Jéssica e Val: o macro através do micro.
Escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar de Filme Estrangeiro, Que Horas Ela Volta? teve suas chances anabolizadas depois do sucesso nos Festivais de Berlim (onde a direção recebeu dois prêmios) e Sundance (prêmio de melhor filme dramático internacional), além de figurar em várias como um dos três filmes com mais chances de ser agraciado pela Academia. Se a indicação acontecer será um reconhecimento merecido para uma das cineastas mais interessantes do cinema mundial, mas que ainda é pouco conhecida até mesmo entre os brasileiros. Anna Muylaert tem aquele jeito tímido e sempre tem a dura tarefa de explicar seus filmes sem poder revelar muito o que eles tem de mais interessante - senão estraga a surpresa. Antes de dedicar-se ao cinema, Anna trabalhou com alguns dos programas infanto-juvenis mais celebrados da TV brasileira (entre eles Mundo da Lua e Castelo Rá-Tim-Bum) e seus filmes sempre foram um ponto instigante no cinema nacional. Seja em Durval Discos/2003 ou É Proibido Fumar/2009 sua característica principal é subverter o que esperamos de seus personagens - e da própria narrativa. Em Que Horas Ela Volta? isso também ocorre, ainda que de forma mais sutil, seja pela filha da empregada que chega para ficar um tempo na casa dos patrões de sua mãe ou da postura da própria patroa (que começa o filme dizendo que o mais importante em ter estilo é "ser você mesma", para pouco depois torna-se uma megera). Regina Casé (Outro ponto importante do filme, já que a versátil atriz é lembrada mais como apresentadora de um popular programa de TV) encarna a doméstica Val, que dedicou treze anos de sua vida trabalhando para Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), cuidando da casa e de Fabinho (Michel Joelsas). Com isso sua filha Jéssica cresceu distante, em outro estado, sendo cuidada por outra pessoa. Quando está na hora de Jéssica (Camila Márdila) prestar vestibular para uma conceituada faculdade paulista (a FAU - USP), ela pede para ficar uns tempos com a mãe - sem saber que a mãe mora num quartinho na casa dos patrões. Os patrões aceitam a presença da jovem, mas os conflitos são inevitáveis quando Jéssica apresenta ser mais esperta do que pensavam, não se enquadrando no papel de filha da empregada - afinal, ela é acolhida como hóspede e porta-se como tal, o que incomoda cada vez mais D. Bárbara e a própria Val. É preciso ficar atento para perceber todas as camadas e entrelinhas do roteiro, numa simetria propositalmente torta da relação entre os personagens, espelhando com maestria que todos fazem parte da mesma realidade com papéis construídos socialmente - que muitas vezes não correspondem às ambições de cada um. Isso acontece não apenas com Jéssica, mas com o próprio Fabinho (que quer curtir a vida enquanto a sociedade lhe cobra escolher uma carreira para o futuro), Dr. Carlos (sempre com camisa de bandas e comportamento juvenil) e a própria Dona Bárbara (que tenta mostrar sua nobreza com a presença da jovem na casa... mas não consegue por muito tempo), apenas Val consegue demonstrar resignação em seu papel, pelo menos até perceber (de forma concreta) que tudo pode ser muito diferente. É no desequilíbrio desse universo - que parece tão bem estruturado em sua harmonia postiça - que o filme cresce sutilmente, em conflitos que se instauram em ciclos que compõem um cenário rico sobre as relações entre classes sociais, misturado à dinâmica entre pais e filhos - e o que esperamos dela. O filme ainda brinca com as guinadas dos outros filmes de Muylaert (com o acidente que ocorre com Bárbara e esperamos que o filme irá enverede para outro caminho... só que não...) ou remete à diferença de postura de Dona Bárbara com a de Etty Fraser em Durval Discos (que não quer se desfazer da filha da empregada de jeito algum). O fato é: Que Horas Ela Volta? é bastante sensível e emocional, mas sem perder o caráter social da história que conta de um país em transformação e, por isso mesmo, incômodo para um grupo que sente estar perdendo a farinha de seu pirão. É o macro visto através do micro pelos olhos astutos de uma cineasta criativa e singular. Devo destacar que ela contou com a ajuda de três atrizes espetaculares - Casé desaparece na personagem, assim como Camila Márdila (ambas premiadas pelo Júri de Sundance), seguidas de perto pelas expressões duras de Karine Teles que compõe uma personagem complexa com o pouco tempo que tem em cena. Enfim, Que Horas Ela Volta? merece mais do que o Oscar: merece ser reconhecido como um dos melhores filmes do cinema brasileiro.
Anna (de preto) e o elenco: olhar astuto.
Que Horas Ela Volta? (Brasil-2015) de Anna Muylaert com Regina Casé, Camila Márdila, Lourenço Mutarelli, Michel Joelsas e Lourenço Mutarelli. ☻☻☻☻☻
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