Jessie e Jesse: viagem ao mundo dos pensamentos inseguros.
Sempre acho engraçado quando a internet é invadida por um bando de vídeos dizendo "final explicado" de determinado filme. Acho que o problema foi eu ter começado a ver filmes de David Lynch na adolescência (e vê-lo repetindo em entrevistas que não explicaria filme algum). O cinema americano tem um compromisso com o realismo que por vezes atrapalha os espectadores que ficam acostumados a histórias com início, meio e fim e quando se deparam com algo que foge desta cartilha costuma classificar o filme como ruim. Embora esteja longe de ser um David Lynch, o que é muito bom, Charlie Kaufman tem explorado em seu cinema esta ousadia de romper com o realismo. No início foi como roteirista de Natureza Quase Humana/2001, Quero Ser John Malkovich/1999 (indicado ao Oscar de roetiro original) e Adaptação/2002 (indicado ao Oscar de roteiro adaptado), filme que quebravam a ideia de que a narrativa deve acontecer somente no plano real. Acabou ganhando um Oscar por seu trabalho em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças/2004 onde um casal resolve apagar o outro da memória através de um tratamento revolucionário. Depois migrou para a direção gerando mais estranhamento do que aplausos em Sinedóque, Nova York (2008) e com a animação inovadora Anomalisa (2016). Agora ele resolve adaptar um roteiro que é um prato cheio pelo apreço ao que se passa dentro da mente humana. Eu Estou Pensando em Acabar com Tudo é baseado no livro de Ian Reid e encontrou na Netflix o terreno fértil que precisava para ser produzido. A premissa é bastante simples: a primeira visita aos pais do namorado no natal. Basta este ponto de partida para que Kaufman viaje na proposta do livro criando um road movie diferente que transcende a estrada para explorar o trajeto na mente dos personagens. Todas as inseguranças, paranoias e conflitos de um relacionamento que está começando aparecem ali, sejam nos diálogos tensos, nos pensamentos ou na chegada à casa de uma família desconhecida de quem, até semanas atrás, era um estranho. Kaufman constrói então uma amálgama incômoda, que mistura o que parecia ser uma comédia romântica com atmosfera de suspense. Quando a protagonista (a ótima Jessie Buckley) chega à casa dos pais do namorado (Jesse Plemons cada vez mais craque em viver tipos estranhos) a coisa se expande em sua percepção sobre aqueles personagens, ora parecem mais jovens, ora mais velhos, por vezes são desagradáveis, simpáticos e até bizarros (ponto para os excelentes trabalhos de David Thewlis e especialmente Toni Collette). Mas a coisa não termina por aí, eles precisam voltar para casa e as paradas pelo caminho só intensificam os pensamentos da moça. Ou não seria nada disso? Já que diante do livro há quem afirme que tudo acontece na mente de outro personagem. Kaufman pode ter mudado o foco do livro, mas isso não impede que se deleite nas possibilidades que a história possui. Muitos vão achar um exagero o que ele faz com aqueles longos diálogos dentro do carro ou com o casal de dançarinos que podem representar o desfecho daquele romance ou naquele discurso do final (que repete os clichês tão criticados pela protagonista dentro do carro). Diante de uma plateia envelhecida por maquiagens caricatas o efeito é propositalmente postiço e estranho. Embora muitos estejam criticando o filme por sua estrutura surreal trata-se de uma obra que espanta a mesmice e resulta (acredite!) no filme menos complicado de seu diretor. Charlie Kaufman faz aqui seu filme mais redondo, embora, para muitos, ele ainda pareça um poliedro quebrado.
Eu Estou Pensando em Acabar com Tudo (I'm Thinking of Ending Things/EUA - 2020) de Charlie Kauffman com Jessie Buckley, Jesse Plemons, Toni Collette, David Thewlis, Guy Boyd, Abby Quinn e Oliver Platt. ☻☻☻☻☻
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