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Grant: labirinto retórico que funciona. |
Herege (Heretic / EUA - Canadá / 2024) de Bryan Woods e Scott Beck com Hugh Grant, Sophie Tatcher, Chloe East, Topher Grace, Elle Young e Elle McKinnon. ☻☻☻
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Grant: labirinto retórico que funciona. |
Herege (Heretic / EUA - Canadá / 2024) de Bryan Woods e Scott Beck com Hugh Grant, Sophie Tatcher, Chloe East, Topher Grace, Elle Young e Elle McKinnon. ☻☻☻
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Liyo e Stefan: de humanos e musgos. |
Confesso que tenho um pouco de dificuldade em acompanhar as narrativas dos filmes do belga Bas Devos. Sei que ele tem fãs ao redor do mundo e realmente os admiro por enxergar atrativos em suas narrativa quando, na maioria das vezes, o que geram é minha desatenção. Tenho um amigo que é muito fã do cinema de Devos e vê-lo falar tão entusiasmado do último filme do cineasta (que acabou de chegar no Filmicca), tornou assistir Here uma verdadeira questão de honra. O curioso foi que se tornou o primeiro longa do diretor que consegui assistir completo (como ele possui apenas quatro longas no currículo, talvez eu possa dar uma segunda chance aos outros). Se não fosse o comentário do tal amigo, mais uma vez, eu não veria nada demais na história que temos aqui: Stefan (Stefan Gota) é um trabalhador da construção civil que está prestes a sair de férias e ir visitar à família na Romênia. Paralelo a isso conhecemos Shuxiu (Liyo Gong), que leciona microbiologia na faculdade de manhã e ajuda a tia em um restaurante chinês à noite. Se ele habita um ambiente urbano, com muitos prédios e concreto (ampliado pelos planos abertos utilizados pelo diretor), Shuxiu volta-se cada vez mais para o micro, um universo tão pequeno em comparação aos arranha-céus que passa desapercebido pela grande maioria das pessoas. O encontro dos personagens faz com que a narratia estabeleça uma espécie de zoom, que vai da construção de um prédio na cidade, passando para os núcleos familiares de seus personagens até chegar ao estudos de Shuxiu sobre musgos. Não é por acaso que o roteiro explora o encontro de um rapaz que está de férias e volta às suas origens e uma microbiologista de origem estrangeira. Existe entre os dois uma busca por conexão com os lugares que habitam (e com o mundo em si) e o diretor estabelece um quase romance entre os dois personagens de forma bastante discreta e singela, mas que não deixa de ter uma certa sensualidade ao explorar o sorriso irresistível de Shuxiu ou as pernas sempre à mostra de Stefan (a quem a personagem se refere como "o rapaz de short"). Bas Devos sempre mostrou-se um diretor que gosta de criar belas imagens, muitas vezes estando mais preocupado com a estética dos filmes do que com seus roteiros. Aqui ele consegue conciliar isso de forma quase terapêutica, estabelecendo uma viagem do macro ao micro da vida na Terra, seja da vida dos seres humanos em seus encontros, idas e vindas ou da presença de musgos que irão herdar o mundo quando as pessoas partirem. Essa sensação de respiro que o filme proporciona rendeu no Festival de Berlim o prêmio de melhor longa na mostra Encounters, do qual saiu também com o prêmio da crítica.
Here (Bélgica - 2024) de Bas Devos com Stefan Gota, Liyo Gong, Cédric Luvuezo, Teodor Corban, Saadia Bentaïeb, Alina Constantin e ShuHuan Wang. ☻☻☻
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Um Simples Acidente: Palma de Ouro em Cannes 2025. |
Parece que o páreo da 78ª Edição do Festival de Cannes foi acirrado! Ouvi tantos comentários entusiasmados da crítica sobre os filmes exibidos que foi difícil prever quem seria o ganhador. No fim das contas, o apelo do cinema iraniano clandestino de Jafar Panahi prevaleceu. Com isso, Panahi se tornou o raro tipo de diretor que conquista os principais prêmios dos maiores festivais de cinema do mundo (antes, ele já recebeu o Leão de Ouro por Taxi Teerã/2015 no Festival de Berlim e o Leão de Ouro no Festival de Veneza por O Círculo/2000). Se muitos apontavam o novo de Joachin Trier como o favorito, ele ficou com um honrado segundo lugar com o Grande Prêmio do Júri (que este ano foi presidido por Juliette Binoche e contava ainda com nomes como Halle Berry, Alba Rohrwacher e Jeremy Strong). O representante brasileiro não levou o prêmio principal mas não fez feio, levando três prêmio importantes que selam seu passaporte no início de sua repercussão na temporada. Abaixo todos os premiados do maior Festival de Cinema no mundo... (e já podemos começar a campanha do Wagner para melhor ator no Oscar do ano que vem?):
Muitos consideram o cineasta Kiyoshi Kurosawa um mestre do terror japonês. Dirigindo desde a década de 1970, ele acumula vários títulos que são dignos de culto pelos fãs. Um deles é este intrigante A Cura, que foi lançado em uma época em que os serial killers cinematográficos estavam em alta em produções de Hollywood - e se David Fincher soube fazer a diferença com Se7en (1995), dois anos depois, Kurosawa (que não tem nenhum parentesco com o Akira Kurosawa) também soube deixar a plateia hipnotizada com o suspense de sua trama. O filme conta a busca do detetive Kenichi Takabe (Kôji Yakusho) pela relação que existe entre uma série de crimes cometidos por pessoas diferentes em circunstâncias semelhantes. No entanto, alguns elementos demonstram que os crimes possam ter uma relação entre si. Seus autores eram pessoas inofensivas que, subitamente, sem maiores explicações, assassinaram pessoas próximas. O interessante é que a trama conta esta história de uma forma diferente, ao invés de manter o foco somente no detetive, a narrativa parece um tanto dispersa no início, apresentando vários personagens e, aos poucos, nos damos conta do painel traçado como se fosse um mapa das pistas que levarão até o provável responsável pelas atrocidades. Quando ele aparece (um ótimo trabalho de Masato Hagiwara), esquecido, perdido, sem identidade, somos incapazes de dizer do que aquele jovem é capaz de fazer - mas não demora para que possamos perceber o quanto aquela figura difusa é ameaçadora. Em determinados momentos o detetive parece até mais ameaçador do que o rapaz de fala macia e conversas enigmáticas. Colocando o vilão emaranhado na mente de seus "cúmplices", o filme assume riscos que o torna ainda mais estimulante e surpreendente, deixando os caminhos do detetive tão imprevisíveis quanto os crimes cometidos. Não por acaso, o final lembraria o filme de Davi Fincher se o roteiro não se esticasse mais um pouco e apresentasse que ameaça pode estar em qualquer lugar. Vendo o filme lembrei de uma conversa sobre Longlegs/2024 em que dois alunos (que curtem muito cinema) me recomendaram este filme que não estava disponível em streaming algum (agora está fresquinho no Filmicca). Kiyoshi Kurosawa faz um filme seco e até elegante perante a atmosfera psicológica que emana desde os momentos iniciais.
A Cura (Cure/Kyua - Japão/1997) de Kiyoshi Kurosawa com Kôji Yakusho, Masato Hagiwara, Tsuyoshi Ujiki, Anna Nakagawa, Yoriko Dōguchi, Yukijirō Hotaru e Ren Osugi. ☻☻☻☻
Sebastião Ribeiro Salgado Júnior nasceu na cidade de Aimorés em Minas Gerais. Graduou-se em Economia na Universidade do Espírito Santo, realizou mestrado na Universidade de São Paulo e doutorado na Universidade de Paris. Economista de formação, inicialmente trabalhou como secretário para a Organização Internacional do Café (OIC). Sua primeira sessão de fotos foi nos anos 1970 e o inspirou a ser fotojornalista independente. Depois de passagens por agências de fotografia renomadas, passou a ser ainda mais reconhecido por seus livros de fotojornalismo que se tornaram referências mundiais. O seu olhar crítico social fez de obras como Êxodos (sobre os movimentos migratórios) sucessos editoriais. Salgado contribuiu ao longo dos anos com causas humanitárias, trabalhando ao lado da UNICEF, ACNUR, OMS, Médicos sem Fronteiras e Anistia Internacional. Junto à esposa, Lélia Wanick, apoiaram o Instituto Terra em causas de reflorestamento. O engajamento do fotojornalista gerou o documentário O Sal da Terra (2014) dirigido pelo alemão Win Wenders que ganhou o César de Melhor Documentário e foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
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Nicole e Harris: o sexo subvertendo hierarquias. |
Ano passado houve um verdadeiro congestionamento de estrelas na disputa por uma vaga ao Oscar de melhor atriz. Alguns deles estavam no páreo do Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama, dentre elas, quatro ganharam os holofotes da mídia no Festival de Veneza do ano passado: Angelina Jolie, Tilda Swinton, Fernanda Torres e Nicole Kidman. Dentre elas, a premiada foi a brasileira que se tornou a única do páreo a cravar uma indicação ao Oscar na temporada. No entanto, perante o júri de Veneza foi Kidman a ser considerada a melhor interpretação feminina. Era para tanto? A atriz interpreta Romy, uma executiva poderosa de uma empresa conceituada, ela vive uma vida confortável ao lado do esposo (Antonio Banderas) e das filhas (Esther McGregor e Vaughan Reilly). Ela fica surpresa ao descobrir que foi inscrita em um programa de monitoria para estagiários. Para piorar (ou melhorar, depende...), ela se depara com Samuel (Harris Dickinson), um jovem, digamos, insolente. Não demora muito para que se instaure um jogo de sedução entre os dois, nele o rapaz subverte a estrutura de poder da empresa. Fica claro desde o início que ele ditará as regras nos encontros e nas relações sexuais estabelecidas entre eles. A parte mais curiosa do filme dirigido e escrito pela holandesa Halina Reijn é que Romy embarca naquele jogo sem paraquedas, explorando aspectos de sua sexualidade que preferiu manter em segredo até mesmo de seu marido. Conforme ela se envolve cada vez mais com o jovem amante, algumas surpresas aparecem pelo caminho. O filme sabe utilizar bem a plasticidade de Nicole para explorar o que se esconde por baixo da aparência gélida da personagem, de certa forma, mas o mesmo com a aparência "certinha" de Dickinson, que constrói um personagem imprevisível justamente por não ter o que perder. No entanto, quem espera cenas de sexo explícito irá se frustrar, já que Reijn opta por uma abordagem mais sutil da relação tórrida entre os personagens. O filme escorrega aqui e ali em vários clichês do gênero, especialmente na parte em que outros personagens começam a perceber o que acontece entre a executiva e seu estagiário. Diante disso, Nicole carrega o filme nas costas com uma personagem em constante conflito com seus desejos. Para quem conhece a filmografia da diretora Halina Reijn é inevitável não lembrar de seu primeiro longa-metragem, Instinto (2019), em que explorava a atração de uma psicóloga com um detento da penitenciária em que trabalha. Mudando as características e um tanto da posição de seus personagens em meio às relações profissionais, Babygirl soa quase como o passo seguinte à estreia da diretora. Embora seja menos impactante que seu antecessor, o resultado ainda é uma obra interessante para tempos tão conservadores.
Instinto (Países Baixos - EUA / 2025) de Halina Reijn com Nicole Kidman, Harris Dickinson, Antonio Banderas, Sophie Wilde, Esther McGregor, Victor Slezak, Leslie Silva e Robert Farrior. ☻☻☻
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Putthipong e Usha: herança familiar. |
M (Putthipong Assaratanakul) é um jovem tailandês que acaba de deixar a faculdade e não parece interessado em nada além de videogames. No início do filme ele participa com a família do que seria uma espécie de Dia de Finados do seu país. Naquele dia, sua avó, Mengju (Usha Seamkhum) contou para a família que gostaria de ser enterrada em um grande terreno que custa uma fortuna fora de seu alcance. Ninguém imaginava que naquele mesmo dia ela seria levada ao hospital por conta de uma queda e que, apesar de não ter sofrido nada demais com o tombo, através dos exames irão descobrir que ela está com câncer em fase terminal. A família resolve manter em segredo o diagnóstico, mas M percebe ali a oportunidade de cuidar da avó e ganhar algo de uma herança iminente. O rapaz começa então sua jornada para conquistar a exigente avó para receber algo em troca. No entanto, o que era para ser um jogo de interesses, recebe outras camadas conforme os laços entre os dois voltam a se estreitar depois de tanto tempo. Na convivência com a avó, M começa a mudar seu olhar sobre a dinâmica da família e percebe outras nuances na relação entre seus tios e a avó, além da própria dinâmica entre sua mãe e a matriarca. Se a dinâmica entre avó e o neto já deixa o filme gradativamente mais interessante, a produção se torna ainda mais rica quando envolve as relações entre os outro personagens e questões sobre envelhecimento e solidão. Por conta disso, nem precisa dizer que o filme se torna cada vez mais emocionante e ainda reserva algumas surpresas ao longo da sessão. Todos estão ótimos em cena, mas o destaque mesmo fica por conta de Putthipong Assaratanakul e Usha Seamkhum na pele de neto e avó que estabelecem uma dinâmica de sensibilidade crescente entre os personagens, da primeira até a última cena. Embora seja dirigido pelo estreante Pat Boonnitipat (que sabe o momento exato de utilizar momentos melodramáticos na trama), o filme demonstra bastante equilíbrio em conciliar drama com um tempero cômico ao longo da narrativa. Em cartaz na Netflix, o filme se tornou o longa tailandês de maior bilheteria mundial e foi selecionado pelo país para concorrer à uma vaga na última edição do Oscar na categoria de Filme Internacional, chegando à avançar nas pré-listas, mas ficou de fora dos cinco escolhidos.
Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra (Lahn Mah / Tailândia - 2024) de Pat Boonnitipat com Putthipong Assaratanakul, Usha Seamkhum, Sanya Kunakorn, Pongsatorn Jongwilas, Jear Sarinrat Thomas, Tontawan Tantivejakul e Duangporn Oapirat. ☻☻☻☻
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Babak: um clássico do cinema iraniano. |
Pode se dizer que Onde Fica a Casa do Meu Amigo de Abbas Kiarostami desencadeou uma onda de interesse pelos filmes iranianos. Nos anos seguintes vários filmes feitos no país receberam destaque mundial e seu tornaram cults com suas histórias singelas e realistas executadas para abordar temáticas amplas sobre aquele país. É a ideia do micro, falando do macro. Durante todo o longa o que vemos é a inocência e a amizade de duas crianças em confronto com o mundo dos adultos em suas asperezas. É assim que acompanhamos a jornada de Ahmed (Babak Ahmadpoor), um menino que desde a primeira cena sofre ao ver o amigo levar uma bronca do severo professor por não ter usado o caderno para fazer a lição. Kiarostami parece nos colocar no meio da agitação daquela sala de aula e nos deixa aflitos diante da situação, compartilhamos assim a mesma indignação do pequeno protagonista naquele contato com aquela personificação da autoridade e da disciplina. Acontece que na saída da escola naquele dia, Ahmed leva o caderno do amigo para casa por engano e ficara angustiado para entregá-lo. Se a mãe considera que aquela história é só uma desculpa pra os dois brincarem o dia todo, o garoto irá partir em uma verdadeira odisseia para encontrar a casa do amigo e entregar o caderno a tempo dele fazer a lição para o dia seguinte. A cada pessoa que o menino encontra, a cada situação que enfrenta, o que vemos é uma espécie de um denso encontro de gerações. O filme segue carregado da tensão de Ahmed (valorizada ainda mais pelos olhos reluzentes do menino que o interpreta) e a certa altura ficamos aflitos não apenas sobre a entrega do bendito caderno, mas também sobre seu paradeiro e seu retorno para a casa. A ideia de construir uma espécie de suspense a partir dos dramas de seus personagens se tornou uma marca do cinema iraniano e um dos motivos para se tornar tão envolvente, mesmo que os acontecimentos aqui soem dispersos, a tensão permanece até o fim. Teóricos e críticos de cinemas consideraram esta a primeira parte de uma trilogia na cinematografia de Kiarostami, que ficou conhecida como Trilogia Koker (o nome do vilarejo em que a trama acontece). No filme seguinte (E A Vida Continua/1992) vemos a busca dos meninos protagonistas de Onde Fica a Casa do Meu Amigo sob o receio de terem falecido no terremoto que aconteceu em 1990 que vitimou 50.000 pessoas ao norte do Irã e Através das Oliveiras retoma uma cena do segundo filme para construir uma narrativa em destaque. Kiarostami se tornou um os diretores mais importantes do cinema desde então.
Onde Fica a Casa do Meu Amigo (Khane-ye doust kodjast? / Irã - 1987) de Abas Kiarostami com Babak Ahmadpour, Ahmed Amadpour, Iran Outari, Khodabaksh Defai, Ayat Ansari e Teba Soleimani. ☻☻☻☻
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Jan Gunnar Røise: relacionamento em conflito. |
Avdelingsleder (Thorbjørn Harr) é o chefe de Feier (Jan Gunnar Røise) no trabalho de limpeza de chaminés. Entre um trabalho e outro os dois começam a conversar sobre um sonho que deixou Avde intrigado. Ele sonhou que David Bowie o observava como se apreciasse uma mulher. Ainda que fosse um sonho, a sensação vivenciada por ele foi muito real e o deixou pensativo. Ele não imaginava que após relatar o sonho, o colega iria lhe confidenciar que transou com um homem pela primeira vez no dia anterior. Vale ressaltar que ambos se consideram heterossexuais, são casados com mulheres e possuem filhos numa estrutura familiar bastante convencional e sem maiores conflitos, pelo menos até aquele momento. Feier conta com bastante naturalidade sobre o ocorrido, da mesma forma que contou para a esposa sobre a experiência e acreditou estar tudo bem, afinal, para ele traição seria manter um relacionamento afetivo com alguém fora do casamento, o que não é o caso. Porém, Feier não imaginava que sua esposa, Lege (Anne Marie Ottersen), começaria a questionar um casamento que aparentava total estabilidade. O primeiro filme da trilogia Sex Love Dreams de Dag Johan Haugerud já demonstra que o diretor quer fazer a plateia embarcar em uma reflexão sobre os temas que dão título aos filmes do projeto. Não quer apontar respostas, dizer quem está certo ou errado, mas fazer a cabeça do espectador fermentar perante as ações dos personagens. Ao longo do filme Feier, que parecia tão confiante com sua primeira experiência sexual com outro homem, começa a perceber como isso afeta seu relacionamento com a esposa - além disso, um certo temor começa a se instaurar sobre a percepção que as pessoas possuem dele. Embora ele repita o tempo inteiro que não é gay (da mesma forma que ressalta que beber cerveja não o torna um alcoólico) suas interações com a esposa se tornam cada vez mais difíceis em conversas sobre ciúme, desejo e fidelidade. O ator Jan Gunnar consegue dar conta do personagem em conflito por um viés inusitado, seu rosto de certinho, sua expressão sempre acanhada e uma certa ausência de sex appeal nos desperta uma sensação diferente ao tentar julgá-lo e por vezes gera risos nervosos, como naquele momento em que a esposa pede para que conte (em detalhes) como foi fazer sexo com outro homem. Aos poucos a dinâmica entre os dois se torna uma tortura psicológica, ela cada vez mais cortante e ele cada vez mais esquivo, dando a impressão que somente a demonstração de alguma culpa (algo que ele não apresenta no início) será capaz de amenizar a tensão instaurada. Fosse só a trama de Feier em crise o filme já seria interessante, mas o texto escorrega ao ter de lidar com os sonhos do outro homem da trama. Sem saber muito para onde ir com Avdelingsleder (que nome difícil para um personagem), o que poderia ser uma discussão interessante sobre gênero e religiosidade (este um tema que rende um dos diálogos mais inusitados do filme) fica pelo meio o caminho. Duas curiosidades sobre o filme: ele não possui cenas de sexo e conta com uma pequena participação de Bjorn (Lars Jacob Holm), que recebe mais destaque em Love, o segundo filme da trilogia. O fato é que o longa me deixou ainda mais curioso para ver a terceira parte da trilogia, Dreams, que ainda não tem previsão de estreia por aqui.
Sex (Sex / Noruega - 2024) de Dag Johan Haugerud com Thorbjørn Harr, Jan Gunnar Røise, Siri Forberg, Anne Marie Ottersen e Birgitte Larsen. ☻☻☻☻
Quando soube que estavam produzindo uma cinebiografia sobre Ney Matogrosso eu fiquei um tanto receoso, já que todo mundo já deve estar cansado daquelas biografias protocolares sem sal de colagem de fatos soltos sobre a vida de um artista conhecido, mas que não carrega nada da identidade do retratado. Poucos filmes se salvam da seara do gênero, se pegarmos os filmes brasileiros, basta ver o bom resultado de Dois Filhos de Francisco (2005) em contraposição com a decepcionante Meu Nome é Gal (2018). Vale ressaltar que não estou discutindo gosto musical por aqui, mas estou falando de cinema e sua capacidade de contar histórias bem construídas em uma narrativa envolvente. Eu comecei a ficar animado com Homem com H por conta do projeto ser idealizado por Esmir Filho, um cineasta para prestarmos atenção desde sua estreia com o atmosférico Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), depois eu soube que escalaram Jesuíta Barbosa para viver o artista na telona, mas fiquei preocupado, já que sempre percebi Jesuíta um ótimo ator para viver personagens contidos que vivem seus conflitos de forma mais internalizada, não consegui nem imaginar o ator pernambucano convencendo no palco com os Secos e Molhados, por exemplo. Sorte que o rapaz realizou uma preparação física poderosa e está perfeito como Ney Matogrosso, encarnando sua pessoa discreta fora dos palcos e aquela persona mítica dos palcos (tanto que em algumas cenas eu fiquei pensando se eram cenas de arquivo ou com o ator). Melhor ainda constatar que Esmir Filho emoldura a performance arrebatadora do seu protagonista com uma produção de respeito. Pra começar, ele não se esquiva de abordar a sexualidade de seu biografado, seja nos palcos ou fora dele, o filme transborda uma energia sexual para lá de envolvente, seja pelos movimentos no palco, a vida de Ney com seus parceiros ou com o uso das letras para emular sentidos que por vezes até esquecemos por julgar que as conhecemos tão bem. Particularmente adorei a parte dedicada à música que dá nome ao filme, confesso que fiquei hipnotizado com a montagem desta parte - vale ressaltar que a edição é perfeita em sua alternância de ritmo sem perder a fluência entre as cenas mais dramáticas e, digamos, as mais... eufóricas. O longa usa sucessão de episódios importantes sobre a vida do cantor par subverter a própria fórmula, ele nunca perde o seu fio condutor amparado pela relação de Ney com a arte, a construção de sua identidade artística intensa e sua personalidade serena, além do espectro do tempestuoso relacionamento com o pai (vivido por Rômulo Braga). O cuidado de Esmir Filho em suas escolhas para tecer a trajetória de Ney na telona é de um cuidado minucioso, construindo um arco emocional que não se rompe ao longo de duas horas e envolve o espectador com um personagem transgressor, instigante e necessário para os tempos caretas que atravessamos. Ao final do filme, Ney (que participou ativamente das filmagens) surge radiante com seus 83 anos e nos faz pensar no conceito de imortalidade não apenas de sua voz única. Para os fãs (como eu) é um verdadeiro deleite, para quem não é, torna-se apenas obrigatório.
Homem com H (Brasil / 2025) de Esmir Filho com Jesuíta Barbosa, Rômulo Braga, Hermila Guedes, Bela Leindecker, Jeff Lyrio, Bruno Montaleone, Mauro Soares, Jullio Reis e Ney Matogrosso. ☻☻☻☻
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28 de dezembro de 1953 ✰ 06 de maio de 2025 |
James Foley nasceu no Brooklyn em Nova York. Filho de um advogado, James se formou em psicologia, mas ao iniciar seus trabalhos na profissão, decidiu fazer filmes e foi estudar na Universidade da California. Em 1984 estreou na direção com Jovens Sem Rumo estrelado por Aidan Quinn e Daryl Hannah, dois anos depois seu filme Caminhos Violentos, estrelado por Sean Penn. O longa foi selecionado para o Festival de Berlim, mas ficou mais conhecido pela inclusão do hit Live to Tell de Madonna na trilha sonora. Foley ficou famoso por seus vários trabalhos com a artista, com quem fez clipes (ao todo foram seis), shows e um filme (um clássico da Sessão da Tarde: Quem é Essa Garota? de 1987). Embora nunca tenha sido levado muito a sério como cineasta, Foley rendeu uma indicação ao Oscar para Al Pacino por O Sucesso A Qualquer Preço (1993), foi responsável por um dos primeiros papéis de destaque de Reese Whiterspoon e Mark Wahlberg (em Medo/1996), além de ter trabalhado com Gene Hackman (O Segredo/1996) e Halle Berry (A Estranha Perfeita/2007). Foley também dirigiu episódios para séries famosas como Twin Peaks, Hannibal, House of Cards e Billions. Seus últimos trabalhos no cinema foram os sucessos bregas de 50 Tons Mais Escuros (2017) e 50 Tons de Liberdade (2018). O diretor faleceu em decorrência de um tumor cerebral.
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Andrea e Thomas: coisas do amor no século XXI. |
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Adam e Sebastian: a aparência em crise de identidade. |
Edward (Sebastian Stan) é um ator com neurofibromatose e, por conta dos inúmeros tumores benignos que desenvolve, sua aparência tornar-se bastante peculiar. Existe uma grande frustração em Edward já que tudo ao seu redor é pautado pela forma com que as pessoas reagem à sua condição. Dos trabalhos para os quais é escolhido à forma como as pessoas interagem com ele, tudo é vivenciado com bastante desconforto. Até quando ele começa a se aproximar da vizinha Ingrid (Renate Reinsvie), a aparência se torna um impeditivo para qualquer investimento que o relacionamento avance para algo maior. Na esperança de haver alguma mudança em sua vida, Edward aceita participar de um tratamento experimental para a doença em questão. Edward sempre imagina que na pesquisa ele ficou com o grupo de controle que tomará os placebos, mas se surpreende quando percebe que seu rosto está se deteriorando até que... um novo rosto surja abaixo do antigo. Animado com as possibilidades de sua nova aparência, Ed assume uma nova identidade, mas a coisa desanda quando reencontra Ingrid em seu novo projeto e existe a estranha sensação que a ruptura com sua antiga vida lhe causou danos nunca imaginados. Muito do interesse que nutri pelo filme, surgiu da forma como me esquivei de saber maiores informações sobre a trama e me surpreendi bastante com os rumos que o diretor e roteirista Aaron Schimberg escolheu para construir a história. Misturando um tanto de metalinguagem e crise de identidade, o filme mergulha cada vez mais nos conflitos do protagonista que perdeu de si mesmo no meio do caminho. Neste processo, seu contato com o confiante Oswald (Adam Pearson, um ator que realmente possui neurofibromatose) tornará sua nova vida ainda mais complicada. Sebastian Stan está ótimo no papel principal, com ou sem a maquiagem pesada (indicada ao Oscar) ou a máscara que usa em algumas cenas, a forma como atua com seus gestos, voz e posturas deixam claro o quanto seu personagem está passando por uma crise de identidade fortíssima. Seu prêmio de atuação no Festival de Berlim foi merecido, assim como o Globo de Ouro de ator de comédia ou musical (curiosamente, a categoria feminina ficou com Demi Moore por A Substância que encontra semelhanças com este outro aqui em sua abordagem da destruição do selfie). Este é o tipo de filme que ao terminar eu fico imaginando de onde o seu criador conseguiu tamanha inspiração. Ajuda a entender o fato de que Schimberg nasceu com lábio leporino e, assim como visto em seu filme anterior (Acorrentado para a Vida/2018 também estrelado por Adam Pearson) curte explorar temáticas sobre, digamos, aparências diferentes. Misturando humor negro, psicologia, drama e um tantinho de body horror, Um Homem Diferente merece uma vaga na lista de meus favoritos do ano.
Um Homem Diferente (A Different Man / EUA - 2024) de Adam Schimberg com Sebastian Stan, REnate Reinsvie, Adam Pearson, C. Mason Wells, Owen Kline, Charlie Korsmo, Patrick Wang e Michael Shannon. ☻☻☻☻
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29 de abril de 1941 ✰ 1º de maio de 2025 |
Nascida na cidade do Rio de Janeiro, o talento musical de Dinahir Tostes Caymmi começou cedo. Filha do compositor, cantor e músico Dorival Caymmi e da cantora Stella Maris, Nana começou sua carreira artística nos anos 1960 quando gravou a faixa Acalanto ao lado do pai, a canção tem um significado ainda mais especial já que foi composta para ninar a cantora quando ainda era criança. Seu primeiro LP foi lançado em 1963. Em 1966 participou do I Festival Nacional da Canção e desde então o tom solene de sua voz grave se tornou sinônimo de um dos maiores talentos da música brasileira. Seus álbuns, parcerias e espetáculos fizeram história. Canções como "Só Louco", "Não se esqueça de Mim", "Suave Veneno" e o enorme sucesso de "Resposta ao Tempo" se mostraram atemporais. Ao longo da carreira Nana lançou 68 álbuns e se consagrou como um dos grandes nomes da MPB. A artista faleceu em decorrência de disfunção de múltiplos órgãos após um longo período de internação.
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Matt e Deragh: relacionamento do passado no presente. |
Depois de dirigir curtas e programas de TV desde os anos 1990, Joanna Hogg estreou na direção com Sem Relação (2007), filme em que uma convidada em crise no casamento flerta com o filho da anfitriã e expõe as fissuras nas relações daquela família. Em seu filme seguinte, Arquipélago, a diretora revisita as fissuras de uma família, mas desta vez, as fissuras não ficam aparentes devido a interferência de alguém de fora, mas surgem de dentro para fora quando um dos membros ensaia uma despedida. O membro em questão é Edward (Tom Hiddleston que interpretava o filho sedutor do filme anterior da diretora), ele está prestes a embarcar para ser voluntário na África na orientação de adolescentes sobre suas vidas sexuais. Ele ficará fora por longos meses e, para realizar uma espécie de despedida, a mãe, Patrícia (Kate Fahy) resolve se reunir com o filho e a filha, Cynthia (Lydia Leonard) em uma antiga propriedade da família na Sicília. Durante os dias em que o trio passará à beira mar, eles terão a companhia da jovem cozinheira Rose (Amy Lloyd) e do professor de pintura Christopher (Christopher Baker), que ajudará mãe e filha a passar o tempo transformando o ócio em algo criativo. Se no primeiro filme Hogg já lidava com o risco de aparentemente não ter nada acontecendo até que a trama se revela, em Arquipélago a coisa se torna ainda mais complicada, já que o ócio é o que move o filme. É a estranha sensação de que não existe nada a fazer que escancara a ideia de que nada acontece durante boa parte do filme. No entanto, os diálogos e situações servem justamente para acentuar o distanciamento entre os membros daquela família, de forma que são estes personagens que compartilham a mesma árvore genealógica que compõem o arquipélago a que o título se refere (e pode adicionar até o pai ausente que não se houve sequer a voz em uma ligação regada à estresse). Aos poucos entendemos a história daquela família e como se tornaram pessoas desconectadas entre si. Não é por acaso que Christopher, prestes a viajar por um longo período (mesmo sem ter certeza se realmente deseja fazer aquilo) passa a maior parte do tempo conversando com a cozinheira - já que acatou a ideia de não levar a namorada para o encontro familiar interminável. Também é sintomático que a irmã sempre pareça insatisfeita, reclamando de tudo e com análises frias sobre qualquer situação apresentada por seus familiares, ou que a mãe comedida exploda toda vez que algo lhe foge ao controle (seu momento de maior paz é quando pinta um quadro cinzento no conforto do quarto com um vendaval revelado fora da casa revelado pela janela). Mesmo sob o risco de entediar a plateia, Hogg confirma aqui seu gosto por retratar o tédio e a insatisfação de uma família que não precisa se preocupar com dinheiro para pagar as contas no fim do mês. Pode não ser um filme empolgante (apesar que parte da plateia pode se empolgar ao ver o intérprete de Loki tirar as calças diante da câmera sem qualquer cerimônia) ou que você guarde na memória por muito tempo, mas acredito que esta narrativa arrastada é a proposta da diretora ao retratar um encontro de pessoas que viveram debaixo do mesmo teto por muito tempo e não fazem questão de permanecerem tão próximas novamente.
Arquipélago (Archipelago / Reino Unido - 2010) de Joanna Hogg com Tom Hiddleston, Kate Fahy, Amy Lloyd, Christopher Baker e Will Ash. ☻☻
Ano passado Nicole Kidman recebeu mais um prêmio importante para sua carreira, foi eleita a melhor atriz do Festival de Veneza (desbancando Fernanda Torres e Tilda Swinton) por seu trabalho em Babygirl. A atriz renomada embarcou então em mais uma campanha para conseguir mais uma indicação ao Oscar (seria a sexta vez que concorreria ao prêmio, sendo que já possui uma estatueta por seu belo trabalho em As Horas/2002), acho que o não lançamento de Holland nos cinemas tem relação com sua campanha por Babygirl, já que o longa metragem lançado diretamente no Prime Video é um dos mais frustrantes da carreira recente da atriz. Quem acompanha carreira de Nicole sabe que ela também adora produzir minisséries para a TV, geralmente baseada em best-sellers repletos de suspense em que ela desconstrói a imagem de uma família perfeita. Ela faz isso novamente neste filme dirigido por Mimi Cave em seu primeiro projeto após o elogiado Fresh (2022). Mais uma vez a cineasta constrói um suspense temperado com um senso de humor estanho, só que ao contrário de seu filme anterior, aqui, a narrativa soa emperrada e sem graça perante as promessas que apresenta de início. O título se refere à uma cidade pequena e aparentemente perfeita como suas tulipas. Lá vive Nancy (Nicole Kidman), uma professora obcecada pelo que é saudável (beira a chatice mesmo). Ela é casada com o optometrista Fred (Matthew MacFadyen) e leva uma vida pacata ao lado do filho, Harry (Jude Hill). No meio de tanta perfeição de uma família de comercial de margarina, Nancy começa a ficar intrigada com as constantes viagens do marido para congressos e palestras profissionais. Junto ao amigo professor de marcenaria, Dave (Gael García Bernal), ela começa a investigar o marido, disposta a descobrir os motivos de tantas viagens. Com quase duas horas de duração, o filme demora a engrenar e fica mais interessante no segundo ato em que a esposa perfeita percebe-se doida para ter um caso com o amigo professor enquanto acredita que o esposo a trai. No entanto, para ela a situação do marido é pior, já que ela acredita que por conta de algemas e fotos proibidas, ele é na verdade um pervertido cheio de fetiches - mas a coisa é bem pior. O tom caricatural faz tudo parecer coisa da cabeça da protagonista, mas o filme surge com uma guinada violenta e fica um tanto desconjuntado dali em diante ao lidar com o caso entre Nancy e Dave ou o que mais quer que aconteça. Há quem considere interessante a "surpresa" da trama, mas eu achei que o filme fica completamente perdido dali em diante até um desfecho confuso e insatisfatório. Embora considere um grande desperdício de um bom elenco (tem até uma participação miudinha de Rachel Sennott de Shiva Baby/2020), a produção tem uma estética caprichada e consegue trabalhar bem esta plasticidade no contraste com os pesadelos na mente dos personagens. Nada me tira da cabeça que Holland foi direto para o streaming para evitar arranhões na campanha pré-Oscar de Babygirl. Fosse lançado nos cinemas, o filme seria um fracasso e poderia até figurar no Framboesa de Ouro, no straming, com o nome de sua estrela no alto dos créditos, o filme se tornou o mais assistido ao redor do mundo em sua semana de lançamento.
Holland (EUA-2025) de Mimi Cave com Nicole Kidman, MAtthew MacFAdyen, Gael García Bernal, Jude Hill e Rachel Sennott. ☻☻
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Jon e Charlie: renascendo pelo meio do caminho. |
Vamos lá, vou tentar entender o que se passa na cabeça dos executivos da Marvel. Não é novidade para ninguém que desde Vingadores: Ultimato (2019) o estúdio perdeu totalmente o rumo e o que era amarradinho num universo cinematográfico com dezenas de produções, se tornou totalmente irregular sem fios condutores e atirando para todos os lados. Se a saga do multiverso não alcançou o resultado esperado, pelo menos serviu para agregar artistas que já haviam acertado em personagens dos quadrinhos em produções bancadas por outros estúdios. Este é o caso de Charlie Fox, que encarnou o Demolidor como manda o figurino em três temporadas dignas de nota bancadas pela Netflix. A terceira era um verdadeiro deleite, mas estreou com a tristeza de ser a última da gigante do streaming e com um futuro incerto. Os fãs fizeram tanto barulho que a Marvel na Disney+ ouviram as preces ruidosas e testaram para ver se o personagem funcionaria no MCU. Ele recebeu uma pontinha em Homem Aranha Sem Volta Para Casa/2021, flertou com She Hulk/2022 e emprestou algum charme para Echo/2024 até finalmente ter sua série retomada após sete anos. Queriam fazer algo totalmente diferente, viram que era um esforço desnecessário. Retomaram alguns personagens, algumas tramas, inventaram outras e ... no fim das contas a temporada de Demolidor Born Again precisou passar por algumas refilmagens. Como era de se esperar o resultado é um tanto desconjuntado. Existem tramas em excesso para dar conta, personagens demais para dar atenção e ao chegar no último episódio a sensação é que nada foi trabalhado como deveria. Mais uma vez a Marvel deixa tudo em aberto em nome de uma promessa do que vem pela frente que pode nunca chegar como tantas outras que vimos nas últimas produções do estúdio. Existem tantas pontas soltas atualmente no MCU que nada mais cria expectativa. Nesta temporada, O Senhor do Crime (Vincent D'Onofrio) acaba de voltar ao batente e consegue ser eleito prefeito da cidade. Sua política é contra os justiceiros mascarados que combatem o crime (e portanto colocam em risco seus negócios clandestinos). Matt Murdock sofre um trauma no primeiro episódio e aposentou sua carreira de herói. Passou a investir mais na vida de advogado e conseguiu uma estabilidade nunca imaginada. Por conta disso, a série se dedica mais aos meandros da política e da justiça, mas conduz os episódios com muito falatório até os episódios finais. Tem ainda um vilão novo para enfrentar, um namoro com uma psicóloga para desenvolver, o retorno do Justiceiro (Joe Berthal) que pelo menos é tratado com dignidade enquanto dá até tristeza ver o desperdício de Wilson Bethel de escanteio como Mercenário durante a temporada. Dos nove episódios, salvamos o primeiro, o do banco e os dois últimos, mas Demolidor Born Again deixa um gostinho de decepção, já que fica muito abaixo das temporadas da Netflix, e mais ainda se levarmos em consideração a brilhante terceira temporada. Para fazer de conta que a pegada será a mesma tem aquelas cenas de violência e sanguinolência para tapear, mas precisam avisar para os produtores que não era sobre isso. Falta cadência, fluência, roteiro, atmosfera e tudo que tornou aquelas temporadas um marco para as séries de heróis. Que a próxima seja melhor.
Demolidor Born Again (EUA-2025) de Dario Scardapane, Matt Corman e Chris Ord com Charlie Cox, Vincent D'Onofrio, Margarita Levieva, Jon Bernthal, Wilson Bethel, Deborah Ann Woll, Kamar de los Reyes, Michael Gandolfini e Ayelet Zurer. ☻☻
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Chalamet: cinco anos de preparo para viver Bob Dylan. |
Bob Dylan é um ícone não apenas da música, mas da arte em geral. Basta lembrar que ele é o único compositor a receber um Nobel de Literatura - e se você estranhou a informação, saiba que ele nem apareceu para receber o prêmio. Ele é uma dessas figuras tão enigmáticas que tudo colabora para que soe ainda mais genial. Suas composições atravessaram décadas e lidam diretamente com a história de seu país e do mundo em geral. Toda a importância de Dylan afetou diretamente toda a expectativa em torno do filme Um Completo Desconhecido e sua repercussão durante temporada de ouro. O fato do filme ser dirigido por James Mangold também ajudou na expectativa. Mangold já fez de tudo em Hollywood, incluindo o filme sério do Wolverine, o Logan/2017 (que foi indicado ao Oscar de roteiro adaptado), mas a biopic de Dylan se relaciona mais com outro filme do diretor, Johnny & June (2005) sobre outro icônico, Johnny Cash em seu relacionamento com June Carter. Quem comprou o projeto e investiu muito de si no filme foi Thimothée Chalamet, que se preparou por cinco anos para encarnar Bob Dylan nos primórdios de sua carreira, aos dezenove aninhos ao chegar em Nova York em 1961. Mangold volta sua câmera para os nomes da música que eram cultuados naquele período, havendo uma espécie de passagem de bastão dos consagrados na música folk como Pete Seger (Edward Norton), Woody Guthrie (Scoot McNairy) e Johnny Cash (Boyd Holbrook) para novos nomes como Joan Baez (Monica Barbaro) e o próprio Dylan nos palcos de festivais. Chalamet consegue ser bastante convincente ao evocar a postura do cantor, seu jeito de falar e aquele olhar bastante característico. Além disso, consegue sustentar em seu corpo franzino de adolescente (embora o ator esteja prestes a completar trinta anos em dezembro próximo) o espírito contestador que tornou Dylan famoso. Chalamet foi indicado a todos os prêmios da temporada (ganhou o Prêmio do Sindicato dos Atores pela performance e foi indicado ao Oscar), Edward Norton também foi lembrado e o Oscar aclamou Monica Barbaro com uma indicação ao prêmio de Coadjuvante por sua irresistível Baez. O elenco do filme é realmente um triunfo e ajuda muito quando o filme se torna repetitivo em necessitar das músicas de Dylan para prender a atenção do espectador. Em alguns momentos a trama se perde, dando a impressão que se esquivar das grande polêmicas do período (como a guerra do Vietnã e aprofundar nos ideais de contracultura), o que deixa passagens ocas ao investir no incômodo da namorada de Bob (vivida por Elle Fanning) em ter que lidar com um triângulo amoroso. Se nas atuações e na parte musical o filme se garante, o mesmo pode se dizer da reconstituição de época que cria uma ambientação correta para os personagens. Faltou mesmo foi um tantinho de História, aquela com H maiúsculo mesmo, para evidenciar a inspiração do protagonista em narrar em suas canções um mundo em que estava mudando. Talvez por conta disso, o filme tenha concorrido a oito estatuetas no Oscar (filme, direção, ator, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, som, roteiro adaptado e figurino) e não levou nada para a casa.
Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown/EUA-2024) de James Mangold com Thimothée Chalamet, Edward Norton, Elle Fanning, Monica Barbaro, Scoor McNairy, Boyd Holbrook e David Alan Basche. ☻☻☻
Ainda que tenha presidido o júri do último Festival de Berlim, o cineasta Todd Haynes ficou em evidência na mídia no ano passado por conta de todo imbróglio envolvendo Joaquin Phoenix em sua desistência de realizar um filme gay assinado pelo diretor com cenas tórridas. Reza a lenda que o projeto foi idealizado pelo próprio ator, mas que prestes a começar as filmagens, ele desistiu da produção deixando os envolvidos com um verdadeiro prejuízo nas mãos. Eu fico imaginando o que se passa na cabeça de um astro que convida Haynes para embarcar em um projeto e comete um papelão desses. Ainda que alguns dos filmes do cineasta tenham recebido indicações para o Oscar (ele mesmo indicado pelo roteiro original de Longe do Paraíso/2002), Todd Haynes é um nome que ganhou notoriedade moldado no cenário indie do cinema dos Estados Unidos. Começou a carreira assinando curtas sem concessões, dirigiu clipe para o Sonic Youth, estreou em longa metragem com a estética queer de Veneno (1991) e seu status só cresceu após A Salvo (1995) e Velvet Goldmine (1998), gerando projetos que flertaram cada vez mais com a nata de Hollywood. Antes de tudo isso, entre seus preciosos curtas, existe um que indicava ali um diretor audacioso digno de receber atenção nos próximos anos. Trata-se de uma biografia não autorizada de Karen Carpenter, a cultuada vocalista da dupla de irmãos cantantes The Carpenters. No entanto, para Haynes seria um tanto óbvio realizar o filme com atores, então, ele resolveu usar bonecas Barbie para contar a história. Passado o estranhamento inicial, chama a atenção como o diretor consegue driblar qualquer resquício cômico de parecer uma "brincadeira de bonecas" para expor aos espectadores a triste história da cantora ao lidar com a fama e seus holofotes (ou como diria Fernanda Montenegro: ao lidar com "a glória e seu cortejo de horrores"), aspectos que motivaram seus distúrbios alimentares e culminaram no falecimento em decorrência da anorexia nervosa. A carreira de Karen começou quase que por acaso, já que o irmão, Richard, desejava seguir carreira na música, mas não encontrava a voz certa para seus projetos. Karen acabou revelando-se a parceira ideal para ele, com a bela voz contralto. As habilidade como baterista também era ressaltada pelos críticos e demais músicos do período, mas o sucesso intensificou a tensão com com a mãe controladora, o irmão autoritário, um casamento fracassado e a percepção da própria imagem. Haynes conta toda esta problemática embalado pelas canções da dupla que nunca pareceram tão melancólicas ao evidenciar as camadas emocionais que impregnavam a voz da artista. O trabalho com a iluminação e o trato com as "atrizes" evidencia ainda mais a atmosfera opressiva daquela realidade. Ainda que tenha cerca de quarenta minutos de duração, o filme apresenta algumas entrevistas que destacam aspectos um tanto polêmicos da carreira dos manos, seja a proximidade com o controverso presidente Richard Nixon ou as insinuações presentes sobre a sexualidade do irmão de Karen. Superstar - The Karen Carpenter Story é um filme surpreendente pela forma inusitada com que conta uma história pesada sobre o mundo da música e, não por acaso, tornou-se um filme proibido pelos advogados da família (portanto, se você quer assistir, procure no Youtube antes que ele seja banido mais uma vez). Karen Carpenter faleceu em 1983 aos 32 anos com apenas 31 quilos.
Superstar - The Karen Carpenter Story (EUA/1987) de Todd Haynes com vozes de Merill Gruver, Michael Edwards, Melissa Brown, Rob Labelle e Nannie Doyle. ☻☻☻☻