John Cameron Mitchell: ótimo diretor, ator, roteirista, cantor...
Involuntariamente acabei falando dos filmes de John Cameron Mitchell em ordem cronológica inversa e posso dizer que deixei o melhor para o final. Hedwig é uma peça escrita por Mitchell com ajuda do compositor Stephen Trask nas (ótimas) canções. A peça sobre o transexual que vendeu a alma para o rock se tornou um musical premiado, recebendo recentemente uma montagem paulista (a mesma que nasceu no Rio de Janeiro com elenco encabeçado por Paulo Vilhena e direção de Evandro Mesquita -devo dizer que em sua versão para os palcos brasileiros algumas ideias estapafúrdias não ajudaram muito, como o fato de Hedwig ser interpretada por dois homens, e que as canções perderam o impacto com a tradução e interpretação de nossos atores - que não cantam, apenas tagarelam as letras sobre uma banda enfurecida que não deixa ouvir o que eles dizem). Hedwig virou filme em 2001 pelas mãos de seu autor, Mitchell que ainda interpreta, com gosto, o protagonista. Devo dizer que fico em dúvida se Mitchell é melhor ator ou diretor (já que consegue sempre lidar com uma série de ideias não muito simples de forma articulada e original, seja no drama - como o recente Reencontrando a Felicidade com Nicole Kidman - ou no drama erótico - Shortbus/2006). Ao encarnar Hedwig, Mitchell entrega uma atuação tão comovente quanto impagável, ele simplesmente desaparece em cena (quem já viu o moço vai ficar surpreso com sua cara de rapaz comportado) deixando-se levar pela personagem amargurada por ter suas canções roubadas por um ex-namorado, Tony Gnosis (Michael Pitt, que sempre convence em tipos esquisitos) que se torna famoso a partir delas. Hedwig na verdade é um rapaz nascido na Alemanha Oriental e padeceu do lado comunista do muro (como deixa bem claro primeira canção do filme, "Tear me down", que funciona como cartão de apresentação da trama). Para sair de seu país de origem se submeteu a uma cirurgia de mudança de sexo mal sucedida (que dá origem à "polegada raivosa" do título em inglês e ao nome de sua banda), tendo que assumir a identidade da mãe. O filme constrói a trajetória da personagem através das músicas (que possuem letras geniais, como "The Origin of Love" onde explica sua sexualidade híbrida ou o hino "Midnight Radio"). Ao contrário de Shortbus, Mitchell tem o maior cuidado para não deixar seu filme explicíto, optando por momentos puraramente lúdicos - como a utilização das canções, de desenhos de traço infantil para mostrar cenas desagradáveis da vida de sua estrela e o simbolismo das balas em formato de ursos sufocados dentro do pacote plástico. O filme tem tantas ideias e referências tão bem articuladas (glam rock, Nina Hagen, drag queens, Farrah Fawcett...) que é impossível ficar indiferente ao mundo incomum que Mitchell nos convida a mergulhar. Indo da comédia ao drama (tem como não se comover com Hedwig pedindo para amá-lo simplesmente do jeito que ele é?), o filme se equilibra entre a caricatura, o realismo e a fantasia de maneira que parece até fácil. Além dos prêmios de filme e direção em Sundance (2001) o filme ainda foi premiado no Festival de Berlim no ano de seu lançamento. O filme ainda obteve a merecida indicação ao Globo de Ouro (2002) de melhor ator de comédia/musical para Mitchell e acabou virando cult (tão cult que permanece inédito em DVD no Brasil). É o tipo de filme para ver e comprar a trilha, já que o filme merece lugar entre os melhores musicais de todos os tempos (é infinitamente superior às fraudes feitas por Rob Marshall). Voltando à minha dúvida se JCM ser melhor ator ou diretor, o cara ainda manda muito bem no palco (voz correta, punch rockeiro e a sensibilidade nas interpretações que colocam muito rockstar no chinelo)! O ato final, que é puro surrealismo, é de uma profundidade inacreditável e retrata fielmente o momento em que Hedwig percebe que na vida tudo é transitório, das vitórias às derrotas.
Hedwig - Rock, amor e Traição (Hedwig and The Angry Inch/EUA-2001) de John Cameron Mitchell com John Cameron Mitchell, Michael Pitt, Mirian Shor, Michael Aronov, Rob Campbell e Stephen Trask.
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