Marsan e Hawkins: os opostos realmente se atraem?
Eu tenho uma estranha relação com os filmes do diretor Mike Leigh. Geralmente demoro para assistí-los e enquanto degusto suas tramas sou tomado pela ansiedade, uma verdadeira pressa em saber o que acontecerá com aqueles tipos comuns que habitam seu universo. Mas Mike é implacável, ele apresenta seus personagens em situações cotidianas, tempera com um pequeno conflito aqui e outro ali. Às vezes seus sujeitos me irritam, comovem, divertem, outras vezes dão medo... mas não existem mocinhos ou vilões, apenas pessoas que seguem suas vidas que poderiam existir em qualquer lugar do mundo. Quando minha pressa se dissolve é sinal que estou completamente imerso naquele mundo particular do diretor e torna-se quase inevitável a sensação de que cada obra dirigida por ele exercita minha compaixão por aqueles seres tão triviais - e que na cinematografia de qualquer outro diretor seriam meros coadjuvantes de terceiro grau. Durante boa parte do tempo em que assistia Simplesmente Feliz eu não conseguia entender todo o alvoroço que o filme causou ao ponto de merecer o Globo de Ouro de melhor atriz de comédia/musical para Sally Hawkins ou a indicação ao Oscar de roteiro original, mas quando se acirra a dicotomia entre a otimista Poppy (Hawkins) e o amargo Scott (Eddie Marsan) eu me assustei com a forma como podemos perceber o mundo. Poppy é uma professora primária com inabalável otimismo, ela não se irrita nem quando roubam sua bicicleta. Depois que é roubada, ela chega à conclusão de que está na hora de "evoluir na hierarquia" e aprender a dirigir. Por conta deste objetivo ela conhece o instrutor Scott, que observa o mundo numa total oposição à forma de Poppy se comportar. Pessimista, preconceituoso e rabugento, não são poucos os momentos em que ele a chama de irresponsável e infantil, apenas pelo fato dela ser mais alegre do que a maioria das pessoas. A alegria de Poppy, visivelmente, o irrita. Isso quase acontece com o espectador, até o momento que nos damos conta que é uma opção de vida daquela personagem e que não há alienação alguma nisso. Uma personagem tão bem-humorada poderia se tornar unidimensional demais, mas são nos momentos em que Hawkins expressa apenas com um olhar que manter-se otimista com as coisas desagradáveis que encontramos pelo caminho não é tão fácil quanto parece. Poppy não é uma idiota, ela tem consciência das coisas ruins que acontecem ao seu redor, mas prefere não alimentá-las com comentários desagradáveis ou grosserias. Assim, seu contraste com o mal-humor de Scott cresce até um doloroso desfecho, onde nos damos conta de que as pessoas constroem o mundo que observam, elas agregam valor e características às coisas que as cercam e, sendo assim, um sorriso, a roupa que você veste ou um comentário pode ser compreendido de diversas formas - até ofensivas. Quando a relação entre Scott e Poppy chega a um ponto insustentável, Leigh parece nos propor uma escolha: encarar o mundo como ele ou ela. O perigo dos extremos, dos pré-conceitos, dos ressentimentos emerge ameaçador e ao fim cabe a nós julgar quem consegue viver melhor. Simplesmente Feliz não é um filme sobre seus personagens; é um filme sobre nós.
Simplesmente Feliz (Happy-go-Lucky / Reino Unido-2008) de Mike Leigh com Sally Hawkins, Eddie Marsan, Alexis Zegerman e Samuel Roukin. ☻☻☻
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