terça-feira, 6 de março de 2018

CICLO DIRETORAS: A Hora da Estrela

Marcélia e Dumont: excelente adaptação da obra de Clarice Lispector. 

É surpreendente como nos Estados Unidos as cineastas ainda precisam fazer  barulho para ter seus méritos reconhecidos. Dia desses conversava com uma amiga e percebemos que no Brasil existe uma tradição de grandes diretoras que já são reconhecidas pelo seu talento, com prêmios, bilheterias expressivas e tudo mais. Obviamente que elas devem enfrentar alguns preconceitos para bancar os seus projetos, mas em termos de méritos artísticos, são bem posicionadas perante o público e a crítica e não precisam provar mais nada para ninguém. Não consigo imaginar diretoras do porte de Laís Bodansky ou Tata Amaral clamando por indicações e prêmios por seus trabalhos. A consagração já acontece, o que não deixa de ser uma situação notável em um país com tantos problemas rondando sua produção cinematográfica. Citaria fácil umas dez diretoras brasileiras que são reconhecidas aqui e no exterior e, no meio delas, estaria Suzana Amaral. A estreia da diretora aconteceu em 1985 com A Hora da Estrela, adaptação do livro lançado sete anos antes pela icônica Clarice Lispector - o qual viria a se tornar o último livro da escritora publicado em vida. Considerado um clássico do cinema nacional, o filme está entre  as melhores adaptações de um livro para o cinema e, o mais curioso, é que consegue transpor toda a alma da história para a telona sem precisar ser rigorosamente fiel ao livro. Ele já começa com a ousadia de cortar o narrador do livro, o que não é pouco, já que quem leu o livro sabe que o narrador é praticamente um personagem da história. Suzana deixou as imagens falarem por si só, valorizando os diálogos entre os personagens e, sobretudo as atuações de um elenco inspirado. Coube à então estreante Marcélia Cartaxo dar vida à protagonista, Macabéa, que aqui não vive no Rio de Janeiro, mas em São Paulo. Macabéa trabalha como datilógrafa num escritório, divide a casa com outras mulheres e  tem como maior passatempo ouvir a Rádio Relógio - anotando até em um caderninho com as informações que considera as mais interessantes. A vida de Macabéa segue sem grandes emoções, até que ela encontra um namorado, Olímpico (José Dumont), mas ele é tão grosseiro que fica difícil torcer para que os dois se acertem. Ela também tem uma amiga, Glória (a sumida Tamara Taxman) que é seu completo oposto e a vida e só ressalta o quanto a personagem está pouco confortável no mundo em que habita. Pelo papel de Macabéa, Marcélia foi premiada no Festival de Berlim e seu trabalho é notável pela vulnerabilidade que transborda da personagem, transmitindo uma inocência quase infantil ao mesmo tempo que mo termina cada frase como se pedisse desculpa pela própria existência. Pela magistral condução dos seu elenco, que torna cada personagem cheio de camadas e de difícil julgamento, Suzana se tornou um dos maiores nomes do cinema nacional. A narrativa um tanto áspera com contraste às esperanças de sua protagonista ainda é bastante vivaz e faz jus ao estilo de Clarice Lispector descrever o que ela chamava de geografia interior de suas criações sem perder a sensibilidade diante delas (vale lembrar que estou falando da verdadeira Clarice, não aquela farsante de memes em redes sociais). Apesar da trilha sonora datada, o filme envelheceu bem e ao assistí-lo só lamentamos o fato de Suzana filmar tão pouco. Em 33 anos de carreira, a cineasta realizou apenas quatro filmes, sendo que o último (Hotel Atlântico/2009) dividiu opiniões pelo seu tom assumidamente inspirado em David Lynch. Suzana tem oitenta e cinco anos, formou-se na Escola de Comunicação e Arte da USP e fez pós-graduação em cinema na Universidade de Nova York e gosta de fazer filmes bastante diferentes um do outro. Por conta disto, é capaz de surpreender mais do que muitos jovens cineastas que estão por aí.

Suzana Amaral

A Hora da Estrela (Brasil - 1985) de Suzana Amaral com Marcélia Cartaxo, José Dumont, Tamara Taxman Sonia Guedes e Fernanda Montenegro. ☻☻☻

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