Imagine você ser fã da obra de uma famosa escritora e resolve criar uma história sobre ela, de forma que ela se torne uma personagem de sua ficção (algo muito parecido com o que vimos em As Horas/2002). Esta é a ideia de Shirley, longa dirigido por Josephine Decker que é uma criação em torno da prestigiada escritora Shirley Jackson, que em suas obras de terror e suspense em meados do século XX chamava atenção pela abordagem psicológica de seus personagens. Leitura obrigatória em várias escolas dos Estados Unidos, a autora de A Maldição da Residência Hill (lançado originalmente em 1959), realmente brinca com nosso imaginário, mas sua vida pessoal pode surpreender ao saber que tinha uma vida aparentemente tranquila ao lado de esposo e quatro crianças na tranquilidade de Vermont. Portanto, é preciso deixar claro que o que vemos em Shirley é uma versão idealizada da escritora, que serve para que a trama (baseada no livo de Susan Scarf Merell) siga seus objetivos. Aqui vemos uma versão da escritora antes de tornar-se uma referência no gênero, mas que já chamava atenção dos leitores de suas história publicadas em jornais e revistas. O filme busca retratar o olhar de estranhamento que uma mulher ao escrever histórias macabras poderia despertar na pequena cidade em que vivia com o esposo. Aqui a história se fundamenta em torno de seu segundo livro, O Homem da Forca (lançado em 1951) e que foi inspirado pelo desaparecimento de uma jovem universitária. Elisabeth Moss é a responsável por dar vida à esta versão da escritora, que se utiliza da presença de um jovem casal em sua casa para criar uma de suas obras mais impressionantes. Shirley é casada com o professor universitário Stanley Hyman (Michael Stuhlbarg) que convida um jovem professor recém chegado, Fred Nemser (Logan Lerman) para se hospedar em sua casa (e de fato a casa do casal era constantemente cheia de amigos e escritores, embora não seja da forma soturna como o filme apresenta). Fred é casado com Rose (Odessa Young) que logo é convidada a se tornar uma espécie de cuidadora da anfitriã e da casa. Existe uma tensão entre os dois casais que oscila bastante no decorrer da narrativa. Existe uma rivalidade masculina que se instaura, enquanto as duas mulheres começam a desenvolver uma cumplicidade que motiva o processo criativo da escritora ao ponto que Rose se torna uma espécie de musa inspiradora para que a obra de Shirley ganhe forma e sua personagem principal ganhe vida. A diretora Josephine Decker constrói uma narrativa que mescla bastante o real e o imaginário e que, aos poucos, modifica suas personagens femininas mesmo que, por vezes, coloque-as à beira de um abismo (literalmente) muito por conta da situação da mulher na sociedade (a necessidade da obra de Shirley ser legitimada pelo esposo, o fato dos comentários tecidos sobre ela ter mais credibilidade do que seu talento, a ideia da mulher viver para os afazeres domésticos, as relações de poder e gênero...) tecendo uma verdadeira rede de elementos da época habitada pela escritora. Incômodo e enigmático, Shirley é um filme realmente instigante, beneficiado ainda mais pelo bom trabalho de suas atrizes principais emoldurado por uma magnífica trilha sonora.
Shirley (EUA-2020) de Josephine Decker com Elisabeth Moss, Odessa Young, Michael Stuhlbarg, Logan Lerman e Victoria Pedretti. ☻☻☻☻
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