quarta-feira, 31 de agosto de 2022

HIGH FI✌E: Agosto

 Cinco filmes assistidos no mês que merecem destaque:

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PL►Y: Como ser Malvada

 
Emma e Janina: delicioso contraste. 

Construir a identidade é uma das coisas mais difíceis na vida do ser humano. Tentar encontrar aquele equilíbrio entre o que se quer, o que se pode e o que não de deve fazer... articular o que te ensinaram com o que você deseja, saber lidar com as relações de forma a aceitar o que não pode ser alterado e seguir em frente... enfim, parece complexo demais (e é, haja terapia...) mas o filme alemão Como ser Malvada consegue trabalhar algumas destas questões naquela fase em que a construção de quem se é começa a se tornar mais latente no indivíduo: a adolescência. No entanto, para ficar diferente da maioria dos filmes do gênero, a produção utiliza um toque de fantasia que funciona melhor do que se imagina ao colocar no centro da narrativa a filha do coisa ruim, sim, isso mesmo, uma herdeira do inferno, a filha de Lúcifer é uma das personagens principais do filme. Como os tempos mudaram o anjo caído (vivido pelo veterano Samuel Finzi) agora administra uma empresa em que acompanha as maldades que andam fazendo por aí (e haja funcionários para isso) e no meio de tudo, sua filha, Lilith (Emma Bading) funciona como uma espécie de aprendiz (lidando com tretas online, claro). No entanto, ela quer fazer algo mais prático e importante. Como ela ainda é jovem, o pai não confia muito em suas habilidades e, afim de que ela fracasse, a manda para uma tarefa quase impossível: transformar a doce e educada Greta (Janina Fautz) em uma garota malvada. Lilith acha que vai tirar a lição de letra, mas vinda de uma família humilde e com uma paciência de Jó, Greta lhe dá muito mais trabalho do que imagina. Nada parece capaz de tirar a menina do sério. Das recorrentes humilhações que passa na escola, passando por sua total invisibilidade perante aos olhos dos meninos e a aceitação plena das ordens de seus pais, Greta realmente parece merecer o céu. Mas a que preço? Enquanto a novata Lilith começa a criar atritos na escola, o filme começa a mergulhar em um campo muito interessante ao fazer pensar que a passividade tem um preço e ele pode ser bastante alto se você não tiver um pouquinho de malícia para se impor no mundo e, não por acaso, Greta e Lilith (em saboroso contraste nas atuações) se tornam amigas e a influência de uma sobre a outra começa a provocar alguns efeitos inesperados. Obviamente que Como ser Malvada tem um bocado de ingenuidade, mas funciona ao criar uma história sobre crescimento que foge um pouquinho do óbvio, além de deixar as duas personagens principais em torno do mesmo dilema: até que ponto vale a pena agradar os pais e esquecer o que se quer. Essa construção identitária entre ser o que você é com o que os outros esperam que você seja nutre o desfecho do filme e, de certa forma, deixa claro que até os bonzinhos precisam extrapolar de vez em quando (e os malvados baixar a guarda quase sempre). O filme está perdido no imenso catálogo da Netflix (com o nome original em alemão, o que dificulta bastante a busca por aqui, e merece uma olhada!

Como ser Malvada (Meine teuflisch gute Freundin/Alemanha - 2018) de Marco Petry com Emma Bading, Janina Fautz, Ludwig Simon, Samuel Finzi, Emilio Sakraya, Oliver Korittke e Thomas Klemens. ☻☻

terça-feira, 30 de agosto de 2022

PL►Y: Adeus, Solo.

Red e Souleymane: crônica de uma morte anunciada. 

Ramin Bahrani concorreu ao Oscar ano passado por seu roteiro adaptado de O Tigre Branco (2021), antes ele já havia chamado atenção por fazer uma nova adaptação de Fahrenheit 451 (2018) para a HBO e por seu drama imobiliário 99 Casas (2014). No entanto, ele chamou atenção da crítica com seu quarto longa metragem que figurou entre os dez melhores filmes de 2008 na lista do conceituado Roger Ebert. Adeus, Solo é de fato um filme que emociona de forma diferente, além de apresentar temáticas que são recorrentes na obra de Bahrani. Nascido na Carolina do Norte, nos filmes de Bahrani as relações de poder estão sempre presentes, assim como um olhar especial na hora de subverter as expectativas do espectador quanto aos seus personagens, especialmente sobre aqueles que poderiam ser vistos como heróis. O Solo do título é um motorista de táxi (Souleymane Sy Savane) vindo da Nigéria, ele foi para os Estados Unidos atrás de uma vida melhor. Casado, com a esposa grávida e com uma filha, Solo é cheio de esperanças com o que a vida lhe reserva e, talvez por este motivo, fique tão instigado com um passageiro que entra em seu veículo e pede para que ele o leve em um lugar diferente numa data bastante específica: no alto de um conjunto de montanhas em que a corrente de vento é tão forte que a neve é capaz de subir ao invés de descer. Em tom de brincadeira, Solo indaga o passageiro o que ele irá fazer por lá e presume que o que aquele senhor fará não será nada divertido. Uma proximidade se estabelece aos poucos entre o motorista e aquele senhor taciturno chamado William (Red West), nascendo uma amizade um tanto acanhada pela preocupação existente. William não possui parentes próximos. Não gosta de falar de sua história e talvez a única pista que Solo encontre sobre seu passado esteja no cinema ao qual pede para ser levado com frequência. A história de vida de William permanece em mistério e sempre que Solo tenta se aproximar um pouco mais é repreendido, com violência até. Enquanto o motorista enfrenta problemas em sua vida conjugal, ele ainda tenta fazer aquele senhor perceber que as situações ruins irão passar e resta apenas persistir para que tudo melhore. Existe um contraste interessante entre os dois personagens, valorizado ainda mais pelo rosto de pedra de Red West e todo o carisma irresistível de Souleymane. Este contraste valoriza o filme, mesmo que tenhamos a exata percepção de que o desfecho será imutável (e deixará um nó na garganta quando a frase do título estiver prestes a sair). Adeus, Solo pode ser um filme sobre desistência da vida, mas também sobre fraternidade, amizade e solidão (o nome Solo não está no título por acaso), mas é sobretudo uma obra bastante sensível que já sinalizava o talento que Bahrani possui para envolver o espectador nas emoções dos seus personagens. 

Adeus, Solo (Goodbye, Solo - EUA/2008) de Ramin Bahrani com Souleymane Sy Savane, Red West, Diana Franco Galindo, Carmen Leyva e Jim Babel. ☻☻☻

Na Tela: X

Mia Goth: talento reluzente em terror surpreendente. 

Quando X chegou nos cinemas americanos, eu li e ouvi tantas críticas positivas que imaginei: será que é tudo isso mesmo? A desconfiança conteve bastante minhas expectativas, especialmente com base na premissa "da equipe que vai para uma fazenda isolada nos cafundós do interior americano e se envolvem num verdadeiro banho de sangue". De certa forma foi bastante positivo imaginar que o filme do diretor Tin West era uma slasher genérico que bebia diretamente no apelo sexual de jovens fogosos nos originais dos anos 1970. Misturar horror e pornografia é quase a base do gênero (basta lembrar de um dos comentários de Pânico/1996 que perder a virgindade num filme de terror é praticamente assinar a sentença de morte), portanto, utilizar uma equipe de filmes pornôs já era uma sacada bastante irônica. A diferença na percepção de tudo que X poderia ser está na sua produtora, a A24, que tem feito história no cinema indie do Tio Sam com lançamentos de peso e o catálogo mais interessante dos últimos tempos. Enquanto a maioria dos grandes estúdios dos EUA temem encontram dificuldade [sic] para bancar filmes originais, a A24 prova que ainda existe criatividade por lá - embora o Oscar faça vista grossa para tudo que o estúdio representa hoje. Sendo assim, ao assistir X (que por aqui recebeu o aposto "A Marca da Morte" por alguém que não faz a mínima ideia do que a letra do título significa perante a censura americana) o filme me surpreendeu positivamente por todas as camadas que insere numa história que poderia ser só mais um terror sanguinolento. A começar pela ambientação no ano de 1979 (o ano em que nasci e que marcava o final da década em que a contracultura e a liberação sexual alcançava seu auge antes do fantasma da AIDS pairar sobre a década seguinte) em contraste com o discurso conservador que assistia tudo aquilo com declarada insatisfação. No filme, o discurso da moral e os bons costumes está em um programa de televisão que sempre aparece em cena com um pastor pregando sobre a danação aos seus fieis fervorosos. Do outro lado está a equipe que chega na fazenda texana cheia de ideias para fazer um filme pornô com alguma pretensão artística (que era comum antes da chegada do home video e seus VHS). Na equipe estão o produtor Wayne (Martin Henderson), uma diva do gênero, Bobby-Lyne (Britany Snow), a novata com ambições de se tornar estrela mundial Maxine (Mia Goth), o astro Jackson (Scott Mescudi), a assistente de direção Lorraine (Jenna Ortega) e seu namorado diretor RJ (Owen Campbell). Todo mundo sabe o que vai acontecer com a equipe quando entra na sala de cinema, a diferença está na desenvoltura com que Tin West conduz o início da trama com bastante paciência, como se fosse um drama que deixa o suspense fermentando abaixo do que se vê. O entrosamento dos atores e a naturalidade com que encaram seu ofício lembram Boogie Nights (1997) de Paul Thomas Anderson e ajuda ao espectador se importar com cada um dos personagens. Se você acha o proprietário da fazenda estranho (Stephen Ure), espere até conhecer a esposa dele que parece ter vivido por anos numa catacumba nas fazendas do Texas. A senhorinha chamada Pearl explode de desejo por Maxine e o desequilíbrio se estabelece, fazendo com que a segunda parte do filme se inicie. Ela enxerga uma identificação com a jovem que, não por acaso é interpretada pela mesma atriz, a Mia Goth. Mia está ótima na pele de Maxine e está mais do que convincente na pele de Pearl, num trabalho duplo brilhante (digno de Oscar, se a Academia não tivesse preconceito com atrizes em filmes de terror). Vale destacar que Mia é neta da atriz brasileira Maria Gladys e tem chamado cada vez mais atenção em seus trabalhos, os olhos expressivos acompanhados de sobrancelhas quase inexistentes tornam sua imagem ainda mais interessante na tela de cinema. Quando o banho de sangue começa, sabemos que o desfecho terá aquele duelo final e ainda guarda uma surpresa. Muita gente ressalta no filme a hipocrisia do discurso conservador, que projeta no outro um desejo sufocado é seu, mas penso que existe um outro aspecto que deixa o filme ainda mais rico. O fantasma do envelhecimento e do corpo que se deteriora e "afeta" o prazer. Existem vários diálogos no filme sobre a impossibilidade de satisfazer desejos sexuais devido à idade, também existem pontos sobre a imagem que começa a se alterar com o tempo e  o fato de Pearl e Maxine serem interpretadas pela mesma atriz reforça ainda mais esta ideia. Uma projeta seu horror na outra e deixa tudo mais interessante. Em X (que vem do selo X-Rated destinada aos filmes pornôs) os desejos reprimidos e o tempo, que cria uma contagem regressiva para satisfazê-los são os grandes vilões da história.  Esta ideia é tão boa que o filme já tem uma sequência em produção: Pearl (em pessoa). 

X - A Marca da Morte (X - EUA / 2022) de Tin West com Mia Goth, Martins Henderson, Britany Snow, Jenna Ortega, Scott Mescuddi, Owen Campbell e Stephen Ure. ☻☻☻

domingo, 28 de agosto de 2022

.Doc: O Apocalipse de Um Cineasta

Sheen, Coppola e os figurantes: Lei de Murphy nas Filipinas. 

Por vezes a produção de um filme pode sofrer tantos percalços que já renderia um filme. Algumas vezes rende dramatizações para reconstituir, mas quando temos rico acervo de cenas de arquivo pode virar um documentário surpreendente. O Apocalipse de um Cineasta é sobre a feitura de uma das maiores obras-primas de todos os tempos: Apocalypse Now (1979) o filme de guerra de Francis Ford Coppola que quase acabou com sua vida. A ideia era fazer uma adaptação livre de O Coração das Trevas de Joseph Conrad, transpondo a história para a Guerra do Vietnã. Quem leu o livro sabe que a espinha dorsal do livro e do filme são as mesmas, mas o desenrolar dos fatos bem diferente... Se ao ver o filme temos a dimensão de toda a genialidade do diretor em seu processo criativo, vendo este documentário (com base nos registros da esposa de Coppola durante as filmagens e de Faz Bahr e George Hickenlooper para o que seria um making of tradicional), temos a exata dimensão de como nada foi fácil nesta produção. Tudo que pudesse dar errado, deu. Foram 238 dias direcionados ao caos completo e a tentativa de contornar tudo o que acontecia durante as filmagens. Entre cenas de arquivo, momentos cortados do longa, citação à narrativa de Orson Welles para o O Coração das Trevas, o filme se constrói na angústia da filmagem de um dos filmes mais adorados de todos os tempos. Situações como a interrupção das filmagens pelas forças armadas filipinas (onde o longa foi filmado), o ator principal Martin Sheen sofrendo infarto, Dennis Hooper chapado o tempo inteiro, Marlon Brando enorme e sem saber o texto, a demissão de Harvey Keitel, um tufão que destruiu boa parte dos cenários... a Lei de Murphy imperava no set. Obviamente que o resultado foi um desânimo generalizado e o desespero pessimista do cineasta que não conseguia ver uma forma do seu filme finalizado. Com o cronograma estourado, orçamento esgotado foram gastos três anos para colocar em ordem o que havia sido filmado e completar as cenas que faltavam. No entanto, enquanto Coppola se desesperava, encontrava apoio em sua equipe e esposa para concluir o projeto que imaginava concluir em apenas 16 semanas. No entanto, O Apocalipse de Um Cineasta é mais do que sobre uma catástrofe, mas um triunfo mediante todos os percalços que é fazer cinema. O documentário me faz indagar se a visceralidade do filme seria a mesma sem os problemas que enfrentou. Vendo este documentário eu entendo porque, hoje, Coppola prefere ser produtor, filma de vez em quando e não está nem aí para o que acham dos seus últimos filmes. O cara já deu sangue, suor, lágrimas e o coração para as trevas de si mesmo na filmagem de um dos seus maiores clássicos - e aquela cena final um tanto deslocada é a prova de que a dor permanece até hoje. 

Francis Ford Coppola - O Apocalipse de Um Cineasta (Heart of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse / EUA - 1991) de Faz Bahr, Eleanor Coppola e George Hickenlooper com Francis Ford Coppola, Eleanor Coppola, Sam Bottoms, Marlon Brando, Robert De Niro, Laurence Fishburne, Robert Duvall, Dennis Hopper e Martin Sheen. ☻☻☻

NªTV: Uncoupled

Emerson, Neil e Patrick: a idade fora do armário. 

Eu ainda estou penando para colocar minhas séries em dia (para você ter ideia, já ultrapassei quinze séries pendentes para assistir), mas encontrar um desvio do porte de Uncoupled é uma delícia. Com oito episódios que beiram uma hora de duração, o programa se assiste sem fazer muito esforço com seu humor sarcástico sobre a vida real, especialmente sobre os gays maduros de Nova York. As conversas e dilemas do protagonista renderam comparações com a cultuada Sex & the City, mas eu, particularmente prefiro o resultado alcançado nesta aqui. A série estrelada por Neil Patrick Harris tem o trunfo de parecer ser um retrato da vida real (lembrando que Harris é gay assumido e casado na vida real), ainda que seja a vida real de um grupo bem específico de gente bem de vida nos Estados Unidos. Na verdade, tudo está bem em termos financeiros, porque o coração de Neil, ou melhor, de Michael está em pedaços desde o primeiro episódio, afinal, após realizar uma festa surpresa pra seu companheiro, Colin (Tuc Watkins) com quem vive há 17 anos, ele descobre que Colin está prestes a viver sozinho em outro apartamento, outro bairro... ou seja, o relacionamento que parecia tão sólido de desfez subitamente. Obviamente que Michael irá viver o luto pelo fim do relacionamento, irá tentar encontrar uma causa, as nóias sobre Tuc estar com outro cara são inevitáveis... mas passando por tudo isso, vem o que dá um sabor especial para a série: abordar gays maduros e a forma como são vistos em uma sociedade que cultua a juventude e tem ojeriza de tudo que possa parecer velho. Michael vai sofrer um pouquinho para entender os signos dos relacionamentos de 2022 - como o uso de aplicativos, o desprezo ao uso de preservativos e, digamos, lidar com novos parceiros de estatura diferenciada... Embora tenha uma cena apimentada aqui e outra ali, o seriado é moldado para ter apelo para além da comunidade LGBTQIAN+, uma vez que consegue universalizar o luto com o fim de um relacionamento e a dificuldade de encontrar um novo parceiro quando as referências de beleza e relações são outras. Debaixo de todas as gracinhas, Uncoupled é mesmo sobre envelhecer e o impacto disso nas relações, seja pela crise de meia-idade de Colin, pelas inseguranças de Michael ou de sua amiga, Suzanne (Tisha Campbell) uma mãe solo que também tem problemas para encontrar um parceiro. De brinde temos Marcia Gay Harden na pele de uma ricaça que ainda não se recuperou de ser trocada por uma mulher algumas décadas mais jovem. Os amigos de Michael, o famoso Billy (Emerson Brooks) e o marchand Stanley (Brooks Ashmanskas) complementam o olhar da série sobre os relacionamentos na maturidade e seus percalços. Com o gancho para uma nova temporada, resta torcer para a Netflix não decepcionar os espectadores que curtirem esta diversão. 

Uncoupled (EUA-2022) de Jeffrey Richman e Darren Star com Neil Patrick Harris, Tuc Watkins, Tisha Campbell, Marcia Gay Harden, Brooks Ashmanskas, Emerson Brooks, Nic Rouleau, André De Shields, Gilles Marini e Dan Amboyer. ☻☻☻

KLÁSSIQO: O Espelho

 
Margarita: a vida como um reflexo.  

Existe um certo consenso de que O Espelho é o filme mais difícil do cultuado cineasta russo Andrei Tarkovsky. Eu poderia dizer que este foi o motivo para eu demorar tanto para comentar sobre ele, mas, de alguma forma, a dificuldade de encontrar uma versão legendada do filme deve estar relacionada à fama que precede a obra. Adepto de filmes com narrativas em que se mistura tempos, sonhos, fantasias e longos silêncios, neste longa o diretor insere também situações autobiográficas. O resultado lembra muito as comparações que sempre ouvidas entre o cinema de Tarkovsky e o de Ingmar Bergman, especialmente pelo mergulho psicológico no personagem principal. Por isso mesmo, fica mais interessante notar que o protagonista não aparece na fase adulta, na maioria das vezes o que ouvimos é sua voz narrando ou dialogando como se a câmera fossem seus olhos e a forma como enxerga o mundo. Nesta particularidade, ele enxerga a esposa com a mesma aparência de sua mãe, embora as duas sejam de épocas distintas e temperamentos diferentes. Freud explica. Da mesma forma, existe um propósito de confundir (ou desafiar?) o espectador sobre o passado e o presente do personagem, seja pelo uso da mesma atriz, o uso de preto e branco, cenas jornalísticas, enfim, em O Espelho tudo se reflete e projeta no que está em cena. As mulheres, as crianças, os filhos, a afetividade... não satisfeito com isso, o diretor ainda espalha vários espelhos pelo cenário, além de criar algumas cenas fantasmagóricas habitando a mente do narrador chamado Aleksei. Filmado em cores, sépia e preto e branco, o filme busca a reprodução do fluxo de consciência do personagem, embaralhando fatos, lembranças e delírios de forma nada linear mais pela intenção de provocar o espectador do que ter início meio e fim. O quarto longa-metragem do diretor para o cinema (curiosamente entre dois filmes de ficção científica, Solaris/1972 e Stalker/1979 que me despertam sensações opostas) soa para alguns como uma obra-prima, para outros, o exercício mais hermético e cerebral de um cineasta brilhante que aqui parece ter desejado se tornar indecifrável (não que isso seja um problema). No entanto, mesmo composto por diversas camadas, ao chegar ao seu desfecho, o filme deixa a sensação de que olhar o passado é como ver a vida refletida no espelho do título (e tudo fica ainda mais bonito se lembrarmos que o que vemos no espelho é apenas a luz refletida). 

O Espelho (Zerkalo/ União Soviética - 1975) de Andrei Tarkovsky com Margarita Terekhova, Oleg Yankovskiy, Filipp Yankovskiy, Ignat Daniltsev, Nikolay Grinko, Alla Demidova e Yuriy Nazarov. ☻☻☻

#FDS Viggo Mortensen : 13 Vidas

 
Colin, Joel e Viggo: desafio dos grandes. 

Finalizando este #FimDeSemana dedicado ao ator Viggo Mortensen, está um longa fresquinho que entrou em cartaz no Prime Video recentemente. 13 Vidas é baseado na história dos meninos de um time de futebol que ficaram presos em uma caverna durante uma tempestade junto ao treinador no ano de 2018. O problema foi que enquanto exploravam a caverna como diversão, uma tempestade se iniciou e eles começaram se abrigar cada vez mais fundo na caverna. Com o nível da água subindo constantemente, eles não conseguiram sair. O conhecimento de que estavam na caverna não deixou muitas esperança de que estavam vivos depois da forte chuva. No entanto, vários mergulhadores experientes do mundo inteiro se voluntariaram para ajudar e descobriram que todos estavam vivos. Surgia então um outro problema: como tirá-los de lá. O grupo (com meninos de idade entre onze e dezesseis anos) se embrenhou por vários quilômetros dentro da caverna, o que dificultava bastante o resgate devido ao trajeto tão irregular quanto arriscado e a quantidade de oxigênio necessária para a jornada. Obviamente que o filme do americano Ron Howard corta muita coisa do que foi o resgate na vida real e, ainda assim, seu filme tem duas horas e meia de duração. A boa notícia é que o diretor tem um dos melhores momentos de sua carreira neste filme, desde Frost/Nixon (2008) que ele não se mostrava tão inspirado na condução de uma história. O filme em nada lembra o melodrama xaroposo e amargo de Era uma Vez um Sonho (2020) e está mais próximo da tensão que o diretor imprimiu faz tempo em Apollo 13 (1995). Mais uma vez ele dá destaque à parte técnica da coisa, mas não esquece de apresentar os temores daqueles personagens, sejam dos parentes angustiados, das autoridades preocupados com o viés político da situação, dos meninos e dos próprios mergulhadores que tentam resolver o terrível desafio de tirar todos com vida daquela caverna. Viggo Mortensen, Colin Farrell e Joe Edgerton interpretam o trio de mergulhadores profissionais que tecem um arriscado plano para tirar as crianças dali com vida. Os três estão muito bem em cena, assim como todo o elenco, mas vale dizer que se existe um problema no filme é que ele não está muito preocupado em desenvolver os personagens, mas recontar a história que acompanhamos nos telejornais em seus detalhes mais operacionais. Neste ponto, talvez esteja o seu maior desafio: envolver um espectador que já conhece a história recente dos meninos. O bom é que Howard filma bem debaixo d'água  e dentro da caverna, criando uma sensação de risco claustrofóbico que funciona na construção da torcida para que tudo dê certo. Dono de um Oscar por seu trabalho em Uma Mente Brilhante/2001 (outro filme baseado em uma história real), dificilmente o diretor entrará no páreo ano que vem, mas se redime de seus tropeços nos últimos anos e ganha fôlego para seus próximos projetos. 

13 Vidas - O Resgate (Thirteen Lives / Reino Unido - 2022) de Ron Howard com Viggo Mortensen, Colin Farrell, Joel Edgerton, Teeradon Supapunpinyo, Tom Bateman, Paul Gleeson, Girati Sugiyama e Teeradon Supapunpinyo. ☻☻☻

sábado, 27 de agosto de 2022

#FDS Viggo Mortensen: Ainda Há Tempo

 
Lance e Viggo: uma relação complicada. 

Embora Hollywood tenha tentado fazer dele um galã, Viggo Mortensen sempre quis ser mais do que um rosto (e corpo) bonito na tela grande. Por conta disso, foi deixando cada vez mais as superproduções de lado e investindo em filmes mais modestos, independentes, mas que lhe permitisse personagens variados. Quem achava que ele seguiria o caminho dos épicos bilionários como a trilogia Senhor dos Anéis (2001) quebrou a cara, afinal, ele prefere manter a parceria com o estranho David Cronenberg a enveredar por blockbusters. Por conta disso ele já foi indicado ao Oscar depois de lutar peladão em uma sauna em Senhores do Crime/2007, por ser um pai que se afasta da sociedade para criar seus seis filhos após o falecimento da esposa em Capitão Fantástico/2016 ou um motorista que reavalia seu racismo no controverso  Green Book/2018. No entanto, Viggo ainda quer mais e escreve, atua e dirige este Ainda há Tempo, filme que marca sua estreia na direção. Parece que Viggo queria escalar outro ator para ser protagonista, mas percebeu que sua figura na tela atrai mais investidores do que ele imaginava (e abriu mão do salário de ator para tocar o projeto). O filme conta a história de John (Mortensen) que precisa lidar com o pai, Willis (Lance Henriksen) que começa a apresentar os primeiros sinais de demência e precisa de cuidados especiais. Desde o início, John é um poço de paciência, aguentando o temperamento difícil do pai, agora ainda mais agravado por seu estado mental. Sr. Willis faz questão de demonstrar seu desconforto com a homossexualidade do filho a cada instante, sempre disposto a discorrer um insulto atrás do outro ao filho. Porém, a situação não é muito melhor quando sua filha (Laura Linney) e os netos chegam para visitar, as grosserias prosseguem num ritmo que pode cansar o espectador, mas que dá a exata medida da dificuldade que é conviver com aquela pessoa tão desagradável. Esta sensação é ainda mais ampliada pelos flashbacks, que demonstram que a vida em família nunca foi fácil, com algumas frases incômodas ditas desde a hora em que um bebê chega na casa ("desculpe te trazer para este mundo para morrer") e evolui para diálogos escatológicos com a filha de John e seu parceiro, Eric (Terry Chen). Como ator, Viggo está muito bem em cena (ainda que seus trejeitos manuais por vezes pareça mais de um mafioso, mas funciona bem em contraste com a personalidade contida do personagem), mas é Lance Henriksen que assusta com toda a fúria, rancor e ódio que seu personagem transborda. É a dinâmica entre os dois que sustenta o filme, mas seria injustiça não destacar o trabalho do sueco Sverrir Gudnason (que também estava ótimo em Borg Vs McEnroe/2017) bastante convincente como o jovem Will que não consegue se conectar com a família. O filme demora a engrenar - especialmente pela temática e narrativa bastante batida -, mas quando o filme chega em sua meia hora final, a qualidade cresce de forma surpreendente. Viggo demonstra sensibilidade atrás das câmeras e torna-se um diretor que eu gostaria de ver sua evolução em trabalhos futuros.

Ainda há Tempo (Falling / Reino Unido - Canadá - EUA / 2020) de Viggo Mortensen, Lance Henriksen, Sverrir Gudnason, Terry Chen, Hannah Gross, Laura Linney e Henry Mortensen. ☻☻☻

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

#FDS Viggo Mortensen: Crimes do Futuro.

Léa e Viggo: a cirurgia como novo sexo. 

E muito interessante pensar que ano passado um filme que reverenciava o calejado body horror tenha ganho a cobiçada Palma de Ouro no Festival de Cannes após sua controversa exibição. Titane (2021) dividiu opiniões quando foi exibido no Festival, mas foi considerado o melhor pelo júri. Ainda que tenha toda sua originalidade atestada, Titane bebe diretamente na fonte do cinema do canadense David Cronenberg, que fez escola na forma de revirar o estômago do espectador numa sala de cinema com filmes do porte de Videodrome (1983) e A Mosca (1986). Portanto, foi ainda mais interessante ver Cronenberg voltando ao body horror em sua estreia em Cannes deste ano, o resultado não poderia ser outro: divisão de opiniões, pessoas saindo enojadas no meio da sessão e problemas de distribuição. A MUBI comprou os direitos para exibição do filme no Brasil e já disponibilizou o filme para os cinéfilos curiosos que sabem exatamente o que esperar do cultuado diretor. Depois de uma fase mais contida inaugurada por Spider (2002), seguida pelos aclamados Marcas da Violência (2005) e Senhores do Crime (2007), ele percebeu  que estava ficando meio careta com Um Método Perigoso (2011) e resolveu voltar à sua verve mais irônica em Cosmópolis (2012) e o fabuloso Mapa Para as Estrelas (2014). Crimes do Futuro, mistura a ironia destes dois últimos filmes com os longas mais esteticamente desafiadores do diretor. Esta mistura funciona por um lado, mas no outro... O filme é ambientado num futuro em que as pessoas sofrem mutações constantes que as fazem produzir órgãos extras, sejam apenas excessos a serem extirpados, orelhas espalhadas pelo corpo ou sistemas digestórios capazes de digerir plásticos. No centro da narrativa está Saul (Viggo Mortensen em sua quarta parceria com o diretor), um homem que realiza shows performáticos que são cirurgias ao vivo capitaneadas por sua parceira, Caprice (Léa Seydoux). O corpo de Saul produz órgãos desconhecidos e isso desperta atenção de muita gente que aprecia suas exibições, além de curiosos que possuem uma proposta mais científica, como Wippet (Don McKellar) e sua assistente, Timlin (Kristen Stewart). Obviamente que existe um submundo em torno destes personagens "especiais" e seus espetáculos em que o corpo é tudo o que resta. O filme não se preocupa em construir uma história com começo, meio e fim, mas se dedica à construção de um mundo próprio, bastante estranho, mas que bebe diretamente em vários filmes do diretor. Além do tom de ironia farsesca dos seus filmes anteriores, aqui existe um resgate de muitos pontos de filmes como Gêmeos - Mórbida Semelhança (1988), Mistérios e Paixões (1991), ExistenZ (1999) e Estranhos Prazeres (1996), na construção de um universo repleto de libido, cortes e fetiches. É uma salada de tudo que Cronenberg fez até aqui (incluindo o título igual de um média metragem feito por ele em 1970). As cenas das máquinas estranhas que parecem orgânicas em seu formato de osso, assim como as deformidades e cortes sangrentos que causam excitação em quem assiste são aspectos que já vimos antes no universo criativo do cineasta. A graça aqui está em ver Kristen Stewart usando sua imagem límpida e asséptica como uma casca de repressão sexual e ter que ouvir Viggo lhe dizer que não sabe como fazer sexo à moda antiga. Ainda que apareça pouco, Kristen está mais interessante (e um tanto cômica em seus tiques e inseguranças) do que Léa Seydoux que parece não fazer a mínima ideia do que está fazendo por aqui. Viggo no entanto, no auge de seus quase 64 anos, continua um homem atraente e um ator cada vez mais interessante em buscar papéis desafiadores. Aqui seu desafio é no meio de toda estranheza ser o corpo mais desejado que aparece na tela e, para terminar, tem aquela cena final em que se confirma que o gozo ocorre ao ser mutilado. Tão grotesco quanto erótico, o filme perde pontos em sua segunda metade - e acho que o espetáculo ficaria mais interessante se a balança pendesse mais para o erotismo e a mente viajasse em fantasias que só existiriam neste mundo de colagens cronenberguianas.  

Crimes do Futuro (Crimes of the Future/ Canadá - Reino Unido - França / 2022) de David Cronenberg com Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Don McKellar, Scott Speedman, Nadia Litz, Tanaya Beatty, Welket Bungué e Tassos Karahalios. ☻☻ 

NªTV: Sandman

Sandman e Desejo: treta em família pelo mundo dos sonhos. 

O grande drama da semana foi o anúncio de que apesar de todo o sucesso, a série Sandman da Netflix ainda não está garantida de ser renovada. O criador dos quadrinhos e produtor da série Neil Gaiman deixou bem claro que para a Netflix a série se tornar a mais vista ao redor do mundo nas últimas semanas não garante uma renovação, já que devido ao seu valor elevado, o sucesso precisa ser ainda maior, de forma que avaliam o fato de que não basta ser assistida, mas que as pessoas precisam assistir tudo e dentro de um determinado prazo para agregar segurança à empresa. Depois que a Netflix já cancelou séries do naipe de Mindhunter e Glow, eu não duvido de mais nada ao ver um sucesso do porte de Sandman estar na berlinda. No entanto, a fala de Gaiman de que é necessário assistir tudo e rápido denota o maior problema da série. Os primeiros episódios são envolventes, tensos e sombrios na medida certa, de forma que ficamos curiosos para acompanhar Morpheus (Tom Sturridge), o Sandman ou Sonho como alguns o chamam, ter que recuperar seu reino a partir da busca de objetos mágicos que perdeu durante o período de mais de um século em que ficou preso por um mago (Charles Dance) que queria ter seu filho de volta após uma morte prematura. O fato é que enquanto o Senhor dos Sonhos estava preso, o mundo ficou totalmente desregulado com as pessoas impossibilitadas de sonharem, outras dormindo profundamente por anos e outras sem conseguir dormir. O mundo se tornou um lugar muito mais estranho e sem perspectivas sem a capacidade sonhar com o amparo desta figura mítica - e ao voltar para seu reino, o estrago é ainda maior. Quando ele se liberta, ele tem pendências a resolver com a família do mago e outros personagens sinistros de seu clã, como Coríntio (Boyd Holbrrok), Lúcifer (Gwendoline Christie), além de suas irmãs Morte (Kirby Howell Baptiste) e Desejo (Mason Alexander Park). Com um grupo de personagens tão interessantes defendidos por um elenco irretocável (que traz gratas surpresas), fica um tanto sem graça quando todos eles perdem espaço para o "vórtice", uma garota que ameaça a supremacia e controle de Sandman sobre o reino dos sonhos o que pode causar um verdadeiro colapso. Nesta parte, até o próprio Morpheus perde espaço na série e a coisa fica um tanto irregular, se recuperando somente no último episódio. Acho que esta guinada no meio da temporada prejudicou o fluxo da audiência para vê-la até o final e a Netflix ficou preocupada. No entanto, seria uma pena que a série não rendesse novas temporadas perante todas as possibilidades que apontou e preferiu dar um passo atrás para guardar trunfos para os anos seguintes. Se for cancelada irá parecer um irônico castigo às ambições dos envolvidos. Faz tempo que a Netflix busca um sucesso arrebatador para além de Stranger Things (que está prestes a terminar) e investiu pesado em Sandman, o que pode ser verificado no capricho de toda a produção. Obviamente que preciso destacar a performance de Tom Sturridge na pele do protagonista, com seu visual meio gótico e magreza elegantérrima, o rapaz parece ter finalmente encontrado o papel de sua vida. Outro grande destaque do elenco é Mason Alexander Park na pele do andrógino Desejo, pena que aparece pouco (mas o suficiente para chamar atenção). Se posso dizer algo mais sobre a série é: ASSISTAM LOGO ATÉ O FINAL! E garantam mais uma temporada de uma das séries mais bacanas de 2022. 

Sandman (EUA-2022) de Neil Gaiman com Tom Sturridge, Jenna Coleman, Boyd Holbrook, Gwendoline Christie, Mason Alexander Park, Kirby Howell Baptiste, David Thewlis, Patton Oswald, Joely Richardson e David Thewlis. ☻☻☻☻

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

PL►Y: O Novato

Benoit (ao centro): a arte de fazer amigos. 

Benoit (Réphaël Ghrenassia) é novo na escola. Quem já passou por isso (e quem nunca passou?) sabe que é um período complicado. Aqueles dias de parecer estar pisando em ovos enquanto precisa conviver com pessoas que nunca viu na vida. A necessidade de ser aceito logo se junta à outra necessidade: fazer amigos. Olhando aquelas crianças na estranha fase de transição para a adolescência parece ainda mais difícil a tarefa de estabelecer novas amizades, afinal, tudo é ampliado pela insegurança e efervescência hormonal da adolescência. Esta fase de transição para a vida pré-adulta é um dos pontos que fazem O Novato de Rudi Rosenberg estar acima da média, mas o que mais achei interessante é como o filme aos poucos se torna um retrato bastante espontâneo do que é fazer amigos. Benoit até tenta fazer amizade com uns meninos que parecem populares, mas não demora para que demonstrem ser completos idiotas implicantes. Fosse um filme americano, a grande jornada de Benoit seria em busca de popularidade, namorar a garota mais bonita da escola e fazer amizade com alguns personagens estranhos estereotipados. Como O Novato é um filme francês, aos poucos ele começa a se aproximar de alguns personagens de forma bastante natural, assim, aparece aquele colega engraçadinho que senta ao lado dele no refeitório, o garoto de óculos que pretende ser representante de turma e uma menina com deficiência que ainda enfrenta comentários maldosos em toda parte. Obviamente que o pequeno Benoit também terá um interesse amoroso, mas este não é o ponto principal do filme. O mais interessante é notar como os personagens se aproximam e descobrem afinidades meio que por acaso e aprendem que não precisam de uma multidão de pessoas para terem bons momentos de conversa e diversão. É verdade quem em alguns momentos o pai de Benoit parece ter a mesma idade que os colegas do filho (e a forma como ele ensina os meninos a lidarem com comentários maldosos é quase didático em sua espontaneidade), mas o efeito só amplia a ideia de que crescer é um exercício contínuo. Filmado de forma simples com atores desconhecidos e muito eficientes, o longa carrega um maior jeitão de improviso, sem muita intervenção da diretora em tom quase documental (mera ilusão, já que é o tipo de trabalho mais difícil de se fazer na condução dos atores), O Novato se torna uma pequena pérola sobre uma fase da vida que aparece muitas vezes em terceiro plano em outros filmes, aqui, o cento da narrativa está justamente nestes personagens que ainda estão aprendendo a crescer e, neste trajeto, estar em boa companhia é fundamental. 

O Novato (Le Nouveau / França - 2015) de Rudi Rosenberg com Réphaël Ghrenassia, Joshua Raccah, Géraldine Martineau,  Guillaume Cloud-Roussel, Johanna Lindstedt e Max Boublil.  ☻☻☻☻

PL►Y: Pequena Mamãe

As irmãs Sanz: encantamento sufocado. 

Em cartaz no Prime Video, Pequena Mamãe foi indicado ao BAFTA e ao Independent Spirit na categoria de Melhor Filme estrangeiro. O filme chegou a ser cotado para uma indicação ao Oscar por seus fãs fervorosos e isso deve ter mexido com as minhas expectativas quando assisti ao novo filme da diretora Céline Sciamma. A ideia é bastante simples, e pode funcionar com seu apelo universal para todas as idades, mas a diretora confia tanto nesta ideia que esquece de fazer o mais importante: contar uma história a partir dela. A personagem principal é uma menina que acaba de perder a vovó. Nelly (Joséphine Sanz) tem oito anos e ajuda os pais arrumarem os objetos da falecida. A arrumação de tantos objetos é em si uma representação do luto daquela família da ausência causada pela morte que ainda paira sobre seus pensamentos e lugares que costumavam ser acolhedores - o que torna todos os personagens do núcleo familiar distante nas situações e diálogos. No entanto, um dia Nelly encontra uma menina, Marion (Gabrielle Sanz), muito parecida com ela num bosque perto dali e as duas ficam amigas. Aos poucos percebemos que as vidas de ambas possuem mais coisas em comum do que somente a aparência semelhante. Sciamma não faz mistério com o que vemos na tela, já que as duas meninas são praticamente idênticas e uma delas carrega o nome da mãe da outra. Sciamma conta a história nos detalhes, poupa seu elenco de verter lágrimas diante da câmera e conduz sua trama com cenas do cotidiano em que quase nada demais acontece (a construção de uma casa no bosque, o dia de fazer a barba do papai, um passeio de barco, a feitura de um bolo...). Pequena Mamãe é uma história de fantasia filmada como se fosse uma trama realista. Fala sobre família, sentimentos, perda, morte, vida... lindamente fotografado, o que o torna uma produção muito bonitinha (assim como as duas meninas), mas que não avança muito em suas possibilidades, dependendo muito da vontade do espectador comprar a ideia e se sensibilizar. Embora entenda a presença do luto na atmosfera, achei um filme bastante frio, especialmente com as duas meninas passando a maior parte do filme com a mesma cara. Embora a proposta seja um convite ao encantamento, o resultado é incrivelmente duro em sua formatação emocional. Parece ter vergonha de encantar, o que é uma pena. 

Pequena Mamãe (Petite Maman / França - 2021) de Céline Sciamma com Joséphine Sanz, Gabrielle Sanz, Nina Meurisse, Stéphane Varupenne e Margot Abascal. ☻☻

domingo, 21 de agosto de 2022

PL►Y: Noite Passada em Soho

Matt, Tomasin e Anya: só desperdício. 

Podemos dizer que Edgar Wright tem três filmes nos pedestais da cultura pop (ainda farei um pódio sobre o moço), um é a melhor comédia sobre zumbis (Todo Mundo Quase Morto/2004), o outro é uma subestimada adaptação de HQ para (Scott Pilgrim Contra o Mundo/2010) e recentemente provou que filme de ação poderia ter alma de musical (Em Ritmo de Fuga/2017). Portanto, quando ele anunciou um novo projeto para a temporada de ouro, os olhos e ouvidos dos cinéfilos cresceram. Cresceram tanto que a expectativa chegou no topo e Noite Passada em Soho dividiu opiniões. A minha não é muito boa. O filme tinha tudo para dar certo, o visual é super caprichado na tentativa de emular a efervescência do bairro londrino, a fotografia é caprichada no uso das cores neon, os figurinos são competentes, os penteados são caprichados, o elenco é de encher os olhos, mas... faltou um roteiro sólido para dar alma para tudo isso. O filme conta a história de uma jovem órfã que pretende ser estilista e é aceita em uma conceituada faculdade em Londres. Assim que chega, Eloise (Thomasin Mckenzie) começa a ser hostilizada por suas colegas e, não bastasse isso, ela é sensitiva e tem o hábito de ter visões que ela não sabe muito bem o motivo. Chegando no Soho é como se ela viajasse para os anos 1960, ela fica fascinada com isso, mas tudo muda memso quando ela começa a ter visões repetidas sobre a vida de uma misteriosa garota (Annya Taylor-Joy), que também foi tentar a vida por lá e se envolveu em uma trama sombria no passado. Eloisa tenta desvendar os mistérios em torno da garota e o filme fica indo e voltando sem revelar nada de realmente surpreendente, até que um crime acontece e a trama se enrola mais ainda para desenvolver o labirinto em que se meteu. Particularmente eu comecei a desconfiar do filme quando ninguém avançava muito nos comentários sobre a trama em seu lançamento - e pudera, realmente ela é isso descrito acima - e se contar mais é o desfecho. Falando em desfecho, confesso que achei uma das coisas mais esquisitas os caminhos escolhidos pelo diretor para concluir a trama, afinal, ela é repleta de homens abusivos que em alguns momentos fazem o filme patinar no gelo de seus posicionamentos. Fosse uma ideia bem amarrada não teria problema, mas o gelo é finíssimo aqui, quebradiço até. Fora isso, me causou certo déjà vu esta mistura do ponto de partida e das cores do Suspiria (1977) de Dario Argento, com os delírios de Repulsa ao Sexo (1965) - tem cenas que parecem verdadeiras cópias deste último. A sensação de já vi este filme antes (e melhor) provocou alguns cochilos inevitáveis. Se você sente pena de ver Anya Taylor-Joy tentando dar dignidade aos caminhos previsíveis de sua personagem, repara no último trabalho da excepcional Diana Rigg como a senhoria da protagonista, ela faz até o filme parecer melhor do que é, mas nem sempre o talento é suficiente para operar milagres na sétima arte. 

Noite Passada em Soho (Last Night In Soho / Reino Unido - China / 2021) de Edgar Wright com Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy, Diana Rigg, Terence Stamp, Matt Smith e Connor Calland. ☻☻

sábado, 20 de agosto de 2022

4EVER: Claudia Jimenez

18 de novembro de 1958  20 de agosto de 2022

Cláudia Maria Patitucci Jimenez nasceu na cidade do Rio de Janeiro, filha de uma família de origem ítalo-espanhola. Paralelamente aos estudos para se tornar professora, Claudia fazia teatro amador e estreou profissionalmente no teatro com o musical Ópera do Malandro em 1978, no ano seguinte fez uma participação no seriado Malu Mulher e depois participou de programas humorísticos como Os Trapalhões, Viva o Gordo e Chico Anysio Show. Embora tenha participado de algumas novelas, foi ao lado de Chico Anysio que chegou ao estrelato ao interpretar a Dona Cacilda da Escolinha do Professor Raimundo, trabalho pelo qual recebeu o APCA de melhor comediante. Em 1997 alcançou grande sucesso com a peça Como Encher um Biquini Selvagem, escrita e dirigida pelo amigo Mighel Fallabella. Ao lado dele, fez outro trabalho de sucesso, a empregada Edileuza do seriado Sai de Baixo (1996). Jimenez também fez vários filmes na carreira, por um deles, O Corpo (1991) foi eleita melhor atriz no Festival de Brasília, mas antes também atuou em sucessos como Gabriela (1983), a versão para o cinema de Ópera do Malandro (1986) e o aclamado Romance da Empregada (1987). A atriz faleceu em decorrência de insuficiência cardíaca. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

PL►Y: The Humans

 
The Humans: anatomia das relações familiares. 

Quando chegou nos cinemas americanos o filme The Humans foi apontado como um dos indies favoritos para as premiações de fim de ano, celebravam até que teria chegado o grande momento de Richard Jenkins levar um Oscar para casa. No entanto, o filme passou em branco nas principais premiações do cinema, não por conta do boicote à produtora A24 (que investe pouco em marketing para continuar investindo em mais filmes interessantes), mas porque quando começava a batalha por indicações, o filme foi exibido pelo canal Showtime, o que sempre causa um impacto negativo nas campanhas para premiações - especialmente quando se fala de um filme independente sem grande apelo perante o grande público, sem explosões, perseguições e efeitos especiais. The Humans é um filme aparentemente simples sobre uma família que se reúne para o tradicional Dia de Ação de Graças, mas ao invés da lavagem de roupa suja ou humor depreciativo, o filme opta por ser um drama intimista em tom de suspense psicológico a partir de um recorte da vida daqueles sujeitos. A família se reúne no apartamento de Brigid (Beanie Feldstein) que acaba de se mudar com o companheiro, Richard (Steven Yeun) para o subúrbio de Manhattan e, por algum motivo que nem eles entendem, a mobília não chegou ainda. O apartamento é amplo e espaçoso, mas não consegue esconder o ar decadente, com as paredes mofadas, tinta desbotada, vidros gastos e ferrugem teimando em aparece. É neste espaço que chegam as visitas, o pai (Richard Jenkins), a mãe (Jayne Houdyshell), a irmã (Amy Schummer) e a vovó (June Squibb). Enquanto conversam e preparam o jantar, as preocupações dos personagens surgem, assim como histórias do passado, mágoas e ressentimentos, mas tudo de forma bastante contida e equilibrada, evitando o dramalhão ao mesmo tempo que começa a pesar a atmosfera daquele encontro. Existe o contraste do casal maduro com o peso da convivência ao longo de décadas com toda a expectativa do jovem casal e seus sonhos na vida que iniciam, além da ideia de como a velhice pode ser cruel e a solidão assustadora. O dramaturgo Stephen Karan estreia na direção com esta adaptação da peça assinada por ele mesmo e demonstra a sagacidade de não parecer teatro filmado, sabendo muito bem como usar os cortes, a fotografia, o cenário, as sombras, os planos abertos e fechados para evidenciar o que corrói os personagens. Cada um deles tem seus problemas, se o genro faz o possível para ser aceito pela família, Brigid passa por algo parecido ao querer provar que tem valor em sua própria caminhada a seguir. Enquanto isso, a irmã sofre com o rompimento com a namorada, a mãe tenta esconder uma acontecimento mágoa recente com o marido e... falando no marido, pode se dizer que Richard Jenkins tem o melhor momento do filme, aquela cena perto do final, sem diálogo e apenas desesperada por um homem assombrado por um pesadelo de culpa. Jenkins está ótimo em cena, como o homem comum que tentou conduzir a vida da melhor forma possível, mas não soube evitar alguns tropeços. No entanto, seria covardia dizer que o elenco não o acompanha de perto, todos estão bem (a única cena em que June Squibb fala é de aquecer o coração), além de Beanie e Amy darem conta de papéis bem mais dramáticos (e complexos) do que costumam escolher. The Humans pode deixar uma parte da plateia entediada, com a sensação de que nada acontece, mas basta um olhar atento para perceber os assuntos complicados que o filme aborda. Nesta construção cênica, os poucos móveis que chegaram, as paredes vazias e a sensação de isolamento (mesmo com a casa cheia) só ressaltam as qualidades do filme ao explorar a anatomia daquelas relações em menos de duas horas de duração. Pena que o filme não estreou nos cinemas brasileiros, mas sorte que foi lançado pela MUBI. 

The Humans (EUA-2021) de Stephen Karan com Richard Jenkins, Beanie Feldstein, Steven Yeun, Jayne Houdyshell, Amy Schummer, June Squibb. ☻☻☻☻ 

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

4EVER: Wolfgang Petersen

14 de maio de 194122 de agosto de 2022

Nascido em Emden, na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, Wolfgang Petersen começou os seus trabalhos no cinema nos anos 1960, mas antes estudou História do Teatro nas faculdades de Berlim e Hamburgo. No início da carreira realizou vários filmes para a televisão alemã - incluindo o seriado de sucesso Tatort. Esta experiência ajudou a realizar seu primeiro longa-metragem para o cinema: Einer von uns Beiden (1974) em que já demonstrava a competência técnica que se tornaria marca de sua carreira. O sucesso internacional chegou com O Barco (1980) em que o tom claustrofóbico dá o tom e rendeu seis indicações ao Oscar para a produção (direção, roteiro adaptado, montagem, fotografia, som e efeitos especiais). A indicação ao Oscar carimbou o passaporte do diretor para Hollywood, onde se especializou em superproduções como A História sem Fim (1984), o subestimado Inimigo Meu (1985), Na Linha de Fogo (1993), Epidemia (1995), Força Aérea Um (1997), Troia (2004) e Poseidon (1996). Vale ressaltar que O Barco ainda é uma referência para o cinema mundial. O premiado diretor e roteirista faleceu em decorrência de câncer no pâncreas. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

4EVER: Anne Heche

25 de maio de 1969 ✰ 11 de agosto de 2022

Anne Celeste Heche nasceu na cidade de Aurora (Ohio). Filha caçula de uma família com cinco crianças, a pequena sofreu com as constantes mudanças da família. O pai era diretor de coral e os problemas financeiros eram comuns e o trabalho no teatro começou a lhe render cem dólares por semana, o que a tornou a grande fonte de renda da família. A situação da família complicou quando o pai faleceu vítima de HIV em 1983. Dez anos depois, Anne Heche estreava no cinema, chamando atenção no indie Amigas Curtindo Adoidado (1996) de Nicole Holofcener. No ano seguinte ela já aparecia em grandes produções como Donnie Brasco, Volcano, Mera Coincidência e o sucesso Eu Sei o Que Vocês Fizeram no ano Passado. No ano seguinte vieram a controversa refilmagem de Psicose de Gus Van Sant e Seis Dias e Sete Noites ao lado de Harrison Ford, mas nenhum deles foi mais falado do que seu relacionamento com a atriz Ellen DeGeneres - que durou de 1997 até 2000.  Anne passou os últimos anos realizando trabalhos para a TV, mas particularmente considero que o melhor trabalho de Anne foi no incompreendido Reencarnação (2004) de Jonathan Glazer, em que ela interpreta (digna de prêmios) a amarga cunhada de Nicole Kidman. A atriz faleceu em decorrência de um acidente de carro e deixa oito projetos já filmados a serem lançados. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

4EVER: Olivia Newton-John

 26 de setembro de 1948 ✰ 08 de agosto de 2022

Olivia Newton-John nasceu em Cambridge no Reino Unido em uma família ilustre, já que é neta do físico ganhador do Nobel Max Born. Embora fosse cantora desde 1971, Olivia se tornou mais famosa quando respresentou seu país no  Festival Eurovision em 1974. Ao todo a artista lançou 26 álbuns de estúdio, ganhou quatro Grammys e quatro People's Choice Awards, três como cantora e um como melhor atriz em 1979 impulsionada pelo sucesso estrondoso do musical Grease (1978) nos cinemas. Embora tenha feito outros filmes, nenhum deles repetiu o êxito comercial ao lado de John Travolta. Desde os anos 1980, Olivia se dedicou a alguns filmes em que, na maioria das vezes fazia participações especiais e priorizou sua carreira de cantora. Ao ser diagnosticada com câncer de mama no início dos anos 1990, Olivia se tornou importante na luta por investimentos em pesquisas de combate ao câncer. Por seus esforços pela causa, a Rainha Elizabeth a nomeou com o título de Dama na lista de honrarias de 2020. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

4EVER: Jô Soares

 
16 de janeiro de 1938 ✰05 de agosto de 2022

José Eugênio Soares nasceu na cidade do Rio de Janeiro, filho de um empresário e uma dona de casa, Jô desejava ser diplomata quando era pequeno. Chegou a morar na Suíça por algum tempo (onde recebeu o apelido Joe, que mais tarde se tornaria ainda menor...), aos poucos, vendo a repercussão do seu senso de humor, percebeu que sua profissão seguiria outro rumo. Sua estreia na televisão aconteceu no humorístico Praça da Alegria em 1956. Neste tempo participou da novela Ceará Contra 007 na Record em 1965. Ele também participou dos humorísticos Família Trapo (1967), Faça Humor, Não Faça Guerra (1971), Satiricom (1973) e Planeta dos Homens (1976), até engatar voo solo com Viva o Gordo (1981-1987) na Globo - e seguir a mesma linha ao ir para o SBT em 1988 com Veja o Gordo, com a condição de ter seu talk show batizado de Jô Soares Onze e Meia. Ficando onze anos no ar, o programa de entrevistas do Jô se tornou um sucesso e rendeu vários genéricos que perduram até hoje. No ano 2000 voltou para a Globo com o Programa do Jô, que ficou no ar até 2016 em que anunciou sua aposentadoria. Ator, humorista, entrevistador, apresentador, músico e escritor, Jô participou de vinte e cinco filmes ao longo de sua carreira, incluindo Sábado (1995) de Ugo Giorgetti e O Xangô de Baker Street (2001) este adaptado de seu livro lançado em 1995. A causa da morte não foi divulgada a pedido da família.