Julianne liderando o elenco: fidelidade ao mestre Saramago.
Sei que muita gente detesta a versão de Fernando Meirelles para o livro de José Saramago, mas eu confesso que entre os filmes sobre epidemias é o meu favorito - até porque não é somente sobre isso. O romance do único autor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de literatura é um dos livros que acabaram com a minha vida - depois que li eu considerava os outros que caiam em minhas mãos completamente sem graça, só fui me recuperar quando encontrei Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez, mas isso é para comentar em outro momento. Quem conhece sabe que a escrita de Saramago é seca, árdua, com parágrafos que duram um capítulo inteiro e diálogos encadeados um após o outro sem sinalização prévia. Trata-se de uma experiência literária inesquecível composta por personagens sem nomes e que atendem por adjetivos distintos como A esposa do médico, A rapariga de óculos escuros ou O garoto estrábico. Meirelles buscou ser fiel a todas essas referências no filme, conseguiu projeção mundial ao se tornar o primeiro filme a abrir o Festival de Cannes que concorria à Palma de Ouro e amargou críticas divididas sobre sua empreitada. O filme acabou voltando para a edição e estreou mundialmente alguns meses depois. Ainda gozando do prestígio de Cidade de Deus (2002) e o Oscar de Rachel Weisz por seu primeiro trabalho com O Jardineiro Fiel (2005), o diretor conseguiu um elenco magnífico para esta adaptação. O filme se passa num país não especificado (houve locações em lugares como São Paulo e Canadá) e começa com um homem oriental dirigindo seu carro quando subitamente fica cego, seu caminho se cruza com um homem (o canadense Don McKellar, que assina o roteiro do filme) que lhe rouba o veículo e horas depois também deixa de enxergar. Outras pessoas começam a sofrer do mesmo mal, pessoas que se encontravam no consultório de um mesmo médico (Mark Ruffalo, num papel rejeitado por Sean Penn e Daniel Craig) como uma garota de programa (a brasileira Alice Braga), um menino e um homem com tapa-olho (Danny Glover) e que tenha encontrado qualquer um dos contaminados. A cegueira começa a se alastrar, mas ela não é uma doença comum, as pessoas que são contaminadas começam a enxergar tudo como uma camada branca leitosa (e Meirelles utiliza esse recurso em várias cenas). Diante da situação, o governo começa a isolar os doentes e, com a cegueira do esposo médico, a esposa dele (a ótima Julianne Moore) resolve fingir que está cega para continuar próxima dele. Conforme chegam os outros cegos, ela serve de guia para aquelas pessoas desamparadas que precisam lidar com a sua atual situação e o descaso dos governantes com o espaço em que ficam confinados. Este é o primeiro ato do filme, o segundo se concentra no caos que se instaura naquele espaço quando a higiene começa a ficar precária, assim como a comida é cada vez mais rara. Sei que não é bonito de se ver um bando de gente em uma situação insalubre de vida, mas é tudo feito de forma tão realista que a impressão que temos é que se acontecesse realmente uma situação parecida, seria exatamente assim. Logo começa uma guerra naquele espaço (onde a ala do médico entra em conflito com o Rei da outra - vivido pelo mexicano Gael Garcia Bernal, fique atento à sua rápida aparição como recepcionista de hotel no início do filme). A situação se torna cada vez mais dramática e radicaliza as posturas de sua heroína até que o terceiro ato tem início e existe uma queda brusca no ritmo do filme, tudo se torna mais lento e arrastado, embora a intenção de Meirelles fosse aumentar a melancolia da história num mundo devastado onde o homem retornou à barbárie, falta alguma coisa nessa parte. Acho que toda emoção que Meirelles tenta prender durante a sessão fez falta nessa parte em que ela deveria explodir, como isso não acontece, o final perde um bocado de seu impacto ao ser levado para tela. A fotografia granulada é correta, as atuações são competentes nos perante os dilemas dos personagens, a edição funciona, mas sinto falta de uma trilha sonora mais expressiva do que o minimalismo do grupo Wakti, uma mais vigorosa teria feito toda a diferença ao envolver o espectador. Ainda assim, Meirelles consegue realizar um belo filme - que é o total oposto do ritmo frenético de Cidade de Deus - que deixou José Saramago comovido ao assistí-lo. Deve ser algo fascinante ver seus personagens ganharem vida numa telona, mesmo que a maioria das pessoas não tenham se dado conta de que a cegueira retratada em sua história é muito mais social do que física (como a maioria das pessoas pensaram ao assistí-lo). Ensaio sobre a Cegueira é uma ode anti-individualismo e o maior mérito do filme, assim como seu maior defeito, é ser extremamente fiel ao livro que o inspirou.
Ensaio sobre a Cegueira (Blindness/Brasil-Canadá-Japão - 2008) de Fernando Meirelles com Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael Garcia Bernal, Danny Glover, Alice Braga, Don McKellar e Sandra Oh. ☻☻☻☻
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