Spoladore e Mutarelli: a voz de anjo e a mente perturbada.
Nas andanças do cinema brasileiro pelo Oscar, acho que o cineasta Paulo Machline é o mais esquecido pelo público brasileiro. Foi dele o curta-metragem Uma História de Futebol (baseado no conto de José Roberto Torero, sobre a infância de Pelé) que concorreu ao Oscar na categoria melhor curta de ficção em 2001. Apesar disso, seu primeiro longa-metragem só foi lançado em 2010 e não recebeu a devida atenção, talvez as pessoas esperassem um filme agradável como seu curta consagrado, mas o diretor surpreendeu com uma obra surpreendentemente densa. Baseado na obra de Lourenço Mutarelli (autor de O Cheiro do Ralo/2006), Natimorto é um filme que prima pela estética arrojada. É um tamanho cuidado com o enquadramento, com os planos, cores e atmosfera que estranhamos ainda mais como um filme de cenas tão belas pode parecer um pesadelo conforme caminha para o desfecho. Antes, o filme foi levado para o teatro numa adaptação de Mario Bortolotto e talvez por isso, o público ainda sinta um certo ar teatral - afinal são dois atores em cena a maior parte do tempo em um único cenário - mas quem embarcar em sua história delirante irá perceber que Machline faz cinema da melhor qualidade (e com bastante vaidade sobre isso). O filme se inicia no encontro de um agente musical (o próprio Lourenço que já se mostrava um ator mais que convincente na adaptação de Heitor Dhalia para O Cheiro do Ralo) com uma cantora lírica (Simone Spoladore) que chega na cidade para um teste. Encantado com a voz da moça, a proximidade de ambos gera ciúme na esposa dele (Betty Goffman) e causa uma discussão. Expulso de casa, desiludido com o mundo e apaixonado pela voz da cantora, o homem faz uma proposta inusitada à ela: viver num quarto de hotel isolado do mundo para o resto da vida, ou pelo menos até quando durarem suas economias. O diretor e o elenco conseguem trabalhar com bastante eficiência tudo que há de romântico e assustador numa proposta dessas - e conforme a narrativa avança, percebemos que todo o lirismo que poderia haver evapora com as esquisitices daquele homem aparentemente inofensivo. Além de declarar-se assexuado por opção, ele ainda tem o hábito de associar aquelas fotos no verso dos maços de cigarro com as cartas de tarô. Sendo assim, cada figura seria o anúncio de como seria o dia de quem a recebesse. Ele ainda conta histórias para entreter sua companheira de jornada, mas se antes estas soam nostálgicas e graciosas, aos poucos se tornam cada vez mais assustadoras. "Ninguém conta uma história à toa", diz ela quando percebe que aquele homem doce que conhecera não é mais o mesmo. Aos poucos a intimidade entre os dois irá mostrar tudo que torna a ideia de se isolar do mundo impossível de se concretizar, uma vez que acabam trazendo para aquele mundinho particular tudo o que lhes assombra no mundo exterior. Fiquei impressionado com o uso da luz no filme, especialmente na forma como oscila entre o verde e o vermelho como se um enorme semáforo oscilasse entre o siga e o pare insistentemente (ou então anunciasse a esperança em contraste com o desejo - ou o sangue). Tanto cuidado com a aparência do filme é mais do que justificável já que existe no protagonista uma busca pela beleza, pelo divino, pela isenção dos pecados que contrasta com o que vemos na tela quando o personagem de Lourenço se torna cada vez mais doentio. A perfeita beleza é algo inatingível e é isso que o filme parece afirmar todo o tempo (especialmente quando deixa o canto da mulher para nossa imaginação). Mesmo com belíssimas cenas, Natimorto as utiliza para retratar uma espécie de inferno particular que promete devorar, literalmente, seus personagens após a arrepiante cena final.
Natimorto (Brasil/2010) de Paulo Machline com Simone Spoladore, Lourenço Mutarelli e Betty Goffman. ☻☻☻☻
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