No mês em que o Festival de Veneza triunfou ao realizar sua edição 2020 em meio à pandemia de Covid19, realizo um Fim de Semana especial com vencedores do prêmio máximo do Festival: o Leão de Ouro. Nos últimos anos Veneza se tornou um festival sem medo de se modernizar, premia projetos de Realidade Virtual além de não ter pudores em premiar filmes produzidos para a internet e, desde os anos 1960, já demonstrava seu gosto por ousadias. Andrei Tarkovsky deve ser o cineasta russo mais cultuado de seu tempo. Nascido em 1932, ele ainda era um iniciante quando realizou A Infância de Ivan. Embora tivesse um curta e dois média-metragens no currículo, nada parecia indicar que levaria o Leão de Ouro em 1962 (empatado com o italiano Dois Destinos de Valerio Zurlini). Era a vigésima terceira edição do festival e entre os concorrentes estavam Stanley Kubrick (com Lolita) e Pier Paolo Pasolini (por Mamma Roma), mas posso dizer que o filme de Andrei era o mais ousado de todos. Tão ousado que as autoridades da antiga União Soviética quase impediram o lançamento do filme que teve uma produção conturbada. Em 1957, o escritor Vladimir Blogomolov lançou um conto chamado Ivan, era sobre um menino que após ter os pais assassinados na Segunda Guerra Mundial se torna espião do Exército Vermelho. Ele alimenta seu patriotismo com o ódio pelos inimigos e se transforma num verdadeiro herói de guerra. A trama chamou atenção da produtora Mosfilm, que estava animada com a Palma de Ouro em Cannes conquistada com (outro filme de guerra) Quando voam as Cegonhas (1957) que se tornou um sucesso. A adaptação de Ivan começou a ser rodada em 1960, mas os produtores ficaram insatisfeitos com o rumo das filmagens e entregaram ao recém-formado Andrei Tarkovsky a tarefa de refazê-lo. Eles não imaginavam que o diretor faria mudanças bruscas na estrutura narrativa. Quando assistiram ao filme, levaram um verdadeiro susto. O filme embaralha a história de tal forma que não se sabe o que é realidade, sonho ou lembrança. O pequeno Ivan aparece então se alternando em cenas felizes ao lado de sua mãe, em outras andando pela destruição da guerra para mais à frente falar com os soldados como se fosse um verdadeiro general. Entre as luzes e sombras da bela fotografia em preto e branco, vemos recortes sobre este menino e a forma como sua vida foi afetada pela guerra. Os produtores acharam o filme incompreensível, mas Tarkovsky conseguiu defender suas intenções - embora fosse uma ousadia atenuar as cores nacionalistas para ressaltar o que a história do menino tinha de mais humana: suas perdas, seus sonhos, seus medos, tudo aparece misturado na tela. Da forma como foi montado, A Infância de Ivan deixa ainda mais latente as transformações pelas quais aquele menino atravessou (destaque para o ótimo trabalho de Nikolai Burlyaev que tinha quinze anos durante as filmagens), ressaltando a tristeza da destruição não apenas daquele menino, mas daquele país e todos que ainda hoje presenciam a realidade da guerra em suas vidas. Triste e poético, A Infância de Ivan é cultuado até hoje, especialmente pela forma moderna com que constrói a narrativa em torno do protagonista. Curioso perceber que a ideia de tempo e memória foram recorrentes nas obras do diretor, assim como no seu livro Esculpir o Tempo, que explica muito sobre sua personalidade criativa e a forma como constrói suas narrativas na telona.
A Infância de Ivan (Ivanovo detstvo / Rússia - Alemanha / 1962) de Andrei Tarkovsky com Nikolay Burlyaev, Valentin Zubkov, Evgeniy Zharikov, Stepan Krylov e Nikolay Grinko ☻☻☻☻
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