Quase um crime perfeito: o complexo de super-homem segundo Hitchcock.
Festim Diabólico deve ser o filme mais ousado de Hitchcock, talvez por isso seja um dos meus favoritos. Para começar, ele tenta reproduzir do início ao fim a ideia de que estamos diante de um plano sequência, ou seja, um filme sem cortes. Vale ressaltar que reza a lenda que o diretor realmente não fez cortes, mas apenas emendou um rolo de película no outro, já que não eram produzidos em extensão suficiente para comportar quase hora e meia de narrativa. A saída do diretor foi emendar os rolos com closes nas costas de personagens ou cortes discretíssimos, não que os fãs do diretor se importariam com esses detalhes microscópios no formato vigoroso que cria para a adaptação da peça de Patrick Hamilton. O filme começa com um assassinato num apartamento grã-fino, desde o início sabemos quem cometeu o crime. Dois amigos enforcam um convidado somente pelo prazer da ocasião e a arrogância de provar que são capazes de cometer um crime perfeito. Julgando-se superiores à vítima e boa parte da humanidade, eles realizam o crime como uma façanha que será completada com uma festa logo em seguida, onde estarão presentes o pai e a noiva da vítima. Para completar a afronta, os dois escondem o corpo num baú que servirá de mesa para o jantar. Mesmo diante dessa atrocidade, o diretor consegue manter a elegância durante toda a sessão e constrói um monstro diante de nossos olhos, Brandon Shaw (John Dall) deve ser um dos sujeitos mais amorais que já apareceram num filme e o fato de embasar sua ação em pilares da filosofia (como Nieztsche ao qual faz menção ao conceito de super-homem) só piora ainda mais as coisas. Todas as suas ações, do início ao fim, ajudam a compor o cenário sinistro a que o título se refere. Conhecido pelo seu humor obscuro, o personagem se supera ao emprestar livros ao pai da vítima amarrando-os com a arma do crime. Embora Brandon tenha como cúmplice o parceiro Phillip Morgan (Farley Granger), este por mais que aparenta ser contra suas ações, é de uma passividade tão assustadora quanto a amoralidade de seu amigo. Entrando em conflito com os atos que compactua, a paranóia de Phillip só cresce durante a festa. É notável como Hitchcock constrói a narrativa centrada em um único espaço e oito personagens em cena a maior parte do tempo, há momentos em que todos parecem falar ao mesmo tempo - perdendo o tempo com futilidades típicas dessas ocasiões enquanto se preocupam com David (Dick Hogan), o morto, que nunca chega. Há momentos assustadores como a cena em que Brandon discute com o pai de sua vítima sobre uma certa superioridade que permitiria que alguns homens matassem outros. Esse conceito chega a ser defendido por um professor de filosofia, Rupert Cadell (James Stewart) que desconfia cada vez mais da atmosfera estranha que afeta Brandon e Phillip, mesmo quando eles tentam desviar a atenção de todos em bobagens como jogar a noiva da vítima (a bela Joan Chandler) para um ex-namorado (Douglas Dick) que também foi inesperadamente convidado para a ocasião. Embora tenha apenas oito cortes entre suas tomadas contínuas, Hitchcock mantém uma narrativa ágil e angustiante na expectativa de que descubram que o corpo seja descoberto. Embora tenha sido lançado em 1948, o filme permanece atual em seu humor cortante e alfinetadas em algumas correntes das ciências humanas. Vale lembrar que embora a trama pareça absurda ela foi baseada numa história real, onde dois brilhantes estudantes da Universidade de Chicago (Richard Loeb e Nathan Leopold) cometeram um crime com detalhes muito semelhantes ao visto no filme. Com o passar do tempo, o filme recebeu uma polêmica de brinde: o relacionamento entre Brandon e Phillip que muitos atribuem ser mais do que uma simples amizade ancorada na agressividade de um e a passividade do outro. Este foi o primeiro filme colorido dirigido pelo cineasta.
Festim Diabólico (Rope/EUA-1948) de Alfred Hitchcock com James Stewart, John Dall, Farley Granger, Cedric Hardwicke, Joan Chandler, Edith Evanson e Costance Collier. ☻☻☻☻☻
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