Antoine: os quinze anos como auge de um personagem.
Aproveitando esse clima de Cannes me senti tentado a escrever sobre meu filme favorito de François Truffaut. Os Incompreendidos é um dos filmes mais envolventes que já assisti. Sei que muita vente vai torcer o nariz porque o filme é em preto e branco e (sei que muitos detestam) francês, isso sem falar que data de 1959, mas é infinitamente mais moderno do que muito filme em cartaz hoje em dia. Acho impressionante como o filme de estreia de Truffaut consegue ser atual e ágil com uma história aparentemente simples, mas que flui de uma forma espontânea, nos fazendo até esquecer que estamos diante de um longa de ficção. Esse frescor da narrativa de Truffaut serviu de marco para um dos movimentos mais importantes do cinema, a chamada Nouvelle Vague. Não sou grande estudioso sobre o assunto, mas sei que o movimento foi fundamental para que o cinema francês saísse dos estúdios e buscasse locações nas ruas de Paris. Aqui é evidente o maravilhamento de Truffaut seguir seus personagens pelas ruas, da mesma forma como marca a busca por um cinema com voz própria e cheio de ideias que, ainda hoje, soam originais e atraentes. Antes da Nouvelle Vague os filmes franceses eram majoritariamente de época, soando descolados da realidade francesa. Assim, o cinema de Truffaut, Godard, Claude Chabrol e Agnès Varda (além de muitos outros que antes eram críticos de cinema) buscava novos caminhos para retratar seu país nas telas (e a referência era o cinema de autor feito por Hitchcock e John Ford nos EUA). Deixando a linguagem clássica e se aproximando de temáticas modernas e contemporâneas, torna o filme, ainda hoje, uma obra que transcende o tempo tornando-se um verdadeiro clássico. Baseado em sua própria infância, Truffaut conta a história do pequeno Antoine, um menino que sente-se deslocado na escola e na própria família (daí o título escolhido no Brasil) - o que retrata com bastante fidelidade a juventude francesa da década de 1950. A pouca liberdade, as regras arbitrárias, a pouca atenção recebida, a opressão e a voz silenciada estão presentes o tempo todo e motiva Antoine a se tornar um pequeno rebelde (que cultua o escritor Balzac, o qual, acredita que o ajudará a melhorar o rendimento na escola). Essa rebeldia é compreensível, já que o motivo para se respeitar uma autoridade era somente o fato dela ser uma... autoridade! O trunfo do filme é não mostrar Antoine como uma criança problemática, mas apenas uma criança como tantas outras - com dúvidas, anseios, desejos e demais preocupações típicas de sua idade (sempre tenho a sensação que em suas desventuras, ou 400 golpes do título original francês, ele revela-se como uma espécie de Menino Maluquinho francês que deu o azar de nascer na década de 1950). O filme deixa bem claro que o olhar dos adultos sobre ele transformava suas ações em algo muito mais problemático do que realmente era. Seja na escola ou em casa, existe tanta punição em Os Incompreendidos que fico pensando se ainda hoje, seja em qual extremo (ou você é totalmente repressor ou totalmente permissivo), ainda não percebemos as crianças como adultos em miniatura, exigindo-lhes posturas e decisões que ainda não estão preparados a ter. Por mais que toda narrativa seja tratada com muito humor, a dureza dessa realidade fica ainda mais ressaltada quando notamos que há apenas uma cena que Antoine aparece feliz ao lado de seus país - dali em diante vai tudo ladeira abaixo. A cena em que Antoine vai para o reformatório é de partir o coração, por mais que beire o surreal - assim como a sua fuga rumo a imensidão do litoral, como se o futuro se mostrasse vasto e cheio de possibilidades (o que funciona como um excelente contraponto para a curiosa cena do garoto girando numa espécie de centrífuga - que se tornou marca do filme). Com toda a poética em imagens de Truffaut em cortes precisos, direção impecável, belíssima fotografia em preto e branco, roteiro admiravelmente fluente (indicado ao Oscar) o filme tem ainda o benefício de contar com Jean-Pierre Leáud no papel de Antoine Doinel. Aos quinze anos ele apresenta uma das atuações mais memoráveis do cinema. A empatia com o público foi tão grande que Truffaut convidou Leáud para interpretar outros filmes da saga de Antoine nos longas O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Roubados (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979) onde acompanhamos o crescimento de Antoine e seus dilemas com o casamento, a fidelidade e a paternidade. Embora todos sejam cultuados, eu considero Os Incompreendidos o auge do personagem.
Os Incompreendidos (Les 400 Coups/França-1959) de François Truffaut com Jean-Pierre Leáud, Claire Maurier, Albert Rémy e Patrick Auffay. ☻☻☻☻☻
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