Sonia: atuação magistral aclamada em Cannes.
O ano que termina foi um ano estranho para o Brasil. Não apenas por impeachment, passeatas, lava-jatos, delações premiadas, PECs e todo o resto que sabemos muito bem. Também foi um ano estranho por discursos de boicote a artistas, filmes e livros que tivessem identificação com uma ou outra ideologia (temperado com discursos bastante equivocados sobre a Lei Rouanet). Uma postura esquisita que não combina com um país que diz prezar por sua democracia forjada a sangue e lágrimas, no entanto, na prática, o boicote serve apenas para que a visão de mundo de um cidadão só fique ainda mais limitada às certezas tão efêmeras. Tenho amigos de partidos diversos, sexualidades diferentes, cores e credos bastante variados e nenhum deles são ameaças, pelo contrário, me ajudam a ter uma visão mais diversificada do mundo, menos unilateral e muito mais interessante. Mas vá dizer isso para quem aprendeu com as redes sociais a bloquear ou desfazer amizade como a forma mais adulta de lidar com as diferenças... ou seja, "boicotes" só prejudicam a quem o faz, já que o outro, ou a obra, permanece existindo e dialogando com quem interage com eles, seja para gostar ou não. No isolamento de ideias, quem perde é quem se isola. No meio de todo esse racha que se diz ser entre a direita e a esquerda no Brasil (e tudo que se agrega a um lado ou outro), a equipe do filme Aquarius aterrizou no Festival de Cannes com folhas impressas que indicavam que havia um golpe político eminente no Brasil. Foi o suficiente para ganharem fama mundial e o ódio de quem era a favor do impeachment de Dilma Roussef no Brasil. O ato não feria o regime democrático, mas incomodou quem tem a dificuldade em aceitar a opinião dos outros, ainda mais artistas - já que para muita gente, Cinema ainda é mero entretenimento antes de comer uma pizza com os amigos. Os discursos de ódio cercou o filme, na mesma medida que o outro lado o exaltava pelo posicionamento político de seu diretor e elenco. Quando o filme estreou no Brasil a briga continuou e cabia ao filme aproveitar o marketing de tanta polêmica, até colocou em seu cartaz a fala do crítico que estabeleceu que pessoas de bem não devem assistir Aquarius. Sério? Com censura de 18 anos (por conta de uma cena de orgia, duas cenas de sexo e o despudor de mostrar genitais masculinos em cena) e não sendo o escolhido para concorrer a uma vaga no Oscar, a trajetória de Aquarius foi cercada de polêmicas que fizeram que uma parte da população o abraçasse na mesma proporção que a outra o rejeitava. Arrisco dizer que se não fosse toda a polêmica envolvida a trajetória do filme seria muito semelhante a de O Som ao Redor (2013), já que os dois filmes tem vários pontos em comum ao contar uma história de horror urbano no Recife contemporâneo.
Irandhir e Sonia: o par romântico do filme?
Aquarius também começa com fotografias sobre a transição do tempo e o crescimento da cidade, assim como exala aquela sensação de insegurança ao contar a história de Clara (Sônia Braga, em ótimo momento), vive em um edifício onde todos os moradores já aceitaram o acordo com uma grande construtora que pretende construir ali um grande empreendimento imobiliário. Clara não cogita sair do apartamento que viveu por décadas e o filme se concentra em seus conflitos com o jovem engenheiro (Humberto Carrão) que depende de sua saída do prédio e com a filha (Maeve Jenkins) que não consegue entender a atitude da mãe. Clara é irredutível, mas o diretor não quer contar aqui somente a história de uma senhora que não quer sair de sua comidade, ele pretende falar da sobreposição do novo sobre o velho. São nos momentos que tratam sobre isso que surge a alma de Aquarius: da cômoda que testemunhou silenciosa as histórias daquela família, dos LPs que abrigam as memórias da personagem, da entrevistadora que parece não fazer a mínima ideia do que Clara está falando... O prédio Aquarius é para a protagonista um templo de memórias e as emoções que evocam. Precisa ter coragem para contemplar o "velho", o "antigo" o histórico em tempos onde tudo soa tão descartável, da música às relações pessoais - é por conta disso que o filme recebeu elogios no exterior, já que se trata de um sentimento universal do século XXI. Clara é de fato uma rocha de resistência, sobreviveu a um câncer devastador (dos quais carrega a marca até hoje e cuja a vasta cabeleira da personagem é uma celebração à vitória), superou a morte dos parentes queridos, à saída dos filhos que foram seguir seus próprios caminhos... restou-lhe o apartamento e todas as lembranças que abriga. Julgar se ela está certa ou errada é uma questão de ponto de vista (e o filme dá elementos para os dois lados, acredite) e que pode render várias conversas bastante proveitosas, mas além da atuação de Sonia Braga o filme tem outros méritos, Kleber amadureceu bastante na forma como conduz o elenco, que está mais vívido em suas interpretações que no filme anterior. Existem transições brilhantes entre algumas cenas e o uso da trilha sonora é espetacular. No entanto, ele ainda precisa saber enxugar a narrativa, já que após a primeira hora existe pelo menos uns trinta minutos que poderiam ter ficado de fora da montagem final. Mas esse excesso é compreensível, já que Sonia Braga parece enfeitiçar a câmera do diretor, fazendo parecer que um simples gesto ou olhar seja fundamental para que possamos conhecer melhor a sua personagem. Reverente à sua estrela, o cineasta conseguiu criar um filme que rende várias leituras, ainda que a maioria enxergue nele um manifesto esquerdista de resistência, Aquarius é mais sobre a passagem do tempo e suas cicatrizes, lembranças que ficam riscadas como em um vinil esperando para ser tocadas novamente.
Aquarius (Brasil/2016) de Kleber Mendonça Filho com Sonia Braga, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Maeve Jenkins, Zoraide Coleto e Carla Ribas. ☻☻☻☻
Eu não encaro o filme como um manifesto esquerdista como muitos encararam, essa ideia reducionista foi construída devido ao manifesto realizado pelos artistas em Cannes contra o impeachment da presidente Dilma o que gerou um desconforto por aqueles que defenderam o impeachment de modo judicial e não moral, e a forma mais débil de lidar com as diferenças pode ser resumida a própria censura que foi atribuída ao filme, que pode ser comprovada se levarmos em consideração que filmes mais pesados como Boi Neon não receberam um grau de censura tão elevado. O filme é muito bem protagonizado por Sônia Braga que interpreta uma viúva petrifica como uma rocha por ter vencido um câncer devastador, e que vai percebendo que seus filhos vão construindo suas próprias vidas distante do lar que ela faz questão de resguardar, mesmo com o assédio de um grupo de empresários que vislumbram o local como uma ótima área para um grande empreendimento, a viúva leva ao fim e ao cabo a ideia de não vender o apartamento que lhe traz boas recordações, relutando assim por um modo de viver, em objeção a própria sociedade contemporânea do "descarte", o filme leva à baila algumas questões políticas que não devem ser interpretadas como partidárias, já que todo país se constrói politicamente.
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