Nina: meio gótico, meio psicodélico, meio russo e paulistano...
Às vezes eu queria saber onde é que está escrito que filme brasileiro não pode ser visualmente estimulante. É cansativo ver o cinema nacional se dividir, na grande maioria das vezes, em produções com cara de especial da Globo e outras com cara de filmes amadores (vi alguns que preferi nem citar por aqui, até meu sobrinho de oito anos faz coisa mais interessante com uma câmera na mão). Raros são aqueles que buscam uma estética diferente ou se arrriscam em histórias que desafiam a mesmice. Foi isso que aconteceu com Heitor Dhalia em sua estreia em 2004 com o bem vindo Nina. Dhalia é um dos poucos diretores nacionais que se preocupa bastante com a estética dos filmes. Foi assim na esquisitice de seu trabalho seguinte (O Cheiro do Ralo/2006) e na limpidez do nostálgico À Deriva (2009). Desde o tom sombrio de Nina, percebemos que o diretor odeia a mesmice no seu trabalho. O filme foi gerado como uma adaptação livremente inspirada no clássico Crime e Castigo do russo Fiódor Dostoiéski. Se no livro (lançado em 1866) a trama girava em torno do estudante de direito perseguido por uma agiota - e depois pelos conflitos por conta de um assassinato - a trama de Dhalia é em torno da jovem que dá nome ao filme. Guta Stresser (a Bebel de A Grande Família) aparece como uma garota que vive em São Paulo distante da família (seu contato com os parentes acontece apenas através de cartas). Sua vida é dividida entre o trabalho numa lanchonete e as festinhas regadas à música eletrônica e luzes coloridas. Apesar de metida a morderninha, Nina tem lá os seus pudores (por exemplo: não transar com um homem com tatuagem de smurf) e seus compromissos com a vida na cidade grande. A maior pedra no sapato da personagem é Eulalia (a estupenda Myriam Muniz), sua intragável senhoria. Com os atrasos constantes de aluguel do quartinho em que vive, Eulalia começa a maltratar sua inquilina. Sendo humilhada constantemente e impossibilitada de sair do apartamento enquanto não pague o que deve com juros e correção monetária, Nina começa a nutrir grande raiva pela velha senhora - que se esforça para ser odiosa em todos os sentidos. Considero louvável que embora pudesse ser mostrada como vítima, a protagonista tem lá os seus caprichos - como destratar os clientes do trabalho, debochar de um cego enquanto este tenta seduzí-la (em participação memorável de Wagner Moura) ou rejeitar a ajuda financeira de uma amiga. Essa postura de Nina com o mundo ao seu redor mostra como lida de forma superficial com as relações (prova disso é a personagem da sempre subestimada Sabrina Greve que apresenta um carinho especial pela amiga, mas nunca recebe muita atenção). Nina prefere gastar o tempo desenhando (cortesia das obras de Lourenço Mutarelli, autor de Cheiro do Ralo) e tendo delírios em que mata a senhoria de formas diferenciadas. A estética do filme é um primor. Do início "bolorento" (que remete ao apartamento decadente de Eulalia) passando pela mistura do psicodélico com o obscuro, o filme consegue ter nessa roupagem moderna para um clássico. Se Stresser está um exagerada, Myriam Muniz está espetacular como uma contemporânea Aliena Ivánovna que persegue a protagonista como um fantasma capaz de personificar as injustiças da sociedade de consumo e até uma espécie de depotismo urbano. Embora se concentre mais na primeira parte da obra de Dostoiévski, o filme de Dhalia consegue ser instigante e contar com uma série de participações especiais encarnando as pessoas que cruzam o caminho de sua heroína. Se você se decepcionou com a empreitada hollywoodiana do diretor pernambucano (o pífio 12 Horas com Amanda Seyfried) vale a pena relembrar o gás desta estreia promissora.
Nina (Brasil/2004) de Heitor Dhalia com Guta Stresser, Myriam Muniz, Wagner Moura, Guilherme Weber, Luiza Mariani, Seltom Mello, Sabrina Greve e Renata Sorrah. ☻☻☻
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