Vincent e Agathe: cumplicidade incomum. |
Depois de dividir opiniões em sua exibição no Festival de Cannes no ano passado, o filme Titane de Julia Ducournau surpreendeu todo mundo (inclusive a diretora) ao ser o grande premiado com a Palma de Ouro de 2021. Parece que a forma radical como a história é contada fez a diferença frente ao júri, que percebeu mais méritos do que defeitos na estilizada trama imaginada pela diretora (que também assina o roteiro). Nada no filme é convencional e de fácil interpretação, vale lembrar que em seu filme de estreia, o anterior Grave/2016 (ou Raw que esteve em cartaz na Netflix por aqui), já deixava claro que apesar de todo o domínio estético de Julia durante a jornada de descoberta (pouco agradável) de sua protagonista, ela não estava nem um pouco interessada em ficar dentro da caixinha. Em Titane (disponível na MUBI) ela radicaliza ainda mais o seu estilo, reafirmando seu gosto pelo horror físico e o interesse por inserir várias camadas em uma trama que os apressados dirão que não tem pé nem cabeça. Ledo engano. Quando o filme começa, conhecemos a protagonista, Alexia, ainda menina sobrevivendo a um acidente de carro. Como consequência ela termina sofrendo uma cirurgia em que uma placa de titânio é inserida em seu crânio e lhe confere uma cicatriz perto da orelha. Ao sair do hospital, o silêncio perante pai e mãe diz mais do que você imagina, assim como ela reencontra o carro do acidente - e o acaricia e beija como se encontrasse um velho amigo. Vários anos passam e Alexia (vivida com notável desenvoltura por Agathe Rousselle) se torna uma dançarina dedicada à exposição de automóveis, mas não demora para percebermos que além do interesse incomum (e põe incomum nisso) por automóveis, ela também possui um lado bastante sombrio. Não vale contar muito sobre esta parte, mas apesar do roteiro não gastar tempo explicando a postura da personagem, esta parte é importante para justificar a segunda metade da trama, que dá corpo ao que considero a melhor parte da história. Acho que vale dizer que ela assume uma outra identidade e se depara com Vincent (o excelente Vincent Lindon), um bombeiro experiente que procura seu filho perdido há muito tempo. O filme passa a se sustentar na relação entre estes dois personagens, onde um esconde alguma coisa do outro enquanto e o filme cresce ao explorar questões sobre família, afinidade, luto, gênero, aceitação, redenção e muitos outros pontos nunca de forma convencional. A tensão cresce junto com a emoção de forma hipnótica, enquanto, paralelo a isso, algo estranho acontece com o corpo de Alexia, comprometendo sua nova identidade e o amparo que parece ter encontrado. O filme tem algumas cenas difíceis de assistir, mas também possui momentos em que uma lágrima inesperada pode surgir e mostrar ao espectador que por trás de tanto estranhamento, perante esta fábula surreal cinematográfica do século XXI, pode se esconder uma interessante alegoria sobre o que nos constitui humanos. Ducournau revela um cinema que bebe diretamente na fonte dos clássicos ousados de David Cronenberg (especialmente Crash - Estranhos Prazeres/1996 que foi exibido em Cannes e premiado por sua audácia), mas o mistura com temáticas atuais e uma carga emocional impressionante (tanto que após a última cena, o filme continua em nossa imaginação).
Titane (França/Bélgica - 2021) de Julia Docournau com Agathe Rousselle, Vincent Lindon, Garance Marillier, Mara Cissé, Bertrand Bonello, Celine Carrère e Dominique Frot. ☻☻☻☻
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