Existem tantos fatores que fazem de Ainda Estou Aqui um marco cinematográfico que vou começar do início, quando o filme começou a ser pensado por Walter Salles. O filme é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015, a obra foi dedicada à sua mãe, Eunice. A base da trama é o dia em que o pai de Marcelo foi levado para um depoimento e nunca mais voltou. Era o início dos anos 1970 e quem leu o livro mais famoso de Paiva (Feliz Ano Velho, que também virou filme pelas mãos de Roberto Gervitz e merece ser redescoberto) já conhecia pedacinho dessa história. O interesse de Salles não surgiu por acaso, já que foi amigo da família e percebeu ali a oportunidade de contar uma história importante de forma bastante pessoal (não por acaso, soa como uma máquina do tempo amparada pela ótima reconstituição de época). O filme marca o reencontro de Walter com Fernanda Torres, com quem trabalhou em Terra Estrangeira (1996) e O Primeiro Dia (1999) além de contar com uma participação mais do que especial de Fernanda Montenegro, a diva master brasileira que foi indicada ao Oscar de Melhor atriz por sua performance em Central do Brasil (1998), também de Walter e indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, mas... o resto da história todo mundo lembra (até a Glenn Close). Uma mistura dessas rendeu um longa que foi selecionado para o Festival de Veneza e, após ser aplaudido de pé por dez minutos, foi ganhou o prêmio de melhor roteiro. Ali, Ainda Estou Aqui nasceu para o mundo e desde então segue elogiado em festivais, além de ser o candidato brasileiro à uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional. Com campanha competente da Sony Classics (e quem é antenado sabe o quanto isso é importante para o apelo de um filme junto ao público e votantes) o filme deve quebrar o jejum de vinte e cinco anos em que o Brasil não entra na disputa. Ajuda muito a torcida de um público que fez o longa um campeão de bilheteria desde a sua estreia nas salas de cinema por aqui. Faz tempo que um filme brasileiro não é tão celebrado - e se levarmos em conta a polaridade política que se instaurou por aqui nos últimos anos o feito se torna ainda mais impressionante. Afinal, o período em que o filme se passa é da Ditadura Militar, aquele período sombrio que para um grupo específico de pessoas não foi ruim. Não foi para quem? Para Eunice Paiva foi um período terrível, já que o marido foi levado de casa e por décadas ela e os quatro filhos não tiveram mais notícias dele. Sua angústia era vivenciada enquanto precisava dar conta das despesas da casa, da criação dos filhos, da vida que seguia com os olhos à espreita de um carro estranho estacionado sempre à frente de sua casa. Fernanda Torres está magnífica na pele de Eunice, ela encarna a mãe, a esposa, a mulher que se viu num turbilhão de incertezas e que prosseguir. Todos estes sentimentos complicados são internalizados e expostos de forma verdadeiramente emocionante durante o filme. O premiado roteiro, pega a história de nosso país e a conta através da história de uma família que subitamente foi transformada para sempre sem que entendessem o motivo. A trama se desenvolve com base nas vivências de Eunice, do dia em que teve que conviver com desconhecidos debaixo de seu teto a vez em que foi levada para depor encapuzada junto com sua filha de dezesseis anos e só voltou dias depois para casa, aquele momento em que percebe que o marido não vai mais voltar e terá que lidar com a dor em silêncio para preservar os filhos do horror que pairava sobre eles. Não por acaso o filme começa solar, alegre, com trilha sonora perfeita e aos poucos a atmosfera pesa. Se torna sombria, opressora, claustrofóbica. Incerta. Walter Salles trabalha essas camadas e tonalidades com maestria e envolve o espectador na história de uma família liderada por uma mulher que se nega a cair no abismo. Chega então aquela cena final em que a memória de quem passou por tudo isso não deve ser apagada, mas preservada pelas gerações futuras para evitar que algo tão sombrio se repita. Não satisfeito, Salles ainda termina com aqueles créditos com a casa vazia, triste, tão fantasmagórica como belamente filmada. Muito se fala se o filme trará um Oscar para o Brasil, eu adoraria que isso acontecesse, mas acho que o filme ainda fala mais alto para nós que vimos o país se tornar um território estranho nos últimos tempos. Ao menos na sala de cinema, banhado no silêncio respeitoso, nos sons de choros aqui e ali, tive a impressão que as pessoas entenderam a importância do filme como o acontecimento cultural que a gente precisava. Não sei se Fernanda Torres será indicada ao Oscar de atriz, só sei que ela merece (e muito), assim como o filme merece ser visto e lembrado.
Ainda Estou Aqui (Brasil-2024) de Walter Salles com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Valentina Herzage, Maeve Jinkins, Dan Stulbach, Humberto Carrão, Charles Fricks, Antonio Saboia, Olívia Torres e Marjorie Estiano. ☻☻☻☻☻
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