Lennie e Ciro: plumas, paetês e ideologias num palco de vanguarda.
Raphael Alvarez e Tatiana Issa realizaram um dos melhores documentários já produzidos no Brasil e de quebra ainda salvaram do esquecimento um dos grupos mais inovadores da cena artística brasileira. Este resgate lhe valeu mais de vinte prêmios internacionais. Afinal, imagine em meados da década de 1970 um grupo de homens multifacetados (cantores, atores, dançarinos, comediantes...) vestidos de forma espalhafatosa e soltando alfinetadas para a sociedade conservadora que vivia seu auge com a ditadura militar! O filme de Alvarez e Issa resgata a trupe com enorme riqueza de detalhes e vemos o quanto nosso cenário artístico está em ponto morto. Obviamente que não espero que todo mundo se junte e solte a franga nos palcos, mas os Dzi Croquettes nunca foram só isso, seria incorreto associá-los somente ao clichê 'pioneirismo do movimento gay'. No meio de todos os números de dança elaborados e piadas ácidas, o grupo criticava os rumos de uma sociedade que adotava cada vez mais a padronização como modelo de vida e comportamento. Com o visual inspirado na tradição carnavalesca carioca (de homens se vestirem de mulheres) é brilhante a definição auto-proclamada do grupo, não se definindo como homens ou mulheres, mas como gente ("gente como vocês" diziam para quem estava na plateia). É impressionante como na década de 1970 eles rompiam com os conceitos de gêneros e estereótipos entre macho e fêmea, aparecendo no palco como seres híbridos, com perucas, trejeitos, vozes agudas, salto alto, barba, pêlos pelo corpo, malemolência e musculatura esculpida. As performances abusavam de uma sensualidade bissexual com humor, ironia e músicas de primeira linha. O documentário se concentra principalmente nos anos iniciais desta turma, composta por treze artistas com ousadia saindo pelos poros. O início clandestino e sem chamar atenção (por serem vistos como só um grupo de drag queens), a chegada ao sucesso que começa a sofrer o assédio dos sensores da ditadura - que achavam que o maior problema era o tapa-sexo (que foi logo resolvido: "ok, usaremos uma sunga maior!"), já que não conseguiam classificar a sensação de manifestação contracultural que estava acontecendo, era só música e... dança. Ou melhor: arte. Uma arte capaz de fazer as pessoas se desarmarem de seus preconceitos e perceber que todos não passamos de gente, só isso, sem hierarquias de poder, sem sexismo ou racismo. Estranho como esse universo a parte brotava de uma realidade opressora, sendo duas faces de um mesmo momento sócio-histórico. O grupo foi até à Paris conquistar novos admiradores, como a madrinha Liza Minelli. O filme conta com vastas entrevistas dos membros sobreviventes, entre eles os ainda em destaque Claudio Tovar, Ciro Barcelos e Jorge Fernando (que participou da última fase do grupo) e artistas influeciados pelo grupo (Claudia Raia, Betty Faria, Miguel Fallabella, Ney Matogrosso, Pedro Cardoso, as Frenéticas...). Além da análise da trajetória artística do grupo, o filme ainda apresenta seus membros (com destaque para o visceral Lennie Dale que influenciou muita gente ao misturar o compasso da Broadway à música brasileira) e seus agregados. No fundo, o filme é um retrato profundamente emocional, especialmente por conta de Issa ser filha de um dos agregados da trupe (Américo Issa era cenógrafo) e fica claro sua admiração pelos Croquettes quando os descreve como "palhacinhos". Tanta admiração acabou fazendo com que deixasse de fora um olhar diferenciado sobre o grupo, dando a ideia que todos que não eram envolvidos com a ditadura os adoravam. Não foi bem assim, sinto falta de depoimentos de quem se escandalizava com aquelas apresentações, um conservador declarado que poderia servir de contraponto para toda aquela festa de plumas e paetês irônicos. Mesmo assim, Dzi Croquettes tem inúmeros méritos e merece ser visto para nos dar conta de como uma sacudidada dessas no mundo artístico faz falta para desconstruir preconceitos e intolerâncias. Mesmo quando o filme chega em seu último ato, em que são relatadas os desentendimentos (as piores motivadas pelas drogas) e as perdas pelo caminho (algumas com o advento do HIV) o filme não perde o ritmo, já que os diretores não perdem o embalo lembrando que os falecidos não morreram, só viraram purpurina.
Dzi Croquettes (Brasil/2009) de Tatiana Issa e Raphael Alvarez com depoimentos de Claudio Tovar, Ciro Barcelos, Maria Zilda, César Camargo Mariano, Liza Minelli, Betty Faria, Marília Pêra, Jorge Fernando, Pedro Cardoso, Ney Matogrosso, Leiloca e Nelson Motta. ☻☻☻☻
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