de 2021

#FDSérie DIVERSIDADESXL: Todxs Nós

 
Clara, Juliana e Kelner: trio dos bons. 

Confesso que estou muito enrolado para dar conta de ver os filmes para fazer uma semana de Ciclo DiversidadeSXL deste ano, então tive a ideia de comentar três séries que buscam abordar a diversidade sexual de uma forma diferente. Fugindo dos lugares comuns e apresentando seus personagens para além de um rótulo, mas enquanto pessoas em descobertas, dilemas, conflitos que vão para além das questões de preferência sexual. Para começar este #FDS resolvi escrever sobre uma série lançada pela HBO no ano passado e aguarda a sua segunda leva de episódios. Todxs Nós me surpreendeu não apenas pela forma como aborda questões de sexualidade e de gênero como também encontra espaço para falar sobre amizade, crescimento, fidelidade, família, veganismo e muitas outras coisas! Sendo composta por oito episódios com menos de trinta minutos e embalados por uma trilha sonora bastante, digamos, peculiar, a série conta a história de dois amigos de longa data, Vini (Kelner Macêdo) e Maia (Juliana Gerais), que dividem um apartamento em São Paulo e seguem suas vidas sem maiores novidades. Vini ainda tenta a sorte como ator e está com problemas com o namorado (Felipe Frazão) que insiste em convencê-lo a ter um relacionamento aberto, enquanto Maia trabalha em um escritório publicitário e está cada vez mais interessada em um colega de trabalho (Rafael de Bona do bom 45 Dias Sem Você/2018) que já é comprometido.  A rotina da dupla é alterada com a chegada da prima do Vini, ou melhor, de prime do Vini, Rafaela, agora Rafa (Clara Gallo) que acaba de se descobrir uma pessoa não-binária e está prestes a fazer várias mudanças em sua vida. As mudanças vão para além do corte de cabelo e o visual, mas inclui a exigência no uso de pronomes neutros quando se referem a Rafa, no entanto, o maior problema é a família que não entende muito bem o que está acontecendo. Até Vini, gay aparentemente descolado, enfrenta dificuldades em lidar com as mudanças referentes a prime e em determinados momentos demonstra seus preconceitos com aquela história. No entanto, o processo de crescimento de Rafa inclui ainda algumas verdades que precisam ser encaradas (como aprender a se bancar sem ajuda financeira do pai e perceber que ainda que você se considere entre iguais, existem espertalhões "binários" ou "não-binários" em toda parte). O clima despojado e bem-humorado ajuda a  manter o equilíbrio quando algumas situações pesam na vida do trio, além disso o roteiro consegue manter o tom certo perante o desafio de lidar com temáticas delicadas em tempos de politicamente corretos (sim, mesmo que as intenções da série sejam as melhores possíveis, por vezes ela também demonstra o desafio em tocar nestes assuntos com humor sem ser ofensiva) assim temos cenas no melhor estilo "eu posso rir disso?" (que soam como provocações ou até armadilhas para quem se considera "desconstruído") conjugadas com outras que pecam quando investem num tom mais didático. Todxs Nós acerta mesmo é quando apresenta seus personagens de carne e osso com qualidades, defeitos, anseios, desejos (e a série tem uma cenas bem desinibidas) sem perder o tom de alfinetada (e sobra alfinetada até para a galera de teatro, dos coletivos, dos militantes, dos preconceituosos... e por aí vai).  No entanto, o programa deixa claro que não cria uma bolha para si, sempre busca a realidade, especialmente em seu último episódio em que a intolerância explode em sua forma mais covarde. Eu não costumo ter sorte com séries brasileiras da HBO (eu adorava FDP/2012 e ela foi cancelada logo após sua primeira temporada), mas com a segunda temporada de Todxs Nós prestes a estrear neste ano, eu adoraria ouvir que a terceira também chegará no ano que vem. Enquanto a nova temporada  não vem, a primeira está disponível na HBO GO. 

Todxs Nós (Brasil/2020) de Vera Egito, Heitor Dhalia e Daniel Ribeiro com Clara Gallo, Kelner Macêdo, Juliana Gerais, Rafael de Bona, Felipe Frazão, Gilda Nomacce e Felipe Frazão. ☻☻☻

domingo, 6 de junho de 2021

KLÁSSIQO: Andrei Rublev

Anatoliy: personagem real em clássico de Tarkovsky. 

Depois dos prêmios de A Infância de Ivan (1962), o cineasta Andrei Tarkovsky investiu em um épico de quase três horas a ser lançado em seguida. Se o filme anterior criou alguns impasses perante os censores da União Soviética pela forma incomum com que retratou a obra de Vladimir Bogomolov, aqui a situação não foi diferente. Ao escolher como protagonista o famoso monge pintor Andrei Rublev, o diretor estava mais interessado em construir um retrato do período em que o artista viveu, a sanguinolenta Rússia Medieval assolada pela barbárie enquanto seus personagens discutem entre o paraíso e a danação. Visto hoje, o filme também demonstra muita relação com os dilemas do próprio cineasta ao ter que trabalhar com arte num país em que suas obras eram constantemente interrogadas por seus significados alegóricos. O diretor fixa aqui sua opção pela não obviedade ao contar histórias, mesmo quando se trata de uma biografia. Aqui Rublev (Anatoliy Solonitsyn) é apresentado como um homem bom, forte e temente a Deus, mas encontra tantas atrocidades pelo caminho ao se tornar responsável pela criação dos afrescos de uma catedral que começa até a questionar sua própria fé.  Enquanto o protagonista sofre seus próprios dilemas, o diretor apresenta todo aquele universo ao seu redor, entre loucos, pessoas cegas pela fé, pagãos, soldados, pessoas comuns, além de combates, e massacres provocados pelas invasões de tártaros e mongóis. Este peso da parte histórica do filme acontece também por haver poucos registros sobre a vida de Rublev, que viveu entre os séculos XIV e XV e o texto busca perceber como seria sua presença durante aquele período conturbado. A saída foi criar uma narrativa dividida em sete episódios, sem maiores relações entre eles, calcados em acontecimentos importantes que precederam o período dos czares. O resultado é um filme com quase três horas de duração que foi finalizado em 1966, mas que foi exibido oficialmente somente em 1969, -ano em que também foi exibido no Festival de Cannes - mas conseguiu ser distribuído mundialmente somente em 1973. Existe toda uma polêmica em torno  com sua do longa em sua mistura de religiosidade e violência, mas muitos os consideram um dos filmes mais otimistas da cinematografia do diretor, principalmente pela postura de seu personagem principal que é tratado de forma bastante respeitosa (lembrando que se tratava de um filme financiado por verba de um governo comunista). A produção constrói uma verdadeira odisseia religiosa nas entranhas da história russa, o que o torna bastante querido pelos historiadores. Para a maior parte do público o resultado pode ser cansativo, afinal, somos  convidados a acompanhar uma verdadeira colagem de acontecimentos sangrentos de um período bastante cruel da história. Filmado em preto e branco, o filme começa com impressionantes tomadas aéreas e demonstra mais uma vez o gosto do cineasta em deixar os cenários contarem suas histórias por si só. Ao final, ele revela as cores das obras de Rublev na famosa catedral que é construída ao longo da trama. Apesar do seu formato diferente para o gênero, este é o filme mais tradicional (ou explícito) do diretor que ficou famoso por suas poesias visuais e trabalhos repletos de simbologias.

Andrei Rublev (União Soviética /1966) de Andrei Tarkovsky com  Anatoliy Solonitsyn, Ivan Lapikov, Nikolay Grinko e Irina Tarkovskaya. ☻☻☻ 

sábado, 5 de junho de 2021

PL►Y: Saída à Francesa

Michelle e Lucas: pendengas familiares a resolver. 

Quando foi anunciada a versão cinematográfica do best-seller French Exit do americano Patrick DeWitt muita gente ficou animada. Quando Michelle Pfeiffer foi escalada para viver a protagonista as expectativas foram nas alturas e a colocaram na lista de favoritas para o Oscar 2021... mas bastou o filme ser exibido no Festival de Nova York para que as opiniões se dividissem. Confesso que ouvi tantas críticas ao filme (no entanto, sempre destacando o trabalho oscarizável de Pfeiffer) que quando o assisti o achei bem melhor do que eu esperava. Já lançado em plataformas digitais por aqui com nome de Saída à Francesa, o filme é uma espécie de comédia amalucada que peca por sua instabilidade quando o desfecho começa a ser necessário e o diretor insiste em continuar. O cineasta Azazel Jacobs quase cometeu o mesmo erro em The Lovers/2017, mas soube contornar o problema em seus 97 minutos de duração. Aqui o efeito é um tantinho mais problemático por se levar mais a sério do que deveria em quase duas horas de duração, no entanto, o trabalho de Michelle e Lucas Hedges consegue prender a atenção quando o ritmo começa a ser um problema em situações pouco interessantes que fazem o filme beirar duas horas. Aqui acompanhamos a viúva Frances Price (Michelle Pfeiffer que foi indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz pelo papel), uma beldade que se tornou uma espécie de celebridade na alta sociedade de Nova York décadas atrás, mas desde a morte do esposo (Tracy Letts), Frances está fora do eixo. Não sabe muito bem o que fazer com o tédio de seus dias na companhia do filho, Malcolm (Lucas Hedges) e o gato Frank. Eis que ela aceita a ideia de uma amiga para passar uma temporada em sua casa na França e desde a sua viagem ela começa a conhecer novas pessoas e revelar um pouco mais de suas esquisitices. A começar pelo gato (que tem uma particularidade que não vou dizer para não estragar a surpresa) e aquela mania de dar grandes quantias de dinheiro para estranhos que lhe despertam alguma simpatia - esta mania talvez seja por Frances ter problemas sérios em se relacionar com outras pessoas, foi assim com o esposo, com o filho e até com uma socialite que deseja ser sua amiga em território francês, mas enquanto ela precisa resolver suas questões (afinal a localização geográfica muda, mas os problemas são internos e não externos), Malcolm também tem seus próprios dilemas para lidar (seja o noivado que ficou pelo meio do caminho para acompanhar à mãe ou a rejeição paterna mal resolvida até hoje). Por deixar algumas possibilidades pelo caminho, Saída à Francesa soa como uma brincadeira com a bolha dos endinheirados americanos, seu estilo de vida e  excentricidades (em alguns momentos o filme me lembrou muito A Estranha Família de Igby/2002). O filme se embola quando passa a retomar personagens sem muito propósito e poderia terminar naquela cena em que Frances caminha pelas ruas francesas (uma trilha sonora mais presente no início também faria milagres para criar empatia pela produção), no entanto, do jeito que está, pode ser visto como um filme interessante para passar o tempo, com o mérito de ter uma grande atriz que parece cada vez mais subestimada em Hollywood.  

Saída à Francesa (French Exit/EUA-2020) de Azazel Jacobs com Michelle Pfeiffer, Lucas Hedges, Tracy Letts, Danielle MacDonald, Imogen Poots, Valeria Mahaffey e Susan Coyne. ☻☻☻

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Pódio: Michael Douglas

Bronze: o pianista icônico.

3º Behind the Candelabra (2013) Também conhecido como Minha Vida com Liberace, o filme de Steven Soderberg fez bonito no Festival de Cannes e ainda surpreendeu quando exibiu Michael Douglas na pele do cintilante pianista. Se a vida particular do artista (especialmente a sexual) é tratada em tom de galhofa, Michael aproveita e entrega uma interpretação bem-humorada e numa química com Matt Damon compatível a que desenvolveu com suas famosas parceiras de tela. O filme recebeu onze prêmios Emmy, incluindo melhor ator para Michael (que também levou o Globo de Ouro e o SAG de melhor ator em filme para a TV). O ator que acabava de retornar após sobreviver a um câncer de garganta. 

Prata: o engravatado inescrupuloso
2º Wall Street - Poder e Cobiça (1987) Sempre tenho a impressão que Gordon Gekko era para ser coadjuvante neste filme de Oliver Stone, mas foi interpretado com tanta gana por Michael Douglas que ofuscou o jovem protagonista ambicioso vivido por Charlie Sheen e que adota Gekko como seu mentor. Se os ganhos aumentam na vida do novato, os riscos também aumentam perante o caráter inescrupuloso de Gordon lidar com os negócios. Michael levou para casa seu Oscar de melhor ator pelo papel (e o Globo de Ouro e National Board of Review também). Ele já tinha um Oscar como produtor por Um Estranho no Ninho (1975) e este segundo serviu para o retirar da sombra do pai, Kirk Douglas, para sempre. 

Ouro: o professor de literatura.
1º Garotos Incríveis (2000) O meu trabalho favorito do ator é na pele do professor de Literatura Grady Tripp neste delicioso filmes de Curtis Hanson que fracassou nas bilheterias (por tratar homossexualidade e uso de drogas sem moralismos? Será?). Eu assisti no cinema e ria sozinho com as desventuras do ex-escritor prodígio que viu o tempo passar e o segundo romance nunca ficar pronto. Às voltas com alunos brilhantes (Tobey Maguire e Katie Holmes incluídos), um editor com fome de sucesso (Robert Downey Jr.) e um caso com a esposa do Reitor (Frances McDormand), Michael foi indicado ao BAFTA e Globo de Ouro, mas o Oscar preferiu só indicar o roteiro e premiar a canção de Bob Dylan. Vejam o filme por favor (eu comprei até o DVD)! 

NªTV: O Método Kominsky

Michael e Kathleen: parceiros de longa data. 

Foi com tristeza que me despedi hoje da última temporada de O Método Kominsky da Netflix. Confesso que quando foi lançado eu assisti ao primeiro episódio e não me empolgou a ideia de ver Michael Douglas como um professor de atores que lidava com o amigo rabugento vivido por Alan Arkin. No entanto, no meio da pandemia, retomei a série e foi um verdadeiro deleite. Não apenas por ver um programa que ousa brincar com o politicamente incorreto em tempos tão estranhos, como também pela forma cada vez mais lapidada com que conseguia abordar temas centrais complicados como envelhecimento e morte (que sempre pairaram sobre as outras temáticas que eram amizade e sucesso/fracasso - atrelado a não ter problemas financeiros). Pode se dizer que este foi o melhor papel de Michael Douglas desde que fez Minha vida com Liberace (2013) em que encarnava o próprio, ali, ao se aproximar dos temidos setenta anos, o ator percebeu que estava na hora de brincar com a imagem de sedutor que quase sempre lhe coube nas telas. Na pele de Sandy Kominsky é fácil perceber que é uma versão de Michael num universo paralelo, em que foi celebrado por seu trabalho no teatro, mas nunca decolou na carreira diante da câmeras. Se o sucesso não veio para Sandy, a mulherada foi um aspecto marcante de sua vida, especialmente o casamento com a doutora Roz (Kathleen Turner), com quem teve uma filha, Mindy (Sarah Baker) que está prestes a se casar com um homem mais velho (Paul Reiser). O interessante é que em suas três temporadas (as duas primeiras com oito episódios e a última com seis), o programa sobre expandir seus universo, inserindo novos personagens que recebiam o devido destaque não deixando toda a responsabilidade sobre os ombros da dupla protagonista. Mais interessante ainda é como o programa lida de forma bem humorada com aspectos relacionados à idade avançada, o corpo que não funciona como antes, as doenças que começam a aparecer, a busca por novos romances quando o viagra começa a ser mais usado do que você gostaria, a busca pelo reconhecimento e o arrependimento do que poderia ter feito diferente, mas tudo desviando da pieguice de forma surpreendente. Fora isso, a série ainda contou com participações mais do que especiais de atores veteranos (Morgan Freeman, Allison Janney, Jan Seymour, Nancy Travis...) e outros que andavam esquecidos (como Haley Joel Osment provando de vez seu talento cômico bem distante do menininho de O Sexto Sentido/1999). No entanto, o melhor de tudo desta última temporada foi colocar Kathleen Turner em destaque! A atriz que atuou ao lado de Douglas em sucessos como Tudo por uma Esmeralda (1984), A Joia do Nilo (1985) e A Guerra dos Roses (1989) pode não ser mais a beldade de Corpos Ardentes (1981), mas comprova que merecia ser mais lembrada pelos produtores que não a escalam para papéis no cinema. Sua química com Michael Douglas está intacta e ajuda a deixar a tristeza um pouco de lado com a ausência de Norman (Alan Arkin) na temporada. Claro que no desfecho Kominsky merecia ter o seu momento e a série o constrói de forma redondinha quando vista em perspectiva com as temporadas anteriores. Com o cinema olhando cada vez menos para os seus veteranos, Michael Douglas (que sempre foi um produtor esperto) já tem outras produções em vista para a telinha, será Ronald Regan na minissérie Regan & Gorbatchev e também aparecerá em E se..., a aguardada série da Marvel em que viverá novamente o cientista Hank Pym na brincadeira com os caminhos do universo cinematográfico da editora. Aos 78 anos, a aposentadoria de Michael Douglas parece cada vez mais distante.

O Método Kominsky (The Kominsky Method / EUA / 2018-2021) de Chuck Lorre com Michael Doulgas, Alan Arkin, Sarah Baker, Paul Raiser, Kathleen Turner,  Nancy Travis, Jane Seymour, Nancy Travis, Elisa Edelstein e Haley Joel Osment. ☻☻

PL►Y: O Discípulo

Modak: perseguindo um sonho que vive fugindo. 

Apesar da assinatura ilustre de Alfonso Cuarón na produção e dos prêmios conquistados no Festival de Veneza (mehor roteiro, prêmio da crítica e o Golden Osella), o filme O Discípulo é um longa tão discreto que passa até despercebido no catálogo da Netflix. O filme é tão discreto que até destoa do colorido e do ritmo que costumamos ver nas produções indianas. Falado totalmente em Marathi e dirigido por Chaitanya Tamhane, o filme conta a história de Sharad (Aditya Modak), um rapaz que dedica-se desde pequeno a se tornar um cantor de música clássica indiana. No entanto, apesar de toda dedicação ao treinamento, ele começa a perceber que talvez lhe falte os dotes vocais necessários para alcançar o patamar de seu mestre (Aru Dravid) - a quem serve com devoção absoluta. No entanto, o filme opta a não verbalizar as limitações do protagonista num massacre constante, mas deixar que a plateia perceba as dificuldades dele para se equiparar aos grandes cantores da modalidade em seu país. Basta ficar atento aos tropeços quando ele solta a voz, nas correções e comentários que surgem aqui e ali quando ele se apresenta. No entanto, Sharad é obstinado e acredita que um dia ele terá seu talento plenamente lapidado e reconhecido, até que um  certo cansaço comece a cair sobre seus ombros. O Discípulo é um filme que prima pela forma sutil com que aborda a perseguição de algo que se quer tanto, mas que por vezes devemos reconhecer ser algo impossível, o que contraria muito aquele velho mandamento cinematográfico de "lutar pelos sonhos que é querer, poder e conseguir até  final feliz". Em certo momento Sharad percebe que talvez não consiga a perfeição vocal que deseja, mas o que deve ser feito diante disso? Persistir? Desistir? Revoltar-se? Cabe a ele, e somente a ele, perceber o momento em que atinge seu limite na convivência com algo que lhe é tão caro e, ao mesmo tempo, cada vez mais distante. O ritmo do filme deve atrapalhar a apreciação de grande parte da plateia, mas quem perceber como o drama e o humor se misturam ao longo da narrativa não irá se arrepender. O filme (que também foi indicação ao Independent Spirit de melhor filme internacional) não esquece de mostrar como aquele canto tão cultuado e apreciado quase como uma experiência religiosa, esconda tantas histórias pouco nobres e tenha que conviver com o apelo da música pop e  os programas de televisão que buscam novos talentos. É fácil simpatizar com Sharad e torcer por ele (o que atrapalha são aquelas longas tomadas com narrativa em off dele passeando pela cidade), mas apesar do constante flerte com a derrota ao longo da história, a última cena deixa aquela sensação de esperança de que outros talentos também são importantes e outros podem ser encontrados onde menos se espera. 

O Discípulo (The Disciple/India - 2020) de Chaitanya Tamhane com Aditya Modak, Arun Dravid, Sumitra Bhave e Kristy Banerjee. 
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