Tryne: atuação vigorosa em personagem difícil.
Filmes biográficos sobre artistas estão em alta (e até Madonna vai embarcar nesta tendência com ajuda da oscarizada Diablo Cody), mas poucas vezes se viu uma tão crua em sua sinceridade quanto Nico, 1988. A diretora italiana Susanna Nichiarelli resolveu contar a história da cantora alemã Christa Päffgen depois de seus anos como a mitológica Nico, ex-modelo que fez sucesso nos vocais do Velvet Underground em 1967 quando Andy Warhol se tornou empresário da banda. Foi Andy que criou o nome artístico de Christa (um anagrama da palavra Icon) e lhe abriu as portas no mundo da música. Considerada uma beldade na época e sua beleza germânica começava a chamar atenção de cineastas quando começou a se dedicar à música. Nico foi alçada ao posto de sex-symbol e logo foi reconhecida como dona de uma das vozes mais peculiares da história do rock. O timbre grave e com forte sotaque alemão lhe garantiu fama e reconhecimento, mas o sucesso se esvaiu aos poucos após a saída da banda em 1967 e, muita gente considera, que nestes anos seguintes a sonoridade da cantora ficou ainda mais impressionante. Nascida em 1938, Nico viu seu país ser devastado pela Segunda Guerra Mundial, se tornou modelo, se envolveu com vários artistas (Jim Morrison, Lou Reed, David Bowie, Alain Delon...) e passou suas últimas décadas de vida querendo se desvincular da imagem sedutora de antes. Nico, 1988 tem a proposta de recontar os dois últimos anos de vida cantora, reconstituindo seus últimos shows pela Europa e apresentando uma imagem desconstruída da roqueira loura que temos na memória. Para a diretora, foi na fase solo que a artista se tornou ela mesma, se distanciando da imagem que a mídia projetava sobre ela. O passado da cantora surge somente em duas cenas em que ela aparece ainda menina na Alemanha e em alguns flashes com cenas de arquivo que funcionam como contraste perante a mulher envelhecida, sem glamour, paranoica, egocêntrica e viciada em heroína que vemos na tela. Porém, longe de ser um retrato pejorativo, este conjunto de elementos contribui para deixar os números musicais ainda mas intensos e mórbidos (em determinado momento uma personagem confessa considerar sua música medonha), deixando a sensação que Nico (que prefere ser chamada o tempo inteiro de Christa) coleciona vários fantasmas que merecem ser exorcizados na mesma medida que a alimentam. Colabora muito para o pleno funcionamento do filme a atuação da dinamarquesa Tryne Dirholm, que mesmo não sendo parecida com a cantora em sua fase derradeira, atribui veracidade à personagem, especialmente o se aproximar do timbre único da cantora. Susanna Nichiarelli constrói um filme denso e interessantíssimo de assistir pela forma como explora o presenta da protagonista como um reflexo do passado. Entre as desventuras da turnê (que tem como destaque para no show proibido que faz na Rússia) o destaque fica por conta do relacionamento com o filho, Christian, um dos detalhes mais delicados de sua vida pessoa. Talvez Christian Aaron Bulogne, mais conhecido como Ari, receba no futuro um filme só para ele, já que é filho de Nico com o galã Alain Delon, que nunca reconheceu a paternidade do rapaz. Nico, com sua carreira e problemas para administrar também não dedicou muita atenção ao menino, que foi criado pela avó paterna. O filme deixa claro como este passado conturbado afetou o crescimento do menino, que aparece adolescente, com gosto pela fotografia e devastado por dentro. São nas cenas de Ari (vivido pelo ator ) com Nico que a personagem emerge de forma mais desarmada e afetuosa, ao mesmo tempo que se acentua a melancolia da personagem. Dono de uma precisão narrativa impressionante sobre uma artista controversa, Nico 1988 é um daqueles filmes que prende atenção do início ao fim (literalmente, já que termina no início do derradeiro passeio de bicicleta que vitimou a cantora em 1988 em Ibiza).
Nico, 1988 (Itália / Bélgica - 2017) de Susanna Nichiarelli com Tryne Dirholm, John Gordon Sinclair, Anamaria Marinca, Sandor Funtek, Thomas Tabacci, Karina Fernandez e Calvin Demba. ☻☻☻☻☻
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