domingo, 29 de outubro de 2023

FILMED+: Assassinos da Lua das Flores

 
Leo e Lily: história de amor em meio ao genocídio.

Lançado em 2017, o livro de David Grann  sobre as investigações sobre as mortes entre o povo originário Osage nos Estados Unidos chamou a atenção do mestre Martin Scorsese quando ele percebeu a quantidade de camadas históricas que existia naquela narrativa. Basta imaginar que os Osage, como boa parte da população indígena nos Estados Unidos, foi dizimada (como cansamos de ver nos faroestes) e os sobreviventes acabaram ficando com um pedaço de terra que ninguém tinha muito interesse, mas que se mostrou uma cobiçada fonte de petróleo. Com isso, aquela nação se tornou um dos grupos mais ricos do país. Obviamente que isso chamou atenção de muita gente, que começou a gravitar em torno deles. No entanto, o número de mortes entre os osages era assustador nos anos 1920. Geralmente os casos eram considerados acidentes ou decorrentes de doenças cujo organismo Osage ainda não estava acostumado. Sim, é para soar estranho mesmo. Na mente de Scorsese, Leonardo DiCaprio era um investigador que tentava entender o que estava acontecendo por ali a partir do apelo de Mollie (Lily Gladstone) ao presidente dos EUA. As filmagens já tinham começado quando a pandemia de Covid-19 fez tudo parar. Vendo o que estava realizando, Scorsese percebeu que aquela não era a forma correta de contar a história que tinha em mãos. Ele refez o roteiro em parceria com Eric Roth e mudou o foco da trama para tentar ver de dentro os horrores vivenciados ali. Assim, DiCaprio deixou de ser um agente federal (papel agora vivido por Jesse Plemons) e passou a ser o esposo aparentemente tapado de Mollie, Ernest Burkhart, que chega para viver naquela região após sobreviver à guerra. Agora ele está sob os cuidados do tio, William Hale (Robert DeNiro). Ernest se encanta por Mollie, que antes de ser sua esposa, torna-se uma passageira recorrente em seu táxi. Embora tudo indique que Ernest realmente se apaixona por Molly, são os interesses de seu tio, somados à adoração do rapaz por dinheiro que fazem com que ele se torne peça importante nas engrenagens daquele lugar. Scorsese conta como funciona a lógica do homem branco naquela região sem pressa, ressaltando dicotomias que contradizem qualquer oposição que o cinema tradicional fazia entre o indígena apresentado como selvagem e o colonizador como civilizado. Assassinos da Lua das Flores desmonta qualquer discurso nesse sentido e o faz com um vigor invejável. Acho fascinante ver o cineasta aos 81 anos filmar com tamanha energia e, mais ainda, estar disposto a se repensar sem pudores. Digo isso não apenas por sua desenvoltura em mudar o ponto de vista do seu projeto inicial, mas também em absorver as críticas a quem acusa a violência de seus filmes ser estilizada (aqui ela surge mais covarde, absurda e estúpida do que nunca) ou daqueles que disseram que seus filmes não destacavam personagens femininas (um exagero, já que ele rendeu o Oscar para Ellen Burstyn em Alice não Mora Mais Aqui/1974 e Cate Blanchett por Aviador/2004, ele também conseguiu indicações para a precoce Jodie Foster por Taxi Driver/1976, Cathy Mortiarty por Touro Indomável/1980, Lorraine Bracco por Os Bons Companheiros/1991 e Sharon Stone por Cassino/1995, sem falar que foi ele o responsável por revelar a poderosa Margot Robbie em O Lobo de Wall Street/2013). Não sei se isso teve relação ao destaque que foi dado aqui para a personagem Molly Burkhart, mas isso rendeu para Lily Gladstone um dos personagens mais complexos da temporada. Aliás, tenho que agradecer a Scorsese por escalar uma atriz que merecia estar em alta desde sua participação em Certas Mulheres/2016 . É a química entre Lily e DiCaprio que fazem a história de um genocídio ganhar tons de uma história de amor fadada à derrota. Ela está perfeita e desponta como uma das favoritas ao Oscar de melhor atriz. Se DiCaprio está bem (deixando seu personagem ambíguo até após a subida dos créditos - afinal, é possível alguém ser tão tapado? ou ele está fingindo para se safar?), Robert DeNiro está perfeito como o populista cheio de más intenções. Juntar os dois atores favoritos de gerações distintas do cineasta é quase um mimo aos fãs (lembrando que Scorsese foi quem revelou DiCaprio ao produzir O Despertar de Um Homem/1993, também estrelado por DeNiro). Acho que Scorsese ficou tão satisfeito com o resultado de sua ideia repaginada que até deu a graça de sua presença no final, em que realiza uma esquete que soa como uma crítica a quem possa ver uma história dessas como mero entretenimento. Porém, Assassinos da Lua das Flores não é diversão é quase uma reparação cinematográfica no formato de um crucial anti-faroeste. Manter uma narrativa dessas fluindo por três horas e vinte minutos não é para qualquer um e Scorsese o faz com maestria. Obrigado mestre! Seu novo Oscar chega logo logo. 

Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon/EUA - 2023) de Martin Scorsese com Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Robert DeNiro, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, Cara Jade Myers, John Lithgow, Jillian Dion, Jason Isbell, Scott Shepherd, Tatanka Means, Louis Cancelmi, William Belleau, Janae Collins, Brendan Fraser, Jack White e Martin Scorsese. ☻☻☻☻

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