Fechando o Ciclo Verde e Amarelo deste ano, escolhi Medida Provisória que foi um dos filmes mais comentados do ano e isso aconteceu por vários motivos. O principal deles é que o cinema brasileiro atravessou quatro anos de vacas magras sem muito apoio para sua produção e ver um filme de forte viés político como a estreia de Lázaro Ramos na direção é um grande feito. Outro motivo que despertou muita curiosidade é o fato do filme abordar uma distopia (isso mesmo, aquela palavra que virou moda para filmes de ficção científica nos Estados Unidos em que um futuro não muito distante nos guarda um destino pouco agradável). No futuro em questão não se fala mais sobre negros, mas pessoas com "melanina acentuada" ou então "melaninados". Em busca de reparações históricas, o governo acaba de aprovar uma indenização para descendentes de escravos no Brasil e quando a primeira senhora vai sacar o dinheiro, um problema impede o recebimento. Este é o primeiro fato que aponta para a ferida de que a ideia de reparação agrega um benefício político para as classes governantes que almejam o título de politicamente corretas ou inclusivas, mas falta vontade para realizar. A coisa então remete à outra solução, bancar o retorno de pessoas com ascendência africana para a terra de seus antepassados, a África. A ideia estapafúrdia surge envolta de um marketing altamente positivo, mas que é vista com desconfiança por alguns. Se a proposta começa como opcional, logo a coisa se torna autoritária ao determinar que todas as pessoas que lembrem "levemente" características africanas devem ser deportadas. Começa então uma verdadeira caçada aos cidadãos que não desejam de forma alguma sair do seu país de origem. Nestes dois pontos existem os elementos mais interessantes do filme, o primeiro é como um discurso é apropriado pela classe dominante de forma tão dissimulada ao ponto de ser totalmente distorcida em sua ideia matriz. O outro é a fragilidade de um convivência inter-racial pacífica fajuta que não precisa de muito para revelar os preconceitos que se escondem abaixo da superfície. Em outros tempos eu diria que esta minha afirmação é um exagero, mas tendo em vista a realidade escancarada dos discursos de ódio nas redes sociais, vemos que uma estapafúrdia Medida Provisória 1888 vista no filme (não por acaso, ano da Lei Áurea) traria os mesmos desdobramentos que vemos no filme. Merecem destaque no filme várias frases que remetem diretamente ao simulacro que presenciamos diariamente, além de alusões históricas de ontem (como a ideia de branqueamento nacional) ou de hoje ("como não vimos o que estava acontecendo, como foi que rimos disso?"). Como diretor Lázaro Ramos traz um belo gosto pela provocação e sabe conduzi-la com drama e até algum humor, mas ao estabelecer o centro da narrativa no casal Capitu (Taís Araújo) e Antônio (o internacional Alfred Enoch) o filme mantem um belo fio condutor para o que tem em mãos, mas que encontra no desfecho um problema. Diante da abrasiva alegoria que constrói ao longo da sessão, o final, ainda que poético, não consegue fechar a história que tinha em mãos de forma satisfatória. Podem dizer que simboliza que a luta (ou a resistência, termo utilizado várias vezes no filme) continua, mas me pareceu que a genial ideia do filme ficou no meio do caminho (assim como aquela cena sobreposta da morte de dois personagens quase ao mesmo tempo, que pretende emocionar num manifesto antiviolência, mas que não tem desdobramento algum na vida dos outros personagens, seja de quem viu, quem matou ou quem sofre), se faltou amarrar estes momentos, sobram aqueles diálogos que pretendem narrar o que já estamos vendo na tela e, por isso mesmo, são desnecessários. Medida Provisória é um filme interessante e necessário, mas parece não se dar conta dos valiosos desdobramentos que deixa pelo caminho, no entanto, Lázaro Ramos tem uma estreia bastante promissora como cineasta.
Medida Provisória (Brasil/2022 - Brasil) de Lázaro Ramos com Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Luis Miranda, Flávio Bauraqui, Mariana Xavier e Paulo Chun. ☻☻☻
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