sexta-feira, 22 de setembro de 2023

#FDS Novos Clássicos BR: Central do Brasil

 
Josué e Dora: coração apertadinho. 

Acho que meu sobrinho tinha três anos quando ele acordou no meio da tarde e a TV estava ligada enquanto eu assistia Central do Brasil. Ele abriu os olhos. Sentou na cama e ficou observando a tela por alguns minutos até que minha irmã o chamou para alguma coisa e ele me perguntou o que ia acontecer com o menino. Se o filme de Walter Salles já era um dos meus filmes brasileiros favoritos de todos os tempos, depois de ver os olhinhos preocupados do meu sobrinho, eu tive a certeza do alcance inacreditável que o filme tem perante o público. Afinal, desde que conhecemos Josué (o então estreante Vinicius Oliveira) e mais ainda quando descobrimos o destino de sua mãe, a pergunta que se instaura em nossa mente é exatamente essa: o que vai acontecer com o menino? Pequeno. Indefeso. Sem pai. Desamparado na cidade na cidade purgatório da beleza e do caos, como diria Fernanda Abreu sobre o Rio de Janeiro. Mas no meio do caminho tem outra Fernanda, a Montenegro. Um verdadeiro patrimônio da cultura nacional interpretando Dora. Uma professora aposentada cuja aposentadoria mal dá para pagar as contas. Faz tempo que ela complementa a renda escrevendo cartas para quem não sabe escrever em meio à multidão da Central do Brasil. Uma dessas pessoas é a mãe de Josué, em busca de notícia de seu marido que ficou de vez no nordeste. Vale dizer que Dora está longe de ser uma heroína, pelo contrário, ela não sente culpa de decidir quais as cartas merecem ser postadas ou não, fazendo com que ela ganhe alguns trocados a mais economizando no envio e sepultando de vez a esperança de algumas pessoas. Eis que o destino irá colocar Josué sob seus cuidados - mas ela não acha uma má ideia vendê-lo para uma gente soturna que diz procurar crianças para serem adotadas por estrangeiros. Sorte de Josué que sua cuidadora acidental tem uma amiga do porte de Irene (a maravilhosa Marília Pêra) para fazer com que ela perceba que toda aquela história pode ser uma balela para tráfico de órgãos. Depois de tantas desventuras no Rio de Janeiro, Dora e Josué irão partir em busca do pai dele no nordeste e o filme ganha contornos de um road movie enquanto estreita os laços entre os dois personagens. Ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim, Central do Brasil é um daqueles filmes a que se assiste com o coração apertadinho e que o final deixa um nó na garganta. Atrevo dizer que esta é a maior atuação de Fernanda Montenegro. Ela está plena na pele de Dora em sua jornada pela redescoberta de uma humanidade que ela parecia ter perdido em nome da sobrevivência. A cena final da personagem é belíssima e maximizada ainda mais pela participação de Vinicius Oliveira em uma das despedidas mais emocionantes da história do cinema. Vinicius se tornou um desses nomes prodígios que aparecem de vez em quando no cinema. A intensidade que empresta à Josué é comovente, pena que depois deste filme ele atuou pouco e passou a se dedicar mais aos trabalhos atrás das câmeras. Central do Brasil é a soma de vários talentos superlativos, do roteiro perfeito, da direção precisa, da trilha sonora irretocável, da fotografia memorável, dos atores em plena sintonia, uma prova irrefutável contra aquele discurso xexelento de que o Brasil não faz filme de qualidade. Não por acaso o longa conquistou mais de quarenta prêmios ao redor do mundo, incluindo ainda o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro. Poderia ter sido ainda melhor se o Oscar tivesse sido justo e laureado a produção com o Oscar de Filme Estrangeiro. Sobre a transcedental indicação ao Oscar de melhor atriz para Fernanda eu imagino que a vitória era mais complicada, mas perder para Gwyneth Paltrow foi inexplicável (a Fernanda mesmo admitiu que aceitaria melhor ter perdido para Cate Blanchett que estava soberba em Elizabeth). Acho que o Oscar de 1999 foi um dos mais estranhos da História, sorte que Central do Brasil não precisa dele para ser celebrado ao longo do tempo como um verdadeiro clássico da sétima arte. 

Central do Brasil (Brasil/1998) de Walter Salles com Fernanda Montenegro, Vinicius Oliveira, Marília Pêra, Othon Bastos, Soia Lira, Socorro Nobre, Otávio Augusto, Stela Freitas, Matheus Nachtergaele e Caio Junqueira. 

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