Lázaro: atuação mediúnica sobre lenda carioca.
Levei um susto quando fui procurar o post sobre Madame Satã aqui no blog e descobri que não havia escrito sobre esta pérola negra realizada pelo cearense Karim Aïnouz! No início do século XX, o cinema brasileiro caminhava de encontro aos personagens marginalizados apresentando um senso estético impressionante. Foi nesta safra que tivemos Cidade de Deus (2002), Carandiru (2003) e Quase Dois Irmãos (2004), embora muitos críticos torcessem o nariz para a "cosmética da fome", considero um movimento importante para que o nosso cinema não parecesse tosco como muitos diretores adotaram recentemente como se fosse uma virtude estilística. Em Madame Satã o visual é magnífico e emoldura com precisão a história de um lendário personagem da noite carioca, João Francisco dos Santos. Nascido no ano de 1900 em Pernambuco, ele ganhou fama na noite do Rio de Janeiro encarnando Madame Satã, personagem de sexualidade híbrida em performances impressionantes na Lapa da primeira metade do século XX. Uma grande ousadia. Quando se fala de João Francisco o que é verdade e o que é mito se mistura com uma facilidade impressionante e o roteiro trabalha estes pontos com maestria. Não se sabe onde termina a pessoa e começa a lenda, está tudo misturado na atuação avassaladora de Lázaro Ramos. O ator não era famoso na época (e quase perdeu o papel para seu colega de cena Flávio Bauraqui) tinha três participações pequenas no cinema e aqui ele conseguiu o estrelato numa performance impressionante. Até hoje quando revejo o filme, fico impressionado com a força que ele imprime ao personagem que parece uma verdadeira força da natureza. O filme é sobre a sensação de inadequação de seus personagens rotulados como marginais - conceito que em sua concepção mais pura constitui-se de um sujeito que vive à margem dos padrões sociais, o que não impede de que sejam figuras culturalmente riquíssimas. João Francisco é negro, homossexual, pobre, presidiário, pai amoroso de sete filhos, malandro e mas quando o vemos na pele de Madame Satã ele é um artista pleno e entregue sobre o palco. Fora do palco, ele ainda vive a dicotomia dos dois mundos que habita e luta por respeito com golpes de capoeira. O elenco de apoio está a altura do protagonista, quando Láraro está ao lado de Bauraqui e Marcélia Cartaxo o que vemos é uma família incomum de desassistidos que preenche com afeto e fantasia as carências de suas vidas. Se não ficou satisfeito, ainda tem Renata Sorrah em uma participação especial memorável. Em muitos closes e tons de vermelho e preto, Aïnouz conta uma história que flerta o tempo inteiro com a dureza das condições sociais e a arte como forma de sobreviver. Um dos meus filmes brasileiros favoritos de todos os tempos.
Madame Satã (Brasil / 2002) de Karim Aïnouz com Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo, Flávio Bauraqui, Renata Sorrah, Emiliano Queiroz e Floriano Peixoto. ☻☻☻☻☻
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