Laerte: protagonismo no documentário da Netflix.
Lembro que quando fazia meus estudos na área de Representações Sociais eu percebi que o ser humano precisa classificar o que vê no mundo para que possa compreendê-lo melhor, ou pelo menos, ter esta confortável impressão. O problema é que quando lidamos com classificações, perdemos a noção da complexidade que um determinado objeto possui. Foi mais ou menos nessa época que eu lembro de ver o cartunista Laerte sendo classificado como crossdresser por usar roupas femininas. Algum tempo depois, Laerte se assumiu como transsexual, ou pelo menos, esta foi a classificação que consideravam que lhe cabia melhor. Laerte ainda tem dúvidas se deve ou não colocar implante e ter seios, não tem vontade de trocar de genital (embora ache uma boa ideia tirar sua bolsa escrotal e deixar o resto no lugar que está), mas ainda assim se percebe uma mulher para além do corpo que possui. Parece complicado? Talvez você possa entender melhor assistindo ao documentário Laerte-se, que está em cartaz no Netflix. Assinado pelas diretoras Lygia Barbosa e Eliane Brum o filme é uma verdadeira viagem nos questionamentos de Laerte e torna-se ainda mais interessante justamente pela artista evitar a todo instante cair nos lugares comuns que se imaginam sobre o universo trans. Se no início ela está hesitante em aceitar a ideia do documentário (por considerar que geralmente o resultado de suas entrevistas tem muito pouco do que ela deseja dizer), aos poucos ela se solta e dispara suas considerações sobre si mesmo, especialmente na busca de um equilíbrio íntimo que não depende dos rótulos construídos socialmente - seja pela sociedade heteronormativa - que estipula o que é ser isso ou aquilo - ou por uma militância que cai na tentação de guardar tudo em suas próprias gavetinhas. Laerte é simplesmente Laerte (sim, ela não quis mudar de nome), mantem bom relacionamento com a família, fica aflita com depilação, fazer unhas ou com aquele vestido dourado que não sai da cabeça, além de vez em quando considerar em entrevistas que não tem nada de importante a dizer. Diferente de quem conheceu Laerte em sua nova fase possa imaginar, Laerte era um homem muito bem humorado, mas discreto e contido. Ela não está preocupada em se tornar símbolo de uma coisa ou de outra, pretende apenas ser aceita do jeito que é (o que já dá bastante trabalho e dor de cabeça para ela mesma). A ideia do corpo está bastante presente em todo o filme, seja pelas corajosas cenas de nudez, pelos desenhos que Laerte realiza durante as filmagens ou até pelas tirinhas que já exploravam o que se passava na mente durante seu período de transição do masculino para o feminino. Laerte-se é um curioso mergulho na diversidade sexual, nas inquietações de uma pessoa provocada por si mesma a externalizar o que escondia até o incômodo se tornar insuportável. Apesar do documentário investir numa narrativa bastante tradicional, a sua simplicidade consegue realizar a tarefa de humanizar a figura de Laerte para além dos pré-conceitos.
Laerte-se (Brasil/2017) de Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum com Laerte, Rita Lee e Angeli. ☻☻☻☻
Laerte-se (Brasil/2017) de Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum com Laerte, Rita Lee e Angeli. ☻☻☻☻
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