Ewan, Kerry e Eccleston: nas entranhas dos personagens.
Acho interessante que o britânico Danny Boyle tenha um Oscar de direção (por Quem Quer Ser um Milionário/2008) e Quentin Tarantino não. O engraçado é que quando Boyle surgiu no cenário cinematográfico os rotuladores de plantão críticos logo o apontaram como o a versão européia de QT (assim como houve com Guy Rithchie e seu Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes/1998), tudo isso por conta da forma como o diretor tratava a violência com um humor negro que transbordava frescor em Cova Rasa. O filme conta a história de três amigos, a médica Juliet (Kerry Fox), o jornalista Alex (Ewan McGregor) e o contador David (Christopher Eccleston). Mais do que compartilharem o senso de humor maldoso, o trio divide um apartamento e acha uma boa ideia encontrar mais alguém para dividir o aluguel. Depois de espinafrar uma dezena de candidatos com as perguntas bizarras, Juliet conhece Hugo (Keith Allen) e ele é aceito pelos outros amigos como novo parceiro de aluguel. O problema é que não demora para Hugo ser encontrado morto na cama com uma mala cheia de dinheiro. Depois de alguma hesitação, o trio resolve sumir com o corpo e ficar com a grana. Parece que você já viu uma centena de filmes com esse tema, mas nenhum deles tem o desenvolvimento oferecido por Boyle. Mais do que investir numa violência crua que se aproxima cada vez mais dos protagonistas, o roteiro mergulha nas entranhas de seus personagens e revela o que se escondia debaixo de todas aquelas piadinhas maldosas. É interessante perceber, como a profissão de cada um é fundamental para a continuidade da história por vias sempre originais e imprevisíveis. Seja com a sabedoria médica de Juliet (uma ironia com a romântica Julieta de Shakespeare?) ou jornalística de Alex para resolver o problema de fazer o corpo não ser reconhecido, ou o processo de perturbação de David ao se deparar com o lado mais sombrio de si e de seus amigos. É o tipo de filme que não pode contar muito para não estragar as surpresas que aparecem pelo caminho, mas posso destacar a eficiência do elenco em trabalhar as mudanças em seus personagens. Embora Ewan McGregor tenha se tornado o mais famoso do trio, numa atuação que evocava diretamente um jovem Malcolm McDowell (seu personagem tem até o mesmo nome do Malcolm de Laranja Mecânica/1971) - e engatado carreira em Hollywood, seu personagem é o menos elaborado do roteiro (sua serventia é maior quando o texto insinua a formação de um triângulo amoroso que nunca se concretiza). Kerry Fox (que está longe de ser uma beldade) alcança melhor resultado trabalhando uma sensualidade sutil na personagem, ao ponto que é totalmente plausível que seus dois amigos sintam-se atraídos por ela. Já Christopher Eccleston tem a tarefa mais complicada, e a cumpre magnificamente bem. Na pele do cara certinho e subestimado, ele antecipa os atos de seus amigos como se fossem fatores de alguma conta elaborada - o problema é quando suas emoções acabam interferindo em seus julgamentos. Visto hoje eu não consigo identificar no filme toda essa relação com o universo tarantinesco, pelo contrário, acho que os outros filmes lançados por Boyle o valorizam ainda mais como um cartão de apresentação pulsante e original. Aparecem aqui temas que retornariam em seus filmes seguintes, a mais evidente é o que as pessoas fariam por dinheiro (que aparece no desfecho de sua obra-prima Trainspotting/1996, no oscarizado Quem Quer Ser um Milionário/2008 e até no infantil Caiu do Céu/2004), a ideia da construção dos papéis num universo à parte (A Praia/2000 , Sunshine/2007 e até 127 Horas/2010) e o trabalho com a atmosfera de horror (Extermínio/2002). Além disso, vale notar seu trabalho irônico com as imagens (a escada que parece uma espiral Hitchcockiana com um grande olho acima que observa tudo, os programas de televisão assistidos pelo grupo, a trilha sonora edificante, o brinquedo que ri, as mensagens no caixa eletrônico...). Se existe algum problema no filme são as cenas de violência crua que são inseridas de forma a quase quebrar o ritmo dos acontecimentos, mas isso não impediu o sucesso mundial da estreia de Boyle e a coroação com o prêmio BAFTA de Melhor Filme Britânico de 1994. Nascia um pequeno clássico dos anos 1990.
Cova Rasa (Shallow Grave/Reino Unido - 1994) de Danny Boyle com Christopher Eccleston, Ewan McGregor, Kerry Fox, Keith Allen e Gary Lewis. ☻☻☻☻
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