Baldwin: resgate de uma figura histórica.
Não deixa de ser interessante que no ano em que três fortes concorrentes ao Oscar de Melhor Documentário abordavam a tensão racial na terra do Tio Sam, acabasse sendo premiado a obra que abordava um negro sendo acusado de assassinato ("O.J.: Made in America", na verdade uma série documental da ESPN). Se somente filmes estivessem concorrendo (o que irá acontecer no ano que vem), provavelmente o documentário Eu Não Sou Seu Negro de Raoul Peck teria levado o prêmio para casa (derrotando o outro favorito, 13ª Emenda de Ava DuVernay). O filme é interessantíssimo ao conjugar imagens com a narrativa do escritor James Baldwin sobre políticas raciais nos EUA - e o mais assustador é que Baldwin está morto há quase três décadas, mas o seu discurso permanece tão atual quanto antes. O texto que escutamos é inteiramente extraído de trabalhos do escritor, principalmente dos meados da década de 1970, quando ele tentava esboçar um livro sobre o impacto sofrido pelas mortes de Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X na comunidade afro-americana e como as utiliza para exemplificar uma cultura forjada sobre a ideia de uma supremacia branca. Existe uma riqueza de material histórico tão grande no filme que é impossível não rever alguns conceitos que temos sobre o que está por trás da maioria das produções culturais americanas. Passando por cenas de entrevistas, filmes e programas de televisão, as palavras de Baldwin (lindamente defendidas pela voz de Samuel L. Jackson na narrativa que emoldura todo o filme) nos leva a uma jornada incômoda ao epicentro do racismo. Da luta pelos direitos civis, passando pelo discurso de ódio quando uma jovem negra ousou estudar numa escola "para brancos" o que vemos é um mundo onde o preconceito era legitimado e vivido sem pudores - e que provavelmente muita gente sente falta. Além de trazer um ensaio histórico sobre a questão racial bastante relevante, o filme faz ainda o favor de resgatar uma figura histórica que andava esquecida. Nascido em Nova York em agosto de 1924, James Arthur Baldwin se tornou reconhecido como dramaturgo por suas obras tornarem palpáveis os dilemas sociais, psicológicos, sexuais e raciais dos personagens. James perdeu o pai para as drogas e viu a mãe se casar com um pastor que sempre lhe tratou com bastante rigidez, o que não impediu que aos dez anos ele sofresse abuso sexual praticado por dois policiais de Nova York. Toda as dores da experiência de vida do escritor ajudaram a construir seu olhar bem-estruturado, coerente e até benevolente sobre os conflitos das relações humanas - o que fica evidente nos textos utilizados neste documentário. Nas cenas em que aparece, Baldwin nunca parece agressivo ou irredutível, pelo contrário, bem articulado e com uma clareza de ideias impressionante, Eu Não Sou Seu Negro retrata com perfeição sua perspectiva sobre um dos problemas que ainda persiste até hoje na sociedade americana - e que parece se fortalecer em todo o mundo a cada dia. Analisado como cinema, a obra de Raoul Peck causa arrepios pela parceria perfeita entre suas ideias e a obra do escritor, como se os dois houvessem planejado este projeto meticulosamente por anos. Suas imagens caem como uma luva às palavras de Baldwin que geram análises contundentes sobre cultura e política social. Dinâmico e bem estruturado, o filme tem o grande mérito de revelar uma grande complexidade na estrutura do discurso racista e o que ele tenta esconder em suas entranhas ideológicas mais ocultas.
Eu Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro/EUA-2016) de Raoul Peck com Samuel L. Jackson, James Baldwin, Harry Belafonte e Dick Cavett. ☻☻☻☻
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