sábado, 23 de setembro de 2023

# FDS Novos Clássicos BR: Cidade de Deus

 
Buscapé na mira: o filme mais lucrativo do cinema brasileiro. 

Fiquei assustado quando me dei conta de que Cidade de Deus completou vinte anos em 2022. Se eu disser que assisti o filme no cinema, acho que entrego demais a minha idade atual... o mais engraçado é que naquela época eu estava na faculdade e olhei com muita desconfiança a adaptação de Fernando Meirelles e Kátia Lund para o livro de Paulo Lins. Durante muito tempo fui bastante crítico com a forma com que o filme apresentava a história, especialmente no tom cômico quando se tem a impressão que estamos diante de um bando de personagens calcados em uma população pobre pronta para ser exterminada. Seja pelas autoridades, seja pelos seus pares que se envolvem com a criminalidade, seja por facções rivais... neste mundo em que a vida está sempre em risco, somos guiados por Buscapé (Alexandre Rodrigues) que tenta manter a cabeça no lugar em sua trajetória rumo à sobrevivência. Diante de toda a miséria financeira e humana que está ao seu redor, ele possui sonhos e deseja seguir um caminho diferente de tantas outras pessoas com quem conviveu enquanto crescia na Cidade de Deus. O fato é que enquanto Buscapé é o fio condutor da história, narrando a ascensão e queda de vários personagens que fizeram história em sua comunidade, o roteiro conta a história de um país que adora manter a pobreza distante dos seus olhos, afinal, a Cidade de Deus, foi um programa social que pegou um bando de cidadãos em situação de vulnerabilidade social e mandou para bem longe do centro urbano (tal e qual a Nova Sepetiba que serviu de cenário para locações do filme). O nome da cidade parece uma alusão ao "Deus dará" (expressão que uma senhora uma vez disse para minha mãe enquanto atravessamos a Baía de Guanabara de Barca, para logo depois ela emendar: "moro naquele lugar que até Deus esqueceu, a Cidade de Deus"). Como aparece no filme, o Estado aparecia por lá somente fardado de polícia, enquanto as garantias sociais eram cada vez mais esquecidas. Não era difícil imaginar que a criminalidade se alastraria por lá. É banhada nesta tensão que acompanhamos a história de personagens que se tornaram marcos na cinematografia nacional. Pode se dizer que o filme divide a história local em duas partes, na primeira conhecemos a origem daquele lugar e alguns personagens do porte de Cabeleira (Jonathan Haagensen) e Berenice (Roberta Rodrigues), que vivem uma das cenas mais comoventes do filme, mas que são parte de um passado que irá transformar Dadinho (Douglas Silva) no temido Zé Pequeno (Leandro Firmino) - dono de uma das frases mais antológicas do cinema nacional. Misture aí o galã Mané Galinha (Seu Jorge), o triângulo amoroso entre Buscapé, Angélica (Alice Braga) e Bené (Phellipe Haagansen), inúmeros digressões e um ritmo vertiginoso impresso pela montagem de Daniel Rezende para dar conta de tantas histórias que se misturam num painel bastante envolvente sobre personagens periféricos. Lembro que quando vi o filme no cinema era comum ouvir as gargalhadas da plateia nos momentos mais hediondos. Aquilo me assustou. Mas revendo o filme hoje não vejo como uma falha do filme, mas do olhar dos espectadores sobre aqueles personagens imersos em violência. Uma violência não apenas físicas e de mão armada, mas também simbólica e social que por vezes  impede que sejam vistas como pessoas feito nós, mas que são rotuladas por nossos preconceitos. Revi o filme umas duas vezes e cada vez mais minhas críticas foram enfraquecendo. Não sei se é por eu ter envelhecido ou por ter compreendido melhor todo o requinte da narrativa, que por muitos foi chamada de "cosmética da fome" por ter mais estilo do que verdade. Será? Não imagino que se a história fosse a mesma contada com câmera estática e fotografia sem foco o filme traria mais verdade. Talvez trouxesse mais sono na ambição de retratar uma realidade que nunca daria conta de ser desbravada em um filme com duas horas de duração. Ainda que Meirelles tenha vindo do mercado publicitário, trata-se de um verdadeiro equívoco rotular seu filme como algo menor. Admito hoje que Cidade de Deus é Cinema com C maiúsculo e A de Arte em letras garrafais. Este meu olhar revisitado sobre o filme é ainda mais interessante quando lembro que o filme, lançado em 2002, foi o escolhido brasileiro para ser indicado ao Oscar de filme estrangeiro no ano seguinte e acabou esnobado. Porém, conforme o filme ganhou fama mundial, em 2024 foi lembrado em quatro categorias: roteiro adaptado (Bráulio Mantovani), montagem (Sérgio Rezende), fotografia (César Charlone) e Direção (Fernando Meirelles). Praticamente um pedido de desculpas pela cegueira da Academia em enxergar os méritos do cinema estrangeiro. Com 75  prêmios internacionais no currículo e outras 50 indicações, Cidade de Deus carimbou a carreira internacional de Meirelles que buscou desde então fazer filmes diferentes deste aqui (e ele caiu no radar do Oscar novamente com O Jardineiro Fiel/2005 que rendeu o Oscar de coadjuvante para Rachel Weisz). Lembrado em várias listas como um dos melhores filmes da história do cinema e sendo o filme brasileiro de maior bilheteria internacional, o tempo tornou Cidade de Deus em algo maior do que um clássico, mas em uma referência cinematográfica. 

Cidade de Deus (Brasil - 2002) de Fernando Meirelles e Kátia Lund com Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Douglas Silva, Alice Braga, Jonathan Haagansen, Roberta Rodrigues, Matheus Nachtergaele, Seu Jorge, Phellipe Haagansen, Darlan Cunha, Thiago Martins e Graziella Moretto. ☻☻☻

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