Miklos: o submundo é o inferno.
Quarta-feira tive uma crise grave de coluna. Por conta disso, saí do trabalho mais cedo para ir à emergência ciente de que aquela dor só passaria novamente com morfina. No caminho, umas duas esquinas do local em que trabalho, havia um carro parado perto demais da esquina que impedia a minha visão, por isso tive que parar um pouco mais à frente do que deveria, tempo suficiente para um carro velho e mais acelerado do que deveria, se aproximar. O freio do veículo (um corcel meio dourado) não estava funcionando direito, de forma que deslizou um pouco mais para perto do meu. Tive que dar ré devagar para que não encostasse em mim. Começou então o drama. O outro motorista ficou gritando que eu deveria prestar mais atenção e bloqueou a rua para que eu não saísse dali. Eu disse que não entendia o motivo da gritaria, afinal, os carros não haviam batido. Sentada na frente, ao lado do motorista, sem cinto de segurança e com um bebê de uns dois anos no colo, uma mulher pegou o celular e resolveu fazer um registro da situação. Não sei se filmou ou tirou foto, mas no caminho até o hospital fiquei imaginando que ela postasse aquilo nas redes sociais e utilizasse a criatividade para relatar o que havia acontecido. Previ um linchamento nos próximos dias. Esse clima de surto coletivo parece imperar no Brasil já a algum tempo, a necessidade de ser agressivo e ofensivo em nome de uma "justiça" que existe somente para defender o seu ponto de vista, mas que é incapaz de perceber que seu freio não está funcionando. O outro parece sempre culpado de suas mazelas e acabar com ele provocaria o gozo de imaginar que o problema foi resolvido. Só que isso não acontece e o alvo logo se torna outra pessoa num mundo de instituições desacreditadas e em que a barbárie soa como único caminho para a identidade calcada em uma autoestima devastada. É essa sensação que constrói o contexto de O Homem Cordial de Iberê Carvalho. Nele, Aurélio (Paulo Miklos) o vocalista de uma banda de rock se apresenta e começa a ser atingido no palco por objetos diferenciados - sob gritos que indicam que ele fez algo de muito errado. Logo descobrimos que houve um vídeo em que ele impediu o linchamento de um garoto de treze anos e, no meio do grupo linchador tinha um policial, que acabou morto dias depois. Começam então as especulações de que o garoto poderia ter matado o policial e soma-se a suspeita ao fato do garoto estar desaparecido. Subitamente, Aurélio se vê no centro de uma discussão que envolve o abismo social que vivemos com um bocado de intolerância, preconceito e um tantinho de preguiça para perceber que o contexto de uma situação é bem mais ampla do que as imagens transparecem (e a história em torno das imagens é o desfecho do filme que torna toda história ainda mais triste). Ambientado em uma noite na vida do roqueiro, o protagonista descerá ao inferno para descobrir os desdobramentos daquela situação que presenciou, testemunhando um submundo (e não por acaso a ideia de inferno é subterrânea) que não teria contato se sua vida continuasse seguindo a rotina trivial de sempre. Logo o roteiro apresenta as peças de sua história: artista, moradores de periferia e imprensa logo se tornam alvos fáceis de profissionais corruptos. Existe nas entrelinhas o contexto de como as tecnologias alastram uma narrativa, para o bem e para o mal enquanto a grande mídia parece ter uma função anestésica com seus programas matutinos de culinária. Iberê constrói seu filme com uma tensão precisa, se perde um pouco no desenvolvimento de alguns personagens (a jornalista subitamente some da história), mas compensa tudo com uma boa atuação do titã Paulo Miklos que se envolve num labirinto kafkiano tupiniquim onde ter um tantinho de bom senso demonstra ser perigoso (e alguns dirão que o bom senso seria ter ignorado o linchamento do menino, o que também diz muito sobre a lógica vigente). O título é uma clara referência à obra do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda em que afirma que a polidez do povo brasileiro está apenas na superfície, numa espécie de disfarce para suas sensibilidades e emoções perante a coletividade. O Homem Cordial se mostra um triste retrato do brasileiro intolerante que revelou sua face nos últimos anos - e aguarda ansiosamente para que seja legitimada.
O Homem Cordial (Brasil/2023) de Iberê Carvalho com Paulo Miklos, Thalles Cabral, Thaíde, Pedro Lima, Theo Werneck, Murilo Grossi, Dandara de Morais, Felipe Kenji e Roberta Estrela D'Alva. ☻☻☻☻
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