Sabe aquele tipo de filme que você assiste e fica pensando sobre ele um bom tempo? São estes que costumo considerar os verdadeiros "filmes-cabeça" (um termo que costuma ser usado pejorativamente por quem não o entende), já que é lá dentro que o filme continua acontecendo depois que termina. Este foi o caso do sensacional Fruto da Memória, mais conhecido como Apples, filme grego lançado no Festival de Veneza do ano passado e que tentou uma vaga no páreo de filme estrangeiro deste ano (e acabou ficando de fora). O filme conta a história de uma epidemia de esquecimento que se espalha pelo mundo por volta dos anos 1980 (e a escolha por um período em que a tecnologia ainda não havia invadido nossas vidas é proposital). As pessoas saem de casa e subitamente esquecem não apenas quem são, mas como fazer coisas triviais em suas vidas (dirigir um carro, dançar, andar de bicicleta, flertar...) e após um breve estudo sobre o que está acontecendo (e não existe muita explicação), as pessoas começam a fazer um tratamento para voltar à ter uma vida social. No entanto, esta vida social é traçada de acordo com as instruções dos médicos responsáveis pelo acompanhamento - e que precisam de registros fotográficos constantes para comprovar que o desmemoriado está fazendo tudo exatamente como deve ser feito. Apesar da doença afetar vários personagens, a trama é voltada especificamente para Aris (Aris Servetalis) que perde a memória e começa o processo de acompanhamento que o faz reaprender tudo novamente. Em seu caminho ele conhece uma mulher na mesma situação, ms que por conta das instruções sobre o que é ter uma "vida", o que poderia ser um relacionamento acaba criando um abismo entre os dois. Se você achar que Apples te lembra o absurdismo de outro diretor grego não é por acaso, o cineasta estreante Christos Nikou teve como primeiro trabalho no cinema o posto de assistente de direção do aclamado Yorgos Lanthimos (do arrasador A Favorita/2018) naquele que seria o divisor de águas de sua carreira, o estranho Dente Canino (2009). Nikou aprendeu direitinho a forma como manter as atuações contidas ao extremo e o tom que se equilibra entre a tragédia e a comédia. O roteiro esperto, embora ambientado em uma época diferente da atual, fala muito sobre a vida no século XXI, da necessidade das fotos para comprovar que algo foi feito, um código de conduta do que é curtir a vida e, principalmente, as inseguranças perante o que se deseja e o que esperam que você faça. Esta alegoria gera cenas memoráveis como a que o personagem volta a andar de bicicleta em meio a crianças, ou quando aprende a curtir rock'n roll e, principalmente, quando se dá conta que dançar com quem se deseja pode fazer a experiência de dançar muito melhor (na que se torna a cena mais avassaladora do filme). Claro que Nikou reserva momentos de pura provocação como a cena em que a única coisa lembrada pelo protagonista é o nome do cachorro do vizinho ou quando ele se dá conta de que pessoas morrem. Apples - em português maçãs que pode ser uma alusão à fruta que o protagonista não lembra se gostava e agora não para de comer (o que demonstra ser uma comodidade segura, já que não precisa experimentar novos sabores) , mas também uma analogia ao fruto proibido - é uma produção que mostra-se uma potente reflexão sobre os tempos atuais. Não por acaso, Christos Nikou já tem seu novo projeto (Fingernails) bancado por Hollywood, com a duplamente indicada ao Oscar Carey Mulligan no alto dos créditos. Lanthimos deve estar orgulhoso.
Fruto da Memória (Apples|Mila / Grécia - 2020) de Christos Nikou com Aris Servetalis, Sofia Georgovassili, Anna Kalaitzidou e Kimon Fioretos. ☻☻☻☻☻
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