Jahn: pesadelos urbanos e ameaças constantes.
Muitos críticos ficaram animados quando o Brasil anunciou que O Som ao Redor seria o nosso candidato a concorrer uma vaga entre os indicados ao Oscar de filme estrangeiro. Considerado a melhor escolha em anos, o filme de Kleber Mendonça Filho foi premiado em festivais e elogiado pela imprensa gringa. O filme me pareceu uma versão brasileira, de acento nordestino, de filmes que já tempos são produzidos no resto da América Latina sobre a ótica da classe média. No Brasil, muitos cineastas já tentaram abordar o cotidiano dos moradores das grandes cidades em que estabilidade é mesclada à insegurança causada pelas diferenças sociais acirradas, no entanto, poucos conseguiram incrementar a abordagem com doses certas de delírio. Muitas vezes o resultado pode ser radical demais, ou abrigar mais pontas soltas do que o público suporta. O grande trunfo de O Som ao Redor é o roteiro bem lapidado que mistura vários personagens em torno de uma mesma história, embora, muitas vezes pareça que as tramas paralelas não se conectam. O início mostra fotos em preto e branco de um Pernambuco que parece ter ficado para trás. A realidade dos coronéis parece logo abandonada quando vemos uma Recife urbana, com as ruas cheias de prédios de classe média, onde a presença de grades e telas parece proteger a população de uma ameaça que está à espreita. O risco está sempre presente no filme, tanto que o roteiro preza por chamar cada parte com um título que remete à proteção (Cão de Guarda, Guarda Costas...), ainda que os moradores levem vidas tranquilas. Ainda que o filme se passe nos dias atuais, utiliza tintas fortes para valorizar o valor da descendência entre um grupo de personagens. Seu Francisco (Waldemar José Solha) seria o dono das terras onde o bairro cresceu com o tempo. Entre filhos e netos o que recebe mais destaque na história é o bom moço João (Gustavo Jahn), que sente o início do relacionamento com Sofia (Irma Brown) ameaçado quando roubam o rádio do carro dela quando dormem juntos na casa dele pela primeira vez. Conhecendo bem a vizinhança, João acredita que foi seu primo Dinho (Yuri Holanda) o responsável pelo roubo. Por uma espécie de coincidência, chega um grupo de homens na rua liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos) oferecendo o serviço de vigiar a vizinhança a partir de um pagamento fixo bancado pelos moradores (milícia?). Paralelo a isso, acompanhamos a vida de Bia (Maeve Jinkings), uma dona de casa aparentemente comum que lida com marido e filhos com grande naturalidade - mas que possui seus pequenos segredos cotidianos que vão para além dos aborrecimentos com o cão do vizinho. Mendonça Filho opta por um tom realista arriscado numa sucessão de situações sutilmente reveladoras - numa mistura clara de atores profissionais e amadores (e acho que isso deixa algumas atuações beirando a apatia). Talvez pelas cenas iniciais com fotos em preto e branco, me senti instigado a criar relações daquelas imagens com tudo que apareceu na tela. A postura de João como um educado coronelzinho, que quer proteger seus agregados e tem ciência do lado bom de sua herança familiar. Francisco como um grande coronel urbano. Dinho como um agroboy inconsequente e os seguranças novatos como jagunços. É neste ponto que o Som ao Redor surpreende ao deixar claro que o grupo de Clodoaldo não está subjugado ao coronel da região. Aos poucos o que era para gerar segurança, acaba sugerindo ameaça ao se misturar com sons estranhos ouvidos pela vizinhança, pessoas desconhecidas que aparecem pela rua, porteiros que não cumprem seu dever, moleques andando pendurados em lajes e árvores. A tensão se faz tão presente quanto recursos tecnológicos (celulares, rádios, câmeras, notebooks...), ilusões de segurança e paranoias urbanas das mais variadas. É ao traduzir essas nóias em imagens e sons (como o batismo de sangue de João num banho de cachoeira nas terras do avô, o quintal invadido por delinquentes ou a eterna confusão entre barulho de tiros e fogos) que o filme se fortalece numa abordagem do cotidiano de pessoas comuns. É verdade que muita gente irá dizer que durante o filme não acontece muita coisa, mas quem ficar atento verá que o roteiro é um dos mais bem trabalhados do cinema brasileiro durante os últimos anos, principalmente pela forma como evoca referências históricas para dar corpo ao subtexto que se revela o principal ao final da sessão. Não lembro, em nossa produção recente, um filme que conseguisse criar uma tensão crescente com tão poucos elementos. Além disso, eu não poderia deixar de destacar o excelente trabalho com a trilha sonora e os sons que perturbam durante o filme. Mesmo que não seja indicado a prêmio algum, O Som ao Redor tem identidade e estilo fortes, esses fatores que o torna uma obra tão instigante ao ir na contramão que se torna cada vez mais comum no formato enlatado do cinema brasileiro. Talvez por isso, o New York Times o tenha colocado entre os dez filmes mais interessantes exibidos nos EUA no ano passado.
O Som ao Redor (Brasil/2013) de Kleber Mendonça Filho com Gustavo Jahn, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Waldemar José Solha, Yuri Holanda e Irma Brown. ☻☻☻☻
O Som ao Redor (Brasil/2013) de Kleber Mendonça Filho com Gustavo Jahn, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Waldemar José Solha, Yuri Holanda e Irma Brown. ☻☻☻☻
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