domingo, 15 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: Perto de Você

Elliot: reencontros complicados.  

Sam (Elliot Page) é um homem trans. Faz quatro anos que ele não visita a família e está disposto a revê-la na comemoração de aniversário do pai. Ele sabe que o reencontro após todo o processo de transição será complicado, ao mesmo tempo, já vivenciou situações entre os familiares que lhe geraram desconforto. Durante a viagem ele reencontra Katherine (Hillary Baack), um amor do passado e que o faz reviver sensações para as quais não havia se preparado. Ela está casada e aparentemente bem resolvida, mas também vive um turbilhão de emoções ao rever Sam em sua nova vida. É este reencontro que proporciona algum fato surpresa ao filme, já que os momentos em que Sam está na casa da família, tornam o filme bastante previsível com os momentos episódicos do protagonista junto aos membros da família. Os diálogos isolados seguem exatamente o que as primeiras cenas do personagem sugerem: todos dizem compreender e aceitar toda a transformação pela qual atravessou, mas em vários momentos as conversas lhe cortam feito uma navalha. Seja com a mãe (Wendy Crewson) que chora por ainda ver em Sam a sua menina ou a conversa árdua com outros homens da família. A exceção é a conversa com o pai (Peter Outerbridge) que narra a complicada depressão pela qual o filho atravessava antes de ter coragem para enfrentar as mudanças que precisava. Dirigido por Dominic Savage e escrito por ele ao lado do próprio Elliot Page, o filme investe em uma atmosfera triste, com locações gélidas e fotografia quase sem cor. A estética somada aos rumos da narrativa podem causar um pouco de cansaço no espectador ao acompanhar os martírios de Sam e, assim como o personagem, o público não vê a hora de que aquele tormento acabe. Em determinados momentos a ideia me parece o reencontro de É Apenas o Fim do Mundo/2016, peça de Jean Luc-Lagarce que virou filme pelas lentes de Xavier Dolan, mas sem o punch sufocante. O filme recebeu atenção na estreia no Festival de Toronto em 2023 por ser o primeiro filme de Elliot Page após o seu processo de redesignação sexual, mas não teve muito fôlego para ir além do lugar comum sobre os conflitos familiares em torno desta situação. Ainda espero o dia em que Elliot voltará a viver personagens mais versáteis na telona, acho louvável que sua militância dentro e fora da tela, mas adoraria vê-lo em filme mais diferenciados, assim como era no início de sua carreira. Espero que lembrem do que ele é capaz para além de sua identidade sexual e de gênero.  

Perto de Você (Close to You / Canadá - Irlanda - Reino Unido - EUA / 2023) de Dominic Savage com Elliot Page, Hillaey Baack, Wendy Crewson, Peter Outerbridge, Janet Porter, Alex Paxton-Beesley, Daniel Maslany, Andrew Bushell, David Reale e Jim Watson.  

sábado, 14 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: O Melhor Amigo

Teixeira e Fuentes: resolvendo uma atração do passado. 

Em 2013 o cearense Allan Deberton lançou o curta O Melhor Amigo e ganhou alguma projeção em festivais e principalmente no Youtube com seu humor queer. Depois de realizar outro curta, um filme para televisão e Pacarrete (2019), um longa elogiado pelo público e pela crítica, Deberton resolveu ampliar as ideias de seu curta celebrado e investir em uma comédia romântica rasgada. Embora a história guarde semelhanças, especialmente o colorido e  o elenco (antes formado por Jesuíta Barbosa e Victor Sousa) agora conta com protagonistas menos conhecidos e várias participações especiais. A trama conta a história de Lucas (Vinicius Teixeira), que nos tempos de faculdade deu um beijo no melhor amigo Felipe (Gabriel Fuentes) e fez com que ele sumisse do mapa. Lucas se formou, foi para a cidade grande, arranjou um namorado dedicado até demais, mas... agora seu relacionamento está em crise. Acontece que Lucas é mais discreto que o parceiro e também nunca superou a história mal resolvida de seu passado. Eis que ele resolve dar um tempo no relacionamento e ir passar férias em Canoa Quebrada e ele reencontra seu crush do passado por lá. Para adaptar um curta pra um longa metragem de hora e meia, Deberton precisa ter mais a oferecer e insere números musicais com músicas conhecidas (Herva Doce, Blitz, Zizi Possi...) e uma apimentada na história, afinal, Lucas terá seus momentos com Felipe, com um casal gay que mantém um relacionamento aberto e até uma recaída com seu namorado apaixonado. Além disso os personagens frequentam um inferninho esperto chamado Sal e Pimenta, que conta com shows de drag queens e até da Gretchen!! O filme também arranja espaço para algo místico para Claudia Ohana ler cartas de tarô e uns beijos e nudez masculina aqui e ali. O resultado é um pouco desgovernado (e desavergonhado), mas consegue divertir com seus personagens perdidos em meio ao desejo e a vontade de viver um romance para a vida toda. Se for visto como uma comédia leve e despretensiosa o filme funciona, principalmente para o público que não exigir muita complexidade dos personagens que estão na tela. Confesso que achei graça de várias cenas com o protagonista comportadinho ainda aprendendo a vivenciar seus desejos sem culpa, mas é uma pena que o filme vá perdendo o pique perto do final e termina de maneira sem graça. Após uma rápida passagem pelo cinema, o filme está em cartaz na GloboPlay. 

O Melhor Amigo (Brasil/2024) de Allan Deberton com Vinicius Teixeira, Gabriel Fuentes, Leo Bahia, Claudia Ohana, Mateus Carrieri, Solange Teixeira, Marta Aurélia e Gretchen. 

sexta-feira, 13 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: Meu Nome é Maria

Dillon e Anamaria: traumática filmagem. 
 
Até pouco tempo Maria Schneider era um grande enigma para mim. Eu nunca entendi muito bem como uma atriz que dividiu os créditos com Marlon Brando em um filme tão falado quanto O Último Tango em Paris (1972) não havia realizado nenhum grande filme depois daquele. Ao longo do tempo li algumas coisas sobre suas história conturbada pelo uso de drogas, descobri que era lésbica e que tentou suicídio. Falecida em 2011, recentemente, com toda a repercussão do movimento #metoo seu nome trouxe de volta aos holofotes o processo de filmagem do clássico de Bernardo Bertolucci e, em uma entrevista vergonhosa, o diretor italiano confirmou que durante a filmagem da polêmica cena da manteiga a então jovem atriz de 19 anos não fazia a mínima ideia do que aconteceria naquele momento. Com isso, antigas entrevistas de Schneider foram resgatadas e muito se comentou sobre a brutalidade naquela filmagem, a situação abusiva que se instaurou para construir aquele "realismo" que de fato era real, já que o que se via em cena não estava no roteiro ou fez parte dos ensaios. Aquele não era o desespero da personagem, mas da própria atriz. A cineasta Jessica Palud trabalhou como assistente de Bertolucci em Os Sonhadores (2003) e ao descobrir os bastidores daquela cena, sentiu-se instigada em abordar a história da atriz. O roteiro foi escrito pela própria diretora, pela jornalista Vanessa Schneider (prima de Maria e autora do livro que inspira o filme) e Laurette Polmanss, o trio conta com muito cuidado um recorte tenso sobre a vida da atriz. Maria (vivida por Anamaria Vartolomei) era filha do ator Daniel Gélin (interpretado por Yvan Attal), mas ela foi criada pela mãe Marie (Marie Gillain). Quando ela se aproxima do pai, cresce seu interesse pelo cinema, mas passa a existir uma tensão no relacionamento com a mãe. Ela é expulsa de casa e investe no trabalho como atriz para conseguir se manter. Após alguns papéis discretos, ela é convidada por Bertolucci (Giuseppe Maggio) para interpretar Jeanne, uma jovem que passa a se encontrar com um desconhecido em um apartamento para momentos tórridos. Maria não entende muito bem o motivo dela ser a escolhida para o projeto, mas aceita o convite motivada por trabalhar com a lenda viva Marlon Brando (interpretado de forma estranhamente convincente por Matt Dillon). Ela não sabia que antes deles vários atores e atrizes desistiram do filme ao considerar o roteiro pornográfico. O que era para ser a grande chance de sua carreira se torna um pesadelo após aquela fatídica cena. Se no filme de 1972 o desconforto já existia, aqui ele é maior ainda, já que a diretora a reproduz de forma bastante crua, fiel ao que aconteceu nas filmagens. Muito se especula que toda aquela situação foi motivada pelo ciúme que Bertolucci sentia de Maria com Brando durante as filmagens. O filme não aprofunda esta teoria, mas demonstra um bom relacionamento entre o casal de atores, o que só amplia o sentimento de traição vivido por Maria daquele momento em diante. O filme apresenta como foi difícil para uma jovem atriz enfrentar toda a repercussão do filme na Europa e os comentários jocosos do público enquanto o ator e o diretor estavam em Hollywood enquanto ela foi abandonada à própria sorte perante todo o escândalo que a tal cena provocou (o que a fazia reviver o trauma a cada entrevista, comentário e encontro com espectadores).  Deve ter sido um processo tão doloroso que fez com que a atriz usasse heroína com cada vez mais frequência, o que atrapalhou a sua carreira e o relacionamento com Noor (Céleste Brunnquell), que recebe destaque na trama em sua convivência com a atriz em momentos difíceis de sua vida. A romena Anamaria Vartolomei defende a personagem com unhas e dentes e apresenta mais um trabalho marcante, tal e qual sua premiada performance em O Acontecimento (2022) e o tom do filme ajuda muito para que a produção funcione. Meu Nome é Maria não faz escândalo, chega a ser bastante discreto em respeito à atriz que recentemente teve uma mudança de olhar da mídia sobre a sua carreira mediante a traumática situação vivida enquanto tentava realizar o seu ofício de atuar. Vale lembrar que apesar de toda controvérsia O Último Tango em Paris foi indicado a dois Oscars: melhor ator (Marlon Brando) e melhor diretor (Bertolucci).  
 
Meu Nome é Maria (Maria / França - 2024) de Jessica Palud com Anamaria Vartolomei, Matt Dillon, Céleste Brunnquell, Giuseppe Maggio, Marie Gillain e Yvan Attal☻☻☻☻ 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: Toda Terça-Feira

Tilda e Del:  conflitos entre seres em transição. 
 
Faz algum tempo que Billie (Tilda Cobham-Hervey) vive com  a mãe (Del Herbert-Jane), no entanto, a mãe está prestes a começar seu processo de redesignação sexual, já que recentemente se percebeu como transexual e começará uma série de tratamentos e acompanhamentos para esta mudança. Com isso, Billie vai morar com pai (Beau Travis Williams) e firma um acordo de encontrar a mãe toda terça-feira. O filme da diretora Sophie Hyde passa então a estruturar sua narrativa ao longo de um ano desses encontros, num total de 52 dias organizados quase episodicamente ao longo de quase duas horas de filme. Embora a mãe, que agora passa a se reconhecer como James, tenha apoio dos outros personagens da trama, o processo de transição não é apresentado de forma didática ou fácil ao espectador, cada mudança física, no tom de voz, efeitos hormonais, cirurgias, uso de próteses convive então com as relações entre os personagens e as descobertas que fazem ao longo do caminho. Poré, estes elementos não fazem com que o foco recaia somente sobre James, mas também sobre Billie, que precisa lidar com os novos parâmetros de convivência com sua mãe e suas próprias descobertas sexuais na adolescência e sua efervescência hormonal de dezesseis anos de idade. A estrutura fragmentada do filme causa algum estranhamento no início, mas conforme a trama e os arcos das personagens avançam, o filme se torna cada vez mais robusto, principalmente por James ter que lidar com alguns efeitos colaterais de seu processo de transição e a descoberta de que o mundo não espera que ela vença seus desafios para que outros apareçam no caminho. Aos poucos o filme se torna um turbilhão de situações. A relação com a filha torna-se cada vez mais complicada, especialmente quando Billie se envolve em um triângulo amoroso com um casal de colegas da escola. Este envolvimento lhe coloca em busca de descobertas, mas também a insere em uma situação perigosa envolvendo registros em vídeo dos encontros entre eles. Estes registros em vídeos ressalta as referências documentais do filme, que apresenta um tom realista do início ao fim, especialmente pela forma como lida com os recortes semanais da vida daqueles personagens. Acontece tanta coisa durante o filme que em determinado momento me surpreendi ao notar que não havia chegado na metade de sua duração! A produção utiliza uma montagem ágil, por vezes crua e um tanto áspera na abordagem daquele ano na vida dos personagens. Alguns dias (que são enumerados) rendem cenas mais longas, outras mais curtas, algumas leves, outras densas, envolvendo o espectador em uma montanha-russa surpreendente de situações.  Em tempos de algo tão equivocado como Emília Perez (2024), Toda Terça-Feira se torna um antídoto com sua abordagem mais humanista e realista sobre a transsexulidade  (e imaginar que o filme foi lançado há mais de dez anos). Muito do mérito do filme fica por conta de Tilda e Del, respectivamente na pele de filha e mãe, ambas compõem retratos contundentes de personagens em transição em momentos distintos de suas vidas e o impacto que uma tem na realidade da outra. A complexidade com que o filme aborda suas temáticas lhe valeu um Urso de Cristal no Festival de Berlim em 2014 e elogios quando foi exibido no Festival Mix Brasil do mesmo ano. Um filme pouco conhecido, mas que merece atenção e está em cartaz no Filmicca.  
 
Toda Terça-Feira (52 Tuesdays - Austrália / 2013) de Sophie Hyde com Tilda Cobham-Hervey, Del Herbert-Jane, Imogen Archer, Sam Althuizem, Beau Travis Williams e Mario Späte. ☻☻☻☻  

quarta-feira, 11 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: A Herança

Diego e Yohan: herança macabra. 

Thomaz (Diego Montez) mora na Alemanha com o namorado Beni (Yohan Levy) e está preocupado como o visto que está prestes a expirar. Fazia tempo que ele não tinha contato com a mãe e retorna ao Brasil para o enterro dela acompanhado de Beni. No retorno, ele conhece duas tias que não tinha contato desde pequeno e os dois se hospedam na casa delas. Embora sejam muito atenciosas, as duas demonstram alguns hábitos estranhos que deixam Beni bastante preocupado, Thomaz nem imagina que sua família possui segredos e antigas tradições que deixam sua herança, digamos... complicada. Por algum motivo sua mãe sempre evitou contato com as familiares e aos poucos o protagonista e o espectador irão descobrir o motivo. A Herança é um filme de terror dirigido por João Cândido Zacharias que possui até boas ideias, mas algumas dificuldades para lidar com elas -  muito por conta de ceder à tentação dos clichês de produções americanas que acabam comprometendo a identidade do filme (e nem me refiro ao excesso de diálogos em inglês). O filme capricha na ambientação da casa com maior vocação para ser mal assombrada, peca por não desenvolver adequadamente os personagens secundários e até mesmo os protagonistas, que leram direitinho a cartilha de personagens ingênuos de filmes de terror. No entanto, cabe aos dois o ponto mais interessante da trama, já que a trama permite uma leitura interessante sobre o fato de Thomaz fugir de seu destino de perpetuar os planos de sua família. O roteiro fica bem próximo de abordar uma questão controversa como "a cura gay", mas se esquiva dela, deixando o texto um tanto vazio neste aspecto. Sexualmente falando, o filme ousa alguns pontos por ter uma cena tórrida entre os dois protagonistas, mas depois revela o horror de uma cena de abuso sexual quando o filme descamba para o trash sem pudores. Filmes de terror são realmente complicados, precisam de muito equilíbrio para não cair no ridículo, ao mesmo tempo podem tropeçar quando consideram que tudo é permitido neste tipo de produção. Quando o filme termina eu fiquei imaginando o diretor assistindo Hereditário (2018) e imaginando como tornar aquele tema macabro girando em torno de um casal gay. A Herança erra seu rumo no meio do caminho, mas provoca alguma curiosidade no espectador para ver o que irá acontecer com aqueles dois moços que aceitam a acolhida de duas senhoras estranhas que lhe oferecem um bolo azul e guardam queijos apodrecido no porão. Ainda assim, fiquei instigado com o que o diretor pode realizar se seguir a mesma linha em seus futuros projetos.

A Herança (Brasil/2024) de João Cândido Zacharias com Diego Montez, Yohan Levy, Analú Prestes, Cristina Pereira, Luiza Kozovski, Ana Carbatti, Jimmy London e Gilda Nomacce. ☻☻ 

terça-feira, 10 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: Misericórdia

Félix e Durand: visitante objeto de desejo e repulsa.  

O diretor Alain Guiraudine ganhou fama mundial com Um Estranho no Lago (2013), o sexto longa metragem de sua carreira. Naquele filme, um homem frequenta um lago afastado da cidade em que um grupo de homens vão para encontros sexuais - e todas as neuroses sobre o parceiro que você pode encontrar são encarnados pela presença de um serial killer entre os frequentadores. Equilibrando erotismo e suspense, o filme caiu nas graças do público LGBTQIAPN+. Não desejando se repetir, ele lançou o horroroso Na Vertical (2016) que não alcançou um terço do apelo do filme anterior. Oito anos depois (o diretor nunca deixou uma pausa tão grande em sua carreira iniciada no ano 2000), o diretor lançou Misericórdia, um filme que mistura comédia, crime e suspense num clima em que o espectador parece ser o maior detetive da trama. O filme acompanha a chegada de Jérémie (Félix Kysyl) que volta ao seu vilarejo natal para o enterro de seu antigo patrão, o padeiro local. Na verdade o falecido era mais do que um patrão e amigo, afinal, ele é mencionado como uma espécie de mentor, com quem Jérémie teve uma ligação muito especial quando era mais jovem. Convidado para ficar hospedado na casa da família enlutada, ele é acolhido pela viúva (Catherine Frot), mas aos poucos desperta cada vez mais ciúme no filho do morto (Jean Baptiste Durand), com quem Jérémie demonstra indícios de ter um envolvimento mais do que amigável no passado. O visitante também aparenta ter grande proximidade com Walter (David Ayala), que evita as investidas do moço. No entanto, se o grande sucesso da carreira do diretor ficou conhecido por tudo que era explícito, em Misericórdia, ele faz graça com o implícito. Em momento algum é dito que Jérémie manteve relações sexuais com quaiquer daqueles personagens no passado, mas existem tantas insinuações sobre a vida sexual do rapaz que a plateia imagina que quem se envolveu (ou não) com ele, nutriu algum rancor por conta disso. Esse caldeirão de tensões emocionais/sexuais começa a ferver ainda mais quando um personagem desaparece e Jérémie precisa se virar para demonstrar inocência, sendo capaz até mesmo de fazer um acordo inusitado com um outro personagem que começa a demonstrar interesse por ele e está disposto até a lhe fornecer um álibi perante a polícia. O filme surpreende pela capacidade com que deixa as entrelinhas para a plateia preencher e faz graça ao mesmo tempo em que amplia o seu emaranhado de sentimentos contraditórios entre os personagens e, talvez, o mais contraditório de todos seja o próprio protagonista que não consegue sair daquele lugar que já abandonou (sabiamente) no passado. Trata-se de uma comédia de humor bastante singular e até incômodo, mas que não deixa de ser original pela forma com que trabalha o tempo inteiro com o poder da sugestão, ou seria da provocação? O filme está atualmente disponível no Filmicca.  

Misericórdia  (Miséricorde / França - Espanha - Portugal / 2024) de Alain Guiraudie com Félix Kysyl, Catherine Frot, Jean-Baptiste Durand, Jacques Develay, David Ayala e Serge Richard. ☻☻☻☻ 

domingo, 8 de junho de 2025

CICLO DIVERSIDADESXL: Maré Alta

Pigossi: sujeito de coragem.  

Confesso que admiro muito a coragem do ator Marco Pigossi. Ele tinha tudo para ser um dos grandes galãs de sua geração e fazer um trabalho depois do outro na televisão, mas optou por se arriscar. Assumiu ser homossexual no final de 2021 e tornou público seu relacionamento com o cineasta italiano Marco Calvani. O ator já havia se aventurado por produções estrangeiras e aproveitava o sucesso da série Cidade Invisível na Netflix ao redor do mundo. Recentemente, o ator então se aventurou por uma produção dos Estados Unidos dirigida por seu parceiro e colheu elogios da crítica. Pigossi não poderia ser mais fiel à sua nova fase em seu projeto cinematográfico, ele vive Lourenço, um rapaz do interior de São Paulo que mentiu para a família dizendo que iria estudar nos Estados Unidos (em Harvard, é claro), mas na verdade foi viver com um gringo que sumiu sem dar maiores informações. O rapaz passou a ganhar a vida limpando casas de veraneio enquanto espera seu namorado desaparecido mandar notícias enquanto seu visto não expira. De início Lourenço não sabe muito bem o que fazer e em alguns momentos, ganha até contornos sombrios ao nadar em uma praia que é conhecida pela presença de tubarões e praticar sexo sem preservativos. O roteiro do próprio Marco Calvani insere um personagem em um universo atual em que frases do Grindr são usadas em conversas, em que o uso de Prep se tornou indispensável e também em que o desconforto de estar vulnerável em uma relação amorosa pode deixar tudo a perder. Este último ponto refere-se ao seu relacionamento inesperado com o enfermeiro Maurice (James Bland), que está prestes a ir para Angola após passar a vida imaginando não pertencer ao país em que nasceu. Esta sensação de inadequação também é latente no protagonista que mesmo perdido em uma terra estrangeira, não demonstra vontade de voltar para casa e fingir ser alguém em uma vida que não lhe pertence junto à mãe religiosa e o trabalho de contador. Ao lado de Maurice a vida de Lourenço ganha contornos mais interessantes, mas alguns fantasmas do seu passado insistem em atrapalhar. Vale destacar que Pigossi está competente em cena, embora em alguns momentos seu personagem pareça um tanto ingênuo demais, o ator consegue deixar a plateia aflita pelos caminhos que surgem na jornada à deriva do protagonista. Além disso, o ator está bastante desinibido em cenas que deixarão os mais conservadores irritados... Por sua vez, Calvani filma bem, sem pressa e sabe a hora de usar closes muito próximos de seus atores e planos mais abertos para apresentar aquela praia deserta como se fosse um universo paralelo. Interessante notar que o texto atraiu um elenco de apoio bastante interessante, com a oscarizada Marisa Tomei, a premiada Mya Taylor (de Tangerine/2015) e Bryan Batt (famoso por sua participação na série Mad Men). Ainda que o filme não seja inovador em sua proposta, funciona muito bem como carta de apresentação da parceria profissional do casal. Que sejam felizes. 

Maré Alta (High Tide / EUA - 2024) de Marco Calvani com Marco Pigossi, James Bland, Bill Irwin, Mya Taylor, Sean Mahon, Bryan Batt, Todd Flaherty, Karl Gregory, Mark Meeham e Stephen Walker.