quinta-feira, 26 de março de 2020

PL►Y: O Poço

Ivan e Zorion: presos na hierarquia da fome. 

Com os cinemas fechados durante a pandemia, era evidente que a atenção se voltaria para os filmes lançados em streaming e em poucos dias o espanhol O Poço se tornou o hit do momento. Alçado a filme mais visto da semana por conta dos vários comentários em redes sociais, a produção é uma grata surpresa por vários fatores. A primeira é que endossa como a Netflix diversificou o acesso do espectador a produções de vários países e, por conta disso, começamos a nos familiarizar com estéticas diferentes das grandes produções americanas. A segunda é um fruto também deste acesso a produções com diferentes pontos de vista na construção de uma narrativa. Embora ensaie uma explicaçãozinha aqui e outra ali, O Poço está bem longe de criar uma estética realista, pelo contrário, em sua parte final as conotações surreais são as que ganham mais força. O filme parece abordar um experimento social, uma espécie de  plataforma onde diversas pessoas habitam andares diferentes. Uma vez por dia, uma mesa desce a partir do andar mais alto com um verdadeiro banquete, no entanto, as pessoas que estão nos andares de baixo estão sujeitas a comerem o que as pessoas dos andares de cima deixarem para elas. Ou seja, quanto mais os primeiros andares com comerem, menos as pessoas dos andares debaixo terão para comer. São mais de duzentos andares. Vale destacar que as pessoas podem mudar de andares de uma hora para outra, passarem de um onde recebia comida para outro em que apenas restam copos e talheres vazios. Diante da fome, do desespero e um bocado de loucura tudo pode acontecer . Dirigido pelo estreante  Galder Gaztelu-Urrutia, o filme é bastante eficiente nas alegorias que utiliza - e estas caíram como uma luva na histeria coletiva que se espalhou pelo país, especialmente com relação às compras exageradas que comprometem a vida do outro que chegou depois (eu, por exemplo, faço parte do time que não consegue comprar álcool em gel e tenho somente meio frasco em minha cozinha, assim como tenho que dar conta de uma senhora de 78 anos que não consegue achar insulina com a mesma facilidade de antes). Com estética econômica e bem cuidada, trilha sonora que remete ao que Kronos Quartet fez para (o pesadelo) Réquiem para um Sonho (2000) e um punhado de cenas desagradáveis, o filme é separado em três atos. O primeiro talvez seja o mais bem resolvido ao apresentar aquele universo para o espectador através dos olhos de um novato (Ivan Massagué) diante da naturalização do horror pelo veterano (Zorion Eguileor) que considera tudo óbvio. No ato seguinte o filme recebe o acréscimo de uma atriz que fiquei muito feliz em rever, na pele de alguém que entende aquele mecanismo de outra forma,  a excepcional Antonia San Juan (a Agrado de Tudo Sobre Minha Mãe/1999) apresenta um ponto de vista diferente naquele universo. O terceiro ato foi o que considerei o mais cansativo, embora seja bastante enfático sobre como "uma causa" pode se diluir bastante em posturas que estão longe de serem as corretas e se mostra, por vezes, contraditórias na posturas de quem as defende. Suas ideias podem ser nobres, mas sua postura, nem tanto...  Não faltou gente ressaltando que o filme é uma grande metáfora ao capitalismo e suas classes sociais, na verdade o filme é bem mais do que isso. É sobre pessoas presas em seu egoísmo e a gigantesca dificuldade de criar empatia pelo outro. Obviamente que dentro de um sistema em que estes problemas encontram espaço para se propagar a coisa piora consideravelmente, no entanto, será que as pessoas querem realmente mudar a estrutura a que estão presos? Com esta pergunta O Poço mostra que o fundo está logo ali e, quando chegar nele, sempre se pode cavar mais um pouquinho.

O Poço (El Hoyo / Espanha - 2019) de Galder Gaztelu-Urrutia com Ivan Massagué, Sorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale e Mario Pardo. ☻☻☻ 

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