É até estranho imaginar que no nos cafundós de Ohio exista um vilarejo chamado Knockemstiff (algo como Baternelesrigidamente), mais estranho ainda é saber que aquele lugar tem seu lugar garantido na literatura pelas obras de seu cidadão mais ilustre, o escritor Donald Ray Pollock. Donald viveu por lá a maior parte de sua vida, mas ao observar a rotina de seus poucos cidadãos e as histórias que a cidade escondia criou histórias assustadoras sobre pessoas que precisavam apenas de uma brecha para deixar a violência invadir suas vidas. Localizada quase na fronteira com o Canadá e repleta de fazendas, a cidade possui cerca de 450 habitantes que costumam viver em residências afastadas na paisagem bucólica da região. Tendo como maiores empregadores as fábricas de aço, borracha e papel (o próprio escritor trabalhou nesta antes de se dedicar à literatura), Pollock percebe nesta realidade aparentemente tranquila um território propício para suas histórias em que a maldade humana sempre encontra um espaço para aparecer (e se alastrar). Quando a Netflix anunciou a produção de um dos seus romances mais conhecidos (no Brasil traduzido como O Mal Nosso de Cada Dia), os fãs ficaram curiosos para ver o resultado, principalmente aqueles que seu conteúdo se adequaria mais ao formato de minissérie - afinal, existe um grande número de personagens e fatos que atravessam mais de vinte anos. O cineasta Antonio Campos (filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes e da produtora ítalo-americana Rose Ganguzza) tinha uma tarefa árdua pela frente ao desbravar o emaranhado de crimes presente na obra, mas alcança um resultado eficiente em sua atmosfera tão densa quanto agressiva, especialmente pelo elenco dedicado. Basta ver o título para perceber que a religiosidade está impregnada na trama, mas através de um devotamento cego e doentio, especialmente em sua primeira parte quando conhecemos as histórias de Arvin e Lenora. Ambas crianças que se tornam órfãs pelo pensamento distorcido pela fé de seus pais. O pai de Arvin (Bil Skarsgaard) parece sempre perturbado pelo que testemunhou na Segunda Guerra Mundial, já o da garota, o pastor Roy Lafferti (vivido pelo impressionante Harry Melling - coloquem o rapaz em mais filmes, por favor!), está tão seguro em suas crenças que se torna cada vez mais distante da realidade. Arvin e Lenora acabam crescendo juntos e apegados um ao outro como se fossem irmãos,. Quando jovens (agora vividos por Tom Holland e Eliza Scanlen) são perseguidos por outros jovens locais, o que deixa Arvin sempre disposto a se meter em encrenca para proteger a irmã. Pairam ao redor deles alguns personagens sórdidos, como o pastor dissimulado Preston Teagardin (Robert Pattinson), um casal de serial-killers Carl (Jason Clarke) e Sandy (Riley Keough), a irmã do xerife Lee (Sebastian Stan). Entre crimes e inocências perdidas a trama avança até que todas as pontas desenvolvidas ao longe de suas mais de duas horas se amarrem auxiliada pela narração do próprio Donald Ray Pollock. Pelo visto o autor aprovou o resultado, ainda que muito do livro tenha sido cortado, especialmente no que diz respeito dos coadjuvantes (o que deixa alguns personagens muito unidimensionais e, neste ponto, cabe destacar o trabalho do elenco). Campos é um bom diretor de atores (basta lembrar seu trabalho anterior, Christine/2016 em que Rebecca Hall merecia uma indicação ao Oscar por seu trabalho) e todos aqui estão bastante convincentes como pessoas endurecidas pela vida (com destaque para o sotaque já que o filme misturas atores de várias partes do mundo). No fim das contas, condensar a história nas limitações de um filme realmente pode deixar a história ainda mais árdua de ser acompanhada pela sucessão de tragédias, mas o filme prende a atenção ao penetrar no universo de um escritor que ainda não havia encontrado espaço no cinema ou na televisão.
O Diabo de Cada Dia (The Devil All The Time / EUA-2020) de Antonio Campos com Tom Holland, Eliza Scanlen, Robert Pattinson, Bill Skarsgård, Haley Bennett, Sebastian Stan, Riley Keough, Jason Clarke e Mia Wakikowska. ☻☻☻
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