Selton e Ralph: amizade abaixo de zero.
Quando eu era adolescente, lembro de ter assistido uma palestra de uma bióloga (amiga de minha mãe) em que ela contava um pouco de sua temporada em uma base de pesquisa na Antártida. Ela apresentava dados, mapas e fotos de forma tão fascinada que tornava impossível não sentir vontade de algum dia vivenciar uma experiência semelhante. Talvez por isso eu tenha me identificado com o personagem de Selton Mello neste Soundtrack, filme da dupla Bernardo Dutra e Manitou Felipe sobre um fotógrafo que se aventura por uma base habitada por cientistas na Antártida. Cris é visivelmente um artista em busca de um lugar ao sol e fica entusiasmado quando recebe permissão do governo brasileiro para ir até lá. Seu projeto de fotografar a si mesmo naquele ambiente sob o efeito de trilhas sonoras específicas destoa bastante dos interesses dos outros personagens que habitam o lugar - em sua maioria cientistas que pesquisam áreas diferentes e que tiveram sua cota de renúncias para estar ali. No início Cris terá que lidar com uma certa rejeição dos outros personagens que nunca entendem muito bem a motivação daquele artista estar ali - e neste ponto o filme instiga algumas reflexões do lugar da arte em um mundo dominado pela ciência. Aos poucos, Cris desenvolve maior proximidade com Mark (o ótimo Ralph Ineson, o pai de A Bruxa/2016), seu parceiro de alojamento, numa relação que se torna fio condutor da história. Na trama existe outro personagem brasileiro, Cao (Seu Jorge) que não tem maior destaque do que os outros dois personagens gringos do filme, um pesquisador dinamarquês chamado Rafnar (Logan Loughran) e o chinês Huang (Thomas Chaanhing). A direção e o roteiro de Dutra e Manitou tem ritmos bastante próprios, que caem como luva na ambientação contemplativa de muito branco (em ótima fotografia) que possui grande beleza mas também consegue ser um tanto intimidadora. Os diálogos em inglês explora a ênfase de que Cris está em um território diferente do que estava acostumado, como se de fato ele falasse uma linguagem diferente dos cientistas ao seu redor. O tom intimista da narrativa valoriza ainda mais as catárticas fotos de Cris e os momentos de perigo iminente - que são realmente angustiantes e reforçadas pela trilha sonora bastante pontual. O mais interessante é que ao chegar ao seu desfecho, todo aquele branco reflete um pouco da personalidade do próprio protagonista que nunca se revela por completo dentro da história (talvez somente pela sua arte). Interessante e original, Soundtrack é a segunda parceria de Selton e Jorge com os diretores, já que os dois formam a dupla 300ml que rendeu o delicioso curta O Código Tarantino (2006) que fez sucesso ao ser disponibilizado no Youtube com suas teorias de que os filmes do diretor americano estão interligados. Soundtrack pode não ter a mesma pegada pop do curta, mas faz mágica ao nos transportar para sua gélida geografia, que foi filmada em um estúdio em Jacarepaguá com fundo verde e efeitos especiais.
Soundtrack (Brasil/2017) de Bernardo Dutra e Manitou Felipe com Selton Mello, Ralph Ineson, Seu Jorge, Logan Loughran e Thomas Chaanhing. ☻☻☻☻
Nenhum comentário:
Postar um comentário