Sonia e Raul: dicotomia entre a realidade e a fantasia.
Quando lançou seu último filme (Meu Amigo Hindu/2016) fiquei muito triste quando li uma entrevista do cineasta Héctor Babenco onde ele relatava todas as dificuldades que enfrentava para filmar no Brasil. Ele ressaltava que além de todos os problemas para captar recursos, problemas com a filmagem e a longa espera por distribuição haviam transformado a vida de cineasta num verdadeiro martírio. Ingenuamente pensei que um diretor do quilate de Babenco, diretor de (pelo menos) uns cinco clássicos do cinema nacional estaria longe de todos esses percalços. Fosse americano ou europeu provavelmente seu nome estaria entre os grandes mestres da sétima arte, mas Babenco nasceu na Argentina e naturalizou-se brasileiro e, convenhamos, que seu cinema é bom demais para lotar salas famintas por comédias bobocas e atores globais. Babenco sempre quis desafiar o público, especialmente com dramas marginais que combinam a aspereza da exclusão com um pouco de poesia para tornar a existência suportável. O universo construído pelo cineasta não é para saborear a pipoca, mas para curtir o nó na garganta. Por isso eu entendo porque muita gente considera Pixote - A Lei do Mais Fraco (1980) seu melhor filme, mas eu curto mesmo é O Beijo da Mulher Aranha, outro clássico absoluto do diretor. Baseado no romance do argentino Manuel Puig, Babenco trabalha as relações da história com nuances profundamente emocionais na relação entre dois prisioneiros: Luís Molina (William Hurt, excepcional) e Valentin Arregui (o sempre competente Raul Julia). O efeminado Luís é um vitrinista que foi preso por ser homossexual e já o rústico Valentin é um prisioneiro político, ambos dividem a mesma cela numa prisão de segurança máxima de algum país da América Latina. Com diferenças visívei, Luís tenta se aproximar do companheiro de cela narrando um filme que assistiu: O Beijo da Mulher Aranha - um intrincado romance de época onde uma cantora francesa (Sonia Braga, com ares de diva e indicada ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante) se apaixona por um oficial nazista. Babenco contrasta as cores das duas narrativas e apresenta os detalhes românticos da cantora com o oficial em contraponto com a atração que Luís começa a sentir por Valentin. Aos poucos, Babenco desconstrói a teatralidade, a sensualidade e os estereótipos do que está em cena, explorando cada vez mais os sentimentos de Luis. William Hurt está inesquecível em meio aos dilemas de seu personagem, preso entre a realidade e seus desejos (obviamente que a Mulher Aranha é apenas uma simbologia para sua própria sexualidade), não é por acaso que o ator (que nunca se contentou em ser apenas um galã) recebeu os prêmios de melhor ator no Oscar e no Festival de Cannes. Vale destacar também o quanto Sonia Braga enche os olhos em cada cena que aparece. Babenco realiza aqui um trabalho emocionalmente intenso e com várias camadas, costuradas justamente através de suas dicotomias, alcançando sucesso mundial e recebendo quatro indicações ao Oscar (Filme, diretor, roteiro adaptado e ator) numa época em que a homossexualidade ainda era vista com desconfiança no cinema. O Beijo da Mulher Aranha é um verdadeiro trabalho de um mestre que merece nosso respeito por toda a eternidade.
Raul e William: atuações inesquecíveis.
O Beijo da Mulher Aranha (Kiss of the Spider Woman / Brasil - Argentina - EUA / 1985) de Héctor Babenco com William Hurt, Raul Julia, Sonia Braga, José Lewgoy, Herson Capri, Milton Gonçalves e Miriam Pires. ☻☻☻☻☻
Nenhum comentário:
Postar um comentário