sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Ciclo Verde e Amarelo: O Abismo Prateado

Júnior e Alessandra: olhos nos olhos através do vidro. 

De vez em quando canções inspiram diretores a fazerem filmes. Foi assim com Cacá Diegues nos episódios de Veja Esta Canção/1994 (inspirado músicas de Jorge BenJor, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque), com  Paul Thomas Anderson em Magnólia/1999 (baseado nas músicas de Aimée Mann) e recentemente com músicas da Legião Urbana, seja com Faroeste Caboclo/2013 ou o ainda inédito Eduardo e Mônica (que convenhamos, as tramas já estavam escritas por Renato Russo faz tempo). Em 2011 foi a vez de Karim Aïnouz criar uma obra pautada num clássico da MPB imortalizado na voz de Maria Bethânia. Olhos nos Olhos é uma das composições mais famosas de Chico Buarque e seus versos fortes sobre o fim de um relacionamento retrata um trajeto que vai da angústia até a superação. Fugindo do óbvio, Karim faz um filme bem diferente do que se espera de uma canção de rasgar o coração. Torna tudo mais contido, internalizado e imagens metafóricas que falam mais do que diálogos. A trama conta a história de Violeta (Alessandra Negrini, que colheu muitos elogios quando o filme foi exibido no Festival de Cannes), uma dentista, mãe e esposa que segue sua rotina tranquilamente até que recebe uma mensagem do marido dizendo que vai embora para não mais voltar e, como se não bastasse, ele conclui dizendo que não a ama mais. A partir dali, o mundo de Violeta sai do eixo. Ela passa a procura-lo mesmo sem ter noção precisa de onde ele está. O filme compõe este desamparo numa jornada rumo ao incerto com muitos closes em sua protagonista e ausência de respostas -  já que a protagonista não as possui. O próprio marido (Otto Júnior) se torna um enigma. Da acalorada cena de sexo, passando pelo beijo através do vidro e a mensagem deixada, existe um trajeto que se complementa com as primeiras cenas no mar sem um sol radiante, pela forma como caminha de sunga entre a multidão ou quando se apresenta nu pela casa vazia. Ironicamente sua exposição física que não é suficiente para revelar seus sentimentos sobre aquela relação. O filme ainda tempera a jornada de Violeta com muitos barulhos, que colaboram para o incômodo que recai sobre ela (e a plateia), pelo menos até que ela aprenda a lidar com eles. Enquanto assistia ao filme, lembrei que a letra era composta  por um homem e que seria interessante se fosse o inverso. Aïnouz deve ter pensado a mesma coisa quando apresenta à Violeta a uma espécie de espelho: o personagem e Thiago Martins. Com a filha ao lado e sem a esposa por perto, ele ajuda a assentar as emoções de Violeta. É interessante como neste momento o caos ao redor da personagem se acalma. As várias cenas em que olha de cima para baixo (como se contemplasse o abismo) dá lugar a uma paisagem plana, onde vislumbra o que está à sua frente. Também é divertido que coloquem Thiago desafinando a canção em que o filme se inspira num dos raros momentos descontraídos do roteiro. A maioria dos diretores faria um dramalhão com esta história, mas O Abismo Prateado se distancia sempre disso. É verdade que está longe de ser o melhor filme do diretor (que também assina Madame Satã/2002 e A Praia do Futuro/2014), mas se torna interessante pela forma nada óbvia com que se constrói em torno de uma canção tão conhecida. 

O Abismo Prateado (Brasil/2011) de Karim Aïnouz com Alessandra Negrini, Otto Júnior e Thiago Martins. ☻☻

Nenhum comentário:

Postar um comentário