Miguel e Ketnath: perdidos num sertão de luz.
Para encerrar o #FimDeSemana dedicado a Novos Clássicos do Cinema Brasileiro, escolhi um filme de deveria ser lembrado mais vezes pelo público. Cinema, Aspirina e Urubus do pernambucano Marcelo Gomes é o tipo de filme que prova ser bom na marra. O orçamento era pequeno. O filme não contava com nomes muito conhecidos no elenco. A assinatura do Marcelo Gomes também não soava grande referência para o público, já que após dirigir curtas e um longa (Os Brasileiros/2000) o cineasta ainda era um ilustre desconhecido. A trama também parece bastante simples: em 1942, enquanto a Segunda Guerra Mundial assombrava o mundo, um alemão dirigia pelo sertão nordestino projetando propagandas de Aspirina para alavancar as vendas do medicamento em vilarejos completamente afastados dos grandes centros. Johann (o ótimo Peter Ketnath) pretendia mesmo fugir da guerra quando veio para os cafundós do Brasil e seu olhar estrangeiro faz com que tudo lhe soe interessante. Quem cruza seu percurso e fica ao seu lado é Ranulpho (o perfeito João Miguel), nordestino que sonha em chegar ao Rio de Janeiro, a capital do Brasil na época. Se Johann observa a realidade dos vilarejos em que passa com um olhar bastante afetuoso (provavelmente por estar distante da realidade assustadora que presenciou em seu país), Ranulpho é o oposto. Sempre parece um tanto insatisfeito, mal humorado e rabugento com seus compatriotas (ainda que João Miguel o faça com uma leveza irresistível). Pode se dizer que a explicação para sua postura é uma espécie de negação do que se é, a ideia maldita de que desmerecendo o semelhante torna-se algo melhor do que ele. Mas Ranulpho não é um mal sujeito, pelo contrário, leal ao seu companheiro de estrada e bem intencionado na maioria das vezes, sua postura às vezes irritadiça soa mais como um processo de desapego à realidade social que o cerca. Pelas estradas poeirentas que atravessam, os dois personagens percebem suas diferenças, o que não impede que se tornem amigos, mesmo quando a realidade mundial atravessa a vida de ambos de forma definitiva. A história é inspirada nos relatos do tio-avô do cineasta, o Ranulpho Gomes, que conheceu um alemão que exibia filmes e vendia aspirinas pelo Brasil inteiro até que, com o advento da Segunda Guerra Mundia,l a fábrica da Bayer no Brasil foi fechada e o vendedor de aspirinas precisou tomar outro rumo na vida. O carinho com que Marcelo Gomes conta sua história é visível em cada cena. Cada encontro e diálogo entre os personagens é perfeitamente lapidado (a cena de Hermila Guedes é um verdadeiro achado), além disso, a forma como a fotografia trata as paisagens áridas como um deserto de luz é fascinante. O trabalho do fotógrafo Mauro Pinheiro Jr. é um verdadeiro primor! Talvez por eu ser filho de nordestino (meu pai era cearense, com muito orgulho), as andanças e conversas entre os personagens me pareçam bastante próximas, semelhantes a relatos e descrições que cresci ouvindo nos almoços em família. Esta autenticidade regional transborda do filme e o torna um verdadeiro marco para o cinema brasileiro do século XXI. Existe aqui uma homenagem singela à emoção provocada pelo cinema com suas imagens projetadas em uma tela, mas também uma história sobre relações sociais, política e poder. Cinema, Aspirina e Urubus foi feito com pouco dinheiro, mas tem criatividade de sobra para lidar com as limitações no orçamento. O grande acerto do filme foi a escolha de sua dupla principal. Marcelo Gomes escolheu João Miguel após vê-lo na peça Bispo sobre Artur Bispo do Rosário, considerando que os olhos esperançosos do ator era o que seu Ranulpho precisava para provocar a empatia da plateia. Já Ketnath foi indicado por uma atriz brasileira que morava em Berlim. O alemão se apaixonou pelo projeto e trabalhou por uma quantia simbólica e seu desempenho é igualmente memorável. O filme recebeu 37 prêmios ao longo de sua carreira, entre eles três estatuetas no Grand Prêmio Cinema Brasil (Filme, direção e roteiro, mas João Miguel merecia de ator e Ketnath poderia ter sido indicado também, também não entendo como a fotografia não foi premiada). Cinema, Aspirina e Urubus foi o escolhido para representar o Brasil em uma vaga no Oscar de Filme Estrangeiro de 2007 após receber elogios no Festival de Cannes e críticas positivas em publicações do porte de The New York Times, Variety e Hollywood Reporter. A indicação acabou não acontecendo, mas o filme é reconhecido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos cem melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Eu o colocava numa lista dos vinte melhores sem pestanejar...
Cinema, Aspirina e Urubus (Brasil/2005) de Marcelo Gomes com Peter Ketnath, João Miguel, Hermila Guedes, Irandhir Santos e Fabiana Pirro. ☻☻☻☻☻
Nenhum comentário:
Postar um comentário