Helena e Descartes: o horror nosso de cada dia
Houve quem reparasse que falta uma vírgula no título do filme de Juliana Rojas e Marcos Dutra, mas essa ausência é proposital ao sinalizar que existe algo misturado na trama (sendo assim o efeito é o oposto da grafia de Garota, Interrompida/1999). O filme participou da mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes e recebeu menção honrosa no Festival de Paulínia no ano passado pela mistura de drama social com terror. Na verdade, o terror aparece mais como uma simbologia ao drama dos personagens. O casal Helena (Helena Albergaria, atriz favorita da dupla e que elmbra bastante a americana Joan Allen) e Otávio (Marat Descartes) consegue ter uma vida confortável, mas quando Helena decide alugar um estabelecimento comercial para criar um mercadinho, Otávio perde o emprego e a vida que parecia comodamente confortável começa a mudar. Não bastasse Otávio enfrentar problemas para conseguir emprego aos quarenta anos, ele ainda precisa lidar com dinâmicas de grupo que mais incomodam do que ajudam. Se a coisa vai mal para Otávio, elas se tornam cada vez mais pesadas nos ombros de Helena - que agora precisa trabalhar o dia todo e bancar as despesas da casa. Essa inversão de papéis é bem explorada no roteiro e rende uma guinada interessante nos personagens. Otávio passa a ser cada vez mais recolhido e calado, enquanto a esposa se torna agressiva - não só com os funcionários mas com o próprio marido. É interessante como a simpática personagem começa a visar somente o dinheiro que o pequeno negócio pode lhe render, suspeita que os empregados roubam mercadorias, coloca-os para trabalhar em feriados e implica até com um deles que leva pão velho para casa. Helena se torna uma megera. As relações entre patrões e empregados aparecem em arranjos sutis no roteiro, tanto por parte de Helena quanto de sua mãe que implica com a empregada novata. Você deve estar se perguntando onde está o terror da trama. Além do horror social que o filme nos apresenta existe uma atmosfera absurda em torno do mercado. Os fregueses sempre dizem frases pela metade sobre os antigos donos do estabelecimento e ainda tem um cachorro que está sempre latindo para o mercadinho. Além disso, existem barulhos suspeitos e infiltrações mal explicadas que começam a preocupar Helena. Rojas e Dutra ainda incrementam o tom de terror com longos silêncios, histórias sobre morcegos, bezerros com duas cabeças e algum sangue, o efeito é como se o fantástico estivesse todo tempo prestes a invadir a história - e quando surge os personagens tratam logo de livrar-se dele. Muita gente torce o nariz para esses elementos do filme, mas eles enriquecem a trama com uma camada narrativa difícil de ver no cinema nacional. Assim, existe o horror do cotidiano, as pequenas torturas a que somos submetidos sem nos darmos conta e aquele mais explícito, que assusta, mas que, talvez por ser materializado, seja mais fácil de liquidar. Por apostar no estranhamento da plateia o filme se torna uma grande ousadia, mas mesmo quem não entender muito bem onde o mundo realista se cruza com o sobrenatural pode ter uma ideia na catártica cena final de Otávio, onde junto com um bando de desempregados parece se tornar uma besta fera. No fim das contas, trabalhar cansa tanto quanto não trabalhar.
Trabalhar Cansa (Brasil/2011) de Juliana Rojas e Marcos Dutra com Marat Descartes, Helena Albergaria, Naloana Lima, Marina Flores e Nina Blanc. ☻☻☻☻
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