terça-feira, 29 de julho de 2014

Na Tela: O Homem Duplicado

Gyllenhaal e Gyllenhaal: "O Caos é ordem a ser decifrada"

Nunca imaginei que José Saramago (1922-2010) fizesse tanto sucesso pelas bandas do Canadá. O escritor português, ganhador do Nobel de Literatura em 1998, já rendeu dois longas de língua inglesa idealizados por produtores canadenses. O primeiro foi Ensaio Sobre a Cegueira (2008) dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles e o segundo foi o recente O Homem Duplicado, dirigido pelo canadense (cada vez mais interessante) Denis Villeneuve. Quem conheceu Villeneuve com o ótimo drama circular Incêndios (2010) ou com o suspense Suspeitos (2013) irá se surpreender com o que ele faz com um dos livros menos queridos de Saramago. Lembro que quando o romance foi lançado, muita gente torceu o nariz por não enxergar em O Homem Duplicado as intenções do escritor sendo atingidas. Reclamavam da falta de humor ou suspense, não se empolgaram com o protagonista e usavam comparações com o clássico O Duplo de Dostoiévsky (que acaba de receber uma versão moderna com Jesse Eisenberg). Mesmo para quem desanimou com o livro, vale a pena conferir o que o roteiro assinado por Javier Gullón virou nas mãos do cineasta. O Homem Duplicado é um filme estranho que evoca diretamente outro diretor canadense que gosta de brincar com as percepções da plateia,  David Cronenberg (talvez por ele ter feito Gêmeos, Mórbida Semelhança/1988). Alguns poderão reclamar da frieza dos personagens e dos planos lentos embalados pelo tom amarelo da fotografia, mas outros irão perceber que Villeneuve é hipnótico na condução do encontro do professor de História, Adam (Jake Gyllenhall) com o ator Anthony St. Claire (Jake Gyllenhaal). Até que o encontro aconteça, o roteiro solta pistas do que está por vir. Afinal, são nas aulas simetricamente repetitivas de Adam (um nome que por si só evoca a criação do homem) que somos instigados na conjunção de "pão e circo", no uso da censura por governos totalitários para conter a imaginação das pessoas, além de frases como "tudo é cópia de uma outra coisa, mas a primeira versão é a tragédia, já a segunda, uma farsa". Existe uma certa monotonia no cotidiano de Adam, algo que contamina até seu relacionamento com a namorada, Mary (Mélanie Laurent). São nesses momentos que o roteiro nos prepara para o destino de Adam, que nem curte cinema, aceitar a sugestão de um amigo (que surge do nada e vai para o lugar algum na trama) para assistir um filme comum, mas no qual Adam encontra seu sósia entre os atores. Embora semelhante fisicamente, o ator Anthony é o oposto de Adam. Como um reflexo de caráter distorcido, o personagem parece não levar nada muito a sério, inclusive o casamento com a esposa grávida, Helen (Sarah Gadon). O impacto da descoberta de um sobre a vida do outro gera em Adam o efeito de novas possibilidades, tanto que experimenta ser o outro de forma até inofensiva. Mas quando Anthony pretende fazer o mesmo, o conflito moral entre os personagens funciona como o espelho de como uma mesma ação pode envolver sentimentos diferentes. Embora exista doses de suspense, Villeneuve parece interessado em questionar a construção da identidade desses dois personagens, onde começa Adam e termina o Anthony, onde se misturam e se perdem na vida um do outro. O resultado é instigante, mas nada se compara à sensação provocada pelo final do filme, onde o espectador percebe que estava diante da construção de um enigma muito maior. Há quem interprete como uma versão disfarçada de "Os Invasores de Corpos", para isso, o roteirista utiliza referências de outra obra de Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde os fascistas e seus aliados eram apresentados como aranhas tecendo suas ações. Nesse ponto, a aranha que aparece no início pode se relacionar com o emaranhado de caminhos dos fios dos bondes, com o efeito de uma aranha gigante sobre a cidade, de um vidro quebrado em forma de teia, de frases,aqui e ali até a enigmática última cena. Neste ponto, O Homem Duplicado distancia-se do drama de suspense e se transforma num filme de terror, onde o risco é matar a si mesmo. 

O Homem Duplicado (Enemy/Canadá-2013) de Dennis Villeneuve com Jake Gyllenhaal, Mélanie Laurent, Sarah Gadon, Isabella Rossellini e Josh Peace. ☻☻☻

Nenhum comentário:

Postar um comentário