Cage e Cage: os manos Kauffman em processo criativo.
Quantos roteiristas podem se gabar de ser indicado ao Oscar de Roteiro Original em sua estreia? Seja qual for a resposta, Charlie Kaufman está entre este seleto grupo. Pelo surreal Quero Ser John Malkovich (1999), Charlie se tornou uma celebridade da noite para o dia e uma referência para autores de textos que flertam com existencialismo, metalinguagem, humor maluco e confusão na mente de quem curte cinema. Choveram propostas de trabalho e a que ele aceitou de bom grado foi a adaptação do livro O Ladrão de Orquídeas da jornalista Susan Orlean (uma obra metafórica sobre orquídeas e pessoas). No entanto, o hábito de escrever textos originais ajudou na crise criativa em Kauffman. A ideia de não corromper a obra, não mudar o rumo dos objetivos da escritora e preservar o espírito do livro, mergulhou o rapaz numa crise de integridade profissional. A forma como ele resolveu a pendenga pode ser conferida em Adaptação, o segundo filme de Spike Jonze em parceria com Kaufman. Jonze estreou como cineasta com Quero Ser John Malkovich (um texto engenhoso que rolava entre os estúdios, mas que ninguém se via em condições de filmar), mostrando-se o tradutor perfeito do texto Kaufmaniano, principalmente quando a insanidade quase sai da coleira do autor. O filme é um exercício metalinguístico espetacular, onde o próprio Kaufman surge como protagonista na pele de Nicolas Cage - na companhia de Susan Orlean (em atuação avassaladora de Meryl Streep) e até o ladrão de orquídeas John Laroche (Chris Cooper, que ganhou o Oscar de coadjuvante pelo papel). Não satisfeito, Kaufman colocou na trama seu irmão gêmeo Donald (Cage) que é o seu total oposto. Enquanto Charlie busca ideias originais e instigantes, Donald prefere misturar ideias alheias sem grandes preocupações com lógica - mas com grande consciência do que "a indústria" (termo que Charlie detesta) espera dele. Enquanto Charlie digere frustrações amorosas anonimamente nos bastidores, Donald só quer curtir as ambições de vender um roteiro para Hollywood. Se Charlie é capaz de contar a história da vida na terra até o ponto em que nasceu em poucos segundos, Donald delira num roteiro onde um policial, a vítima e o vilão são a mesma pessoa! Cansado de não conseguir avançar no trabalho, Charlie convida o irmão para ajudá-lo e, assim, o filme muda radicalmente de tom. Tudo o que Charlie não queria fazer acaba acontecendo quando ele busca descobrir a verdade que está por trás do livro de Susan. Sexo, drogas e violência começam a aparecer na trama. Nesta jornada onde os personagens são virados do avesso, Spike Jonze nos guia com a maior clareza possível com o auxílio de uma trinca de atores espetacular. Cage tem aqui seu último grande trabalho como ator, numa encarnação (dizem) mediúnica de Charlie Kaufman. Pançudo e desglamourizado, ele consegue alcançar todas as notas que seus dois personagens exigem. Já Cooper era conhecido até então como o vizinho nazi de Beleza Americana (1999) e aqui consegue injetar uma sensibilidade incomum num personagem que viraria facilmente um malandrão da pior espécie canastrona. Com ele dá até para entender como a sofisticada Susan Orlean se encanta por sua figura desleixada. No fim das contas o filme parece ter modificado bastante o enredo do livro, mas a verdadeira Susan afirmou que a essência do livro está toda ali em sua proposta de como o ser vivo se adapta ao meio para sobreviver às suas dores individuais.
Adaptação (Adaptation/EUA-2002) de Spike Jonze com Nicolas Cage, Meryl Streep, Chris Cooper, Maggie Gyllenhaal, Tilda Swinton e Curtis Hanson. ☻☻☻☻☻
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