terça-feira, 29 de setembro de 2020

Ciclo Ghibli: Contos de Terramar / Memórias de Ontem / Sussurros do Coração

Contos de Terramar: como desperdiçar um dragão. 

Ao longo dos meses de fevereiro, março e abril, a Netflix disponibilizou vinte e um filmes do Estúdios Ghibli em seu acervo. O Gibli foi fundado em 1985 pelos animadores Hayao Miyazaki e Isao Takahata, além do produtor Toshio Suzuki. Algumas delas já tiveram postagens aqui no blog, mas desde então, todo mês, três animações recebiam destaque aqui no blog . Vale ressaltar que os filmes foram verdadeiros presentes para os tempos de pandemia e  a procura ainda maior dos serviços de streaming. Esta é a última postagem do Ciclo Ghibli e escolhi começar com o filme mais criticado do estúdio: Contos de Terramar. O longa é baseado nos livros da escritora americana Ursula K. Le Guin que havia chamado atenção de Hayao Miyazaki, mas a escritora não achou uma boa ideia levar sua história para a telona. Com a projeção mundial de A Viagem de Chihiro (2001), a escritora mudou de ideia. Porém, Hayao já estava envolvido com outros projetos e deixou a adaptação nas mãos do filho, Goro Myiazaki, que fez deste seu longa de estreia. Existe um certo consenso de que este é o pior filme com o selo Ghibli. Embora tenha o traço meticuloso e o uso de cores deslumbrantes o filme é confuso e mal resolvido. A história tem uma ambientação épica de inspiração medieval para contar a história do príncipe Arren, que antes mesmo de ser devidamente apresentado foge do seu reino após matar o próprio pai. Ele acaba acolhido por um feiticeiro que vive isolado com uma mulher e uma criança que tem um grande segredo escondido, logo o pequeno Arren terá que salva-los de um feiticeiro. Apressado, denso e desprovido de humor, Contos de Terramar tem grande dificuldade em encontrar seu público com uma história simples demais para agradar os adultos e assustadora demais para os pequenos. Embora deixe claro que a trama ocorre em um mundo cheio de características próprias, tudo é tão jogado no roteiro que fica difícil compreender este universo. Some isso à inexperiência do diretor novato que a coisa só complica na ausência de carisma dos personagens. O fracasso repercutiu na relação de Hayao com o filho e expôs feridas na relação entre os dois. Com sabor de decepção é o tipo de filme que todos preferem esquecer que foi feito. O filme é o total oposto de Memórias de Ontem, o sexto filme lançado pelo Estúdio Ghibli. Baseado no mangá de mesmo nome, a animação é dirigida por Isao Takahata e conta a história de Taeko, uma mulher de vinte e sete anos que trabalha em um emprego burocrático em Tokyo. Nascida e criada na capital japonesa, Taeko sempre teve inveja das amigas que podiam ir para o campo visitar seus parentes nas férias. Seu sonho era viajar para longe da cidade e conhecer outro estilo de vida. Este é o ponto de partida para que Taeko se transforme em nossa narradora e conte várias situações de sua infância. Das férias na cidade, passando por desventuras na escola, sua dificuldade com a matemática, seus problemas de relacionamento com o pai severo e com a irmã intolerante, o resultado é um retrato bastante real de uma menina no Japão. 

Memórias de Ontem: a hora de seguir em frente. 

É curioso que estes momentos na infância são mostrados com bastante melancolia, mas que funciona em contraponto com a Taeko adulta, que visita o campo nas férias (e a animação urbana quase sem cores se transforma lindamente naquele novo cenário). No entanto, Taeko ainda precisa fazer ajustes com sua forma de encarar a vida, deixar a criança para trás e fazer escolhas que podem transformar seu futuro pra sempre. Takahata faz um filme com tom e cadência de live action, tratando seus personagens  como se fossem pessoas de carne e osso (com destaque para as cenas finais enquanto rolam os créditos) e capricha na construção de sua protagonista. Embora o filme pese a mão nas tristezas da infância da menina, Memórias de Ontem é um filme muito agradável de se assistir, que consegue tornar envolventes até a primeira vez em que menina prova abacaxi (apresentada como uma fruta exótica dos países quentes)! Seguindo uma linha parecida está Sussurros do Coração que também ambienta sua história em uma escola, mas enfatiza ainda mais o tom de romance. O filme conta a história de Shizuku, uma menina que adora livros, muito interessada nos estudos e no acervo da escola. Um dia, através dos cartões da biblioteca, ela descobre que um menino também compartilha este mesmo gosto pela leitura e ela se torna disposta a conhecê-lo. O filme segue o ritmo de comédia romântica, com um casal juvenil que não se entende, mas que aos poucos começa a se dar conta dos sentimentos que possuem um pelo outro. O filme possui uma narrativa bastante leve e bem humorada, mas que consegue criar até um mistério em torno de um gato na vizinhança. Nas entrelinhas existe uma história sobre sonhos e amadurecimento, seja sobre a menina que deseja se tornar escritora ou o menino que pretende se especializar na produção de violinos. Temas como amor, saudade, distância e crescimento pontuam a história que se desenvolve de forma bastante fluida. O filme foi o primeiro do Estúdio que não foi dirigido por  Mizyazaki ou Takahata, que confiaram no talento do então assistente Yoshifumi Kondô, que faleceu em 1998 e deixou este como seu primeiro e único filme na direção. Vale destacar que o filme traz referências sobre vários filmes do estúdio, como  a imagem de Totoro (que se tornou a marca do estúdio) em um livro, o Barão felino que apareceria posteriormente em O Reino dos Gatos (2002) e o relógio de Porco Rosso (1992). Para completar existe até uma versão da música "Take me home, Country road" que destaca como Tokyo estava se tornando uma selva de concreto. Sussurros do Coração é o filme que encerra o Ciclo Ghibli aqui no blog. 

Sussurros do Coração: comédia romântica adolescente.  

Contos de Terramar (Gedo senki / Japão - 2006) de Goro Miyazaki com vozes de  Aoi Teshima, Buta Sugawara e Jun Fubuki. 

Memórias de Ontem (Omohide poro poro / Japão 1991) de Isao Takahata com vozes de  Miki Imai, Toshirô Yanagiba e Yoko Honna. ☻☻☻☻

Sussurros do Coração (Mimi wo sumaseba / Japão - 1995) de Yoshifumi Kondô com vozes de Yoko Honna, Issey Takahashi e Takashi Tachibana. ☻☻☻☻

domingo, 27 de setembro de 2020

#FDS Leão de Ouro: O Círculo

O Círculo: mulheres iranianas pelas lentes de Jafar Panahi. 

Em 2010 o cineasta iraniano Jafar Panahi foi condenado à prisão por seis anos (depois convertida em prisão domiciliar) e a não fazer filmes por vinte anos (e cada filme que realizar somará mais seis anos em sua sentença). Seu crime? Realizar filmes que fazem propaganda negativa de seus país. Se levarmos em conta que Panahi ganhou fama mundial por fazer justamente o que recomendam que ele não faça, seria difícil imaginar que ele obedecesse. Desde que foi condenado, o diretor já realizou outros seis filmes com a ajuda de câmera digitais portáteis. Proibido de sair do país, suas obras são enviadas para distribuidores internacionais e premiados em festivais. Ainda que por vias tortas, a fama de Panahi só aumentou desde que se tornou conhecido aqui no Brasil pelo seu filme de estreia, O Balão Branco (1995). Seu filme seguinte, O Espelho (1997) também teve apelo por aqui, mas foi O Círculo (2000) que projetou seu nome mundialmente, especialmente por levar para casa o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Naquele ano estavam na disputa obras de renomados como Robert Altman (Dr. T e as Mulheres), Stephen Frears (Liam), Manoel de Oliveira (Palavra e Utopia) e novatos ousados como Clara Law (A Deusa de 1967) e João Pedro Rodrigues (O Fantasma), no entanto, o júri ficou impressionado com este retrato da realidade feminina no país do diretor. O filme segue a estrutura justamente o seu título, contando a história de várias personagens a partir de um recorte bastante específico de suas vidas ao longo de um dia. São estas histórias que nos fazem entender ainda mais a cena de abertura, onde uma mulher recebe a notícia sobre o nascimento de um bebê e ao descobrir que nasceu uma menina a tristeza é visível (ao ponto de mencionar que por não ser um menino a mulher poderá ser abandonada). A partir dali a câmera passa  seguir outras mulheres que surgem diante da câmera, uma passando o protagonismo com a outra por alguns minutos. Se algumas tem problemas com a polícia, outra sofre rejeição da família, uma precisa lidar com uma gravidez indesejada, outra pretende abandonar a filha enquanto outra está prestes a ser presa por no carro de um homem que não é seu esposo. O roteiro monta um verdadeiro mosaico de histórias em que a opressão à mulher é apresentada  de forma direta e crua, embora o diretor tenha grande sensibilidade ao abordar as questões apresentadas. Não há firulas no cinema de Panahi, a fotografia é granulada, a trilha sonora é inexistente, os planos são longos e os cortes precisos. Embora seja composto por histórias tristes, temos a plena noção de que são histórias reais que devem acontecer todos os dias. Se hoje vários filmes buscam retratar a opressão às mulheres e a importância da igualdade entre os gêneros, Jafar Panahi já fazia isso há vinte anos em um cenário bem mais adverso do que a maioria dos cineastas em atividade.

O Círculo (Dayereh / Irã - Itália - Suécia / 2000) de Jafar Panahi com  Maryiam Palvin Almani, Nargess Mamizadeh, Mojgan Faramarzi e Monir Arab. ☻☻

sábado, 26 de setembro de 2020

#FDS Leão de Ouro: Nenhum a Menos

Wei: a educação rural chinesa pelas lentes de Zhang Yimou.  

Na pequena escola rural da aldeia de Shuiquan o professor precisa se afastar por um mês para cuidar da mãe doente e a única pessoa que pode substituí-lo é Wei (Minzhi Wei), uma menina de treze anos sem experiência como professora. Wei sabe ler e escrever e isso já basta para que assuma a classe. Logo vemos que as condições são precárias, a paisagem é árida e ela recebe duas missões: gastar um giz por cada dia e manter todos os alunos frequentes até que o professor retorne. Este é ponto de partida para um filme emocionante. Lembro que vi Nenhum a Menos no cinema quando estava na faculdade e embora a escola fosse ambientada na China, impossível não lembrar que a dificuldade vivida por aquelas crianças se repete em muitos lugares, inclusive no Brasil. No entanto o que faz o filme ser tão envolvente é a forma como o diretor Zhang Yimou constrói sua narrativa quase documental, como se estivesse com uma câmera escondida naquela realidade e todos seguissem suas vidas como se nada estivesse sendo registrado.  Tudo é apresentado de forma simples, mas cheia de significado. A bagunça em sala de aula, o nervosismo de Wei diante de lecionar, a sensação de frustração até os momentos em que começa a perceber o que funciona e o que não funciona diante daquele grupo de alunos que são quase da mesma idade que ela. Se podemos enxergar aqui que ensinar não é só escrever a matéria no quadro e pedir para que os alunos fiquem em silêncio, também podemos perceber que o conhecimento não está restrito à sala de aula - neste ponto é emblemática a cena em que os alunos dividem o conteúdo de uma latinha de Coca-Cola, bebida nunca experimentada. Wei entra em desespero quando uma aluna veloz é descoberta para ser treinada e se tornar atleta longe dali, mas não se compara quando vê que outro aluno se ausentou da escola: o agitado Zhang Huike. Devido a situação pobre da família, o menino é obrigado a ir para a cidade trabalhar. Ciente da promessa que realizou, Wei parte em busca dele e se depara com a realidade da cidade grande e o triste destino que o menino poderá ter. Yimou cria um filme comovente protagonizado por atores amadores, diálogos quase sempre improvisados e um frescor raro de se ver. O 56º Festival de Veneza ficou encantado com a obra e lhe conferiu o Leão de Ouro do Festival em um ano com dezenove concorrentes (estavam na disputa Regras da Vida de Lasse Hallström,  Uma Relação Pornográfica de Frédéric Fonteyne e Topsy-Turvy de Mike Leigh), com o prêmio Zhang Yimou fez história ao se tornar o segundo diretor a ganhar duas vezes o prêmio (a primeira vez foi com A História de Qiu Ju em 1992).  

Nenhum a Menos (Yi ge dou bu neng shao/China - 1999) de Zhang Yimou com Minzhi Wei, Huike Zhang, Zhenda Tian, Enman Gao e Fanfan Li. ☻☻☻☻

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

#FDS Leão de Ouro: A Infância de Ivan

Ivan (Nikolay Burlyaev): o tempo esculpido por Tarkovsky. 

No mês em que o Festival de Veneza triunfou ao realizar sua edição 2020 em meio à pandemia de Covid19, realizo um Fim de Semana especial com vencedores do prêmio máximo do Festival: o Leão de Ouro. Nos últimos anos Veneza se tornou um festival sem medo de se modernizar, premia projetos de Realidade Virtual além de não ter pudores em premiar filmes produzidos para a internet e, desde os anos 1960, já demonstrava seu gosto por ousadias. Andrei Tarkovsky deve ser o cineasta russo mais cultuado de seu tempo. Nascido em 1932, ele ainda era um iniciante quando realizou A Infância de Ivan. Embora tivesse um curta e dois média-metragens no currículo, nada parecia indicar que levaria o Leão de Ouro em 1962 (empatado com o italiano Dois Destinos de Valerio Zurlini). Era a vigésima terceira edição do festival e entre os concorrentes estavam Stanley Kubrick (com Lolita) e Pier Paolo Pasolini (por Mamma Roma), mas posso dizer que o filme de Andrei era o mais ousado de todos. Tão ousado que as autoridades da antiga União Soviética quase impediram o lançamento do filme que teve uma produção conturbada. Em 1957, o escritor Vladimir Blogomolov lançou um conto chamado Ivan, era sobre um menino que após ter os pais assassinados na Segunda Guerra Mundial se torna espião do Exército Vermelho. Ele alimenta seu patriotismo com o ódio pelos inimigos e se transforma num verdadeiro herói de guerra. A trama chamou atenção da produtora Mosfilm, que estava animada com a Palma de Ouro em Cannes conquistada com (outro filme de guerra) Quando voam as Cegonhas (1957) que se tornou um sucesso. A adaptação de Ivan começou a ser rodada em 1960, mas os produtores ficaram insatisfeitos com o rumo das filmagens e entregaram ao recém-formado Andrei Tarkovsky a tarefa de refazê-lo. Eles não imaginavam que o diretor faria mudanças bruscas na estrutura narrativa. Quando assistiram ao filme, levaram um verdadeiro susto. O filme embaralha a história de tal forma que não se sabe o que é realidade, sonho ou lembrança. O pequeno Ivan aparece então se alternando em cenas felizes ao lado de sua mãe, em outras andando pela destruição da guerra para mais à frente falar com os soldados como se fosse um verdadeiro general. Entre as luzes e sombras da bela fotografia em preto e branco, vemos recortes sobre este menino e a forma como sua vida foi afetada pela guerra. Os produtores acharam o filme incompreensível, mas Tarkovsky conseguiu defender suas intenções - embora fosse uma ousadia atenuar as cores nacionalistas para ressaltar o que a história do menino tinha de mais humana: suas perdas, seus sonhos, seus medos, tudo aparece misturado na tela. Da forma como foi montado, A Infância de Ivan deixa ainda mais latente as transformações pelas quais aquele menino atravessou (destaque  para o ótimo trabalho de Nikolai Burlyaev que tinha quinze anos durante as filmagens), ressaltando a tristeza da destruição não apenas daquele menino, mas daquele país e todos que ainda hoje presenciam a realidade da guerra em suas vidas. Triste e poético, A Infância de Ivan é cultuado até hoje, especialmente pela forma moderna com que constrói a narrativa em torno do protagonista. Curioso perceber que a ideia de tempo e memória foram recorrentes nas obras do diretor, assim como no seu livro Esculpir o Tempo, que explica muito sobre sua personalidade criativa e a forma como constrói suas narrativas na telona. 

A Infância de Ivan (Ivanovo detstvo / Rússia - Alemanha / 1962) de Andrei Tarkovsky com  Nikolay Burlyaev, Valentin Zubkov, Evgeniy Zharikov, Stepan Krylov e Nikolay Grinko ☻☻☻☻

PL►Y: Enola Holmes

Henry, Millie e Sam: Sherlocks reunidos. 

Criada pela escritora americana Nancy Springer, Enola Holmes é a irmã mais nova do detetive mais famoso de todos os tempos. Isso mesmo, Sherlock Holmes tinha uma irmã e você nem sabia. Na verdade, a personagem não existia nos livros de Sir Arthur Conan Doyle, gerando descontentamento dos fãs mais ferrenhos do clássico personagem. Springer criou a personagem para ter visível apelo junto ao público infanto-juvenil (especialmente o feminino) e o sucesso já rendeu seis livros. Ciente do potencial da personagem, a Netflix produziu esta adaptação calcada no primeiro livro (O Caso do Marquês Desaparecido) e teve a boa ideia de escalar a prodígio Millie Bobby Brown para encarnar a protagonista. Quem assiste a série Stranger Things sabe que a menina é um talento! Aos dezesseis anos ela comprova aqui que pode carregar um filme nas costas com tranquilidade. Sem perder tempo com as polêmicas em torno da personagem, Enola é logo apresentada como a irmã mais nova de Sherlock (Henry Cavill) e Mycroft (Sam Caiflin), mas enquanto seus irmãos foram seguir as carreiras longe do lar, ela permaneceu com a mãe (Helena Bonhan Carter) no campo. Enola foi educada pela mãe nos mais variados conhecimentos, mas, sem aviso prévio, a matriarca desaparece. Este sumiço traz de volta para a casa seus dois irmãos - o que causa um verdadeiro impasse com o conservador Mycroft, que por ser mais velho, tem a guarda da menina. O primogênito fica decepcionado com os modos da irmã e decide envia-la para um colégio interno de meninas, some isto à admiração que sente pelo irmão Sherlock - que não corresponde da forma como ela imagina - e ela terá a motivação que precisa para fugir em busca da mãe. Nesta fuga ela acaba se deparando com outro mistério envolvendo o jovem Marquês chamado Tewkesbury  (Louis Patridge) que está sendo perseguido por um assassino. Misturando as duas investigações, o filme segue de forma bastante agradável no melhor ritmo de aventura juvenil. Embora a forma como a personagem conduz suas investigações seja bastante simples e a história siga um caminho previsível (ao identificar o período que o filme se passa e as manchetes dos jornais, eu já imaginava do que se tratava), Enola Holmes diverte e ganha fôlego pelo bom trabalho do diretor e elenco. O diretor Harry Bradbeer (que ficou famoso por seu trabalho na série Fleabag) cria uma narrativa esperta com brincadeiras ao gênero e ousa até quebrar a quarta parede, colocando Enola falando diretamente com o público (embora em um  ou dois momentos o recurso não encaixe bem), é verdade que às vezes as cenas de luta passam um pouco do tom, mas não chega a atrapalhar. Ajuda muito também a química que Millie tem com seu par, Louis Patridge - quando os dois estão juntos a inversão dos papéis do mocinho valente e da mocinha indefesa funciona bem. Helena Bonhan Carter também tem um ótimo momento como a mãe de um trio de filhos peculiar e a maior polêmica ficou por conta do Sherlock que Henry Cavill encarna de forma bem mais agradável e sedutora do que as outras encarnações do herói - e esta caracterização acabou indo parar nos tribunais por não respeitar os traços emocionais do personagem (mas dê um desconto que ele aqui está entre seus familiares que a coisa funciona). No fundo, Enola Holmes é uma brincadeira esperta e despretensiosa que utiliza um olhar diferente sobre o período histórico dos personagens, existem comentários sobre o voto das mulheres, espartilhos e tradição, que só reforçam como é duro ser uma garota a frente do seu tempo. 

Enola Holmes (Reino Unido - 2020) de Harry Bradbeer com Millie Bobby Brown, Henry Cavill, Sean Claiflin, Helena Bonhan Carter, Louis Patridge e Fiona Shaw. ☻☻☻

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

NªTV: Ratched

Sarah e Finn: laços com muito sangue e traumas. 

O filme Um Estranho no Ninho (1975) de Milos Forman entrou para a história como um dos três filmes a levar para casa as cinco principais estatuetas do Oscar: filme, direção, ator (Jack Nicholson), atriz (Louise Fletcher) e roteiro (adaptado do livro de Ken Kesey) - antes o feito só fora conquistado por Aconteceu Naquela Noite (1934) de Frank Capra e posteriormente com O Silêncio dos Inocentes (1990), em 93 anos de premiação pela Academia trata-se de um feito e tanto. Além de se tornar um clássico premiado, Um Estranho no Ninho garantiu para a atriz Louise Fletcher um lugar entre os maiores vilões do cinema ao encarnar uma enfermeira de provocar arrepios por tudo que representa. Capaz das atitudes mais frias contra seus pacientes em nome da ordem local, Mildred Hatched era tão assustadora quanto enigmática, afinal, o fato de não conhecermos muito sobre sua vida pessoal a torna ainda mais inatingível. Imaginar uma história para a personagem faz parte da graça do filme, mas o roteirista Evan Romanosky junto ao produtor Ryan Murphy se encarregou de compartilhar com o público o que imaginava sobre a antológica personagem. A ideia foi comprada pela Netflix e gerou grande expectativa não apenas por revisitar uma personagem famosa, mas também por ter a talentosa Sarah Paulson no alto dos créditos vivendo a enfermeira quando jovem. Trata-se de uma grande ousadia, mas também um risco gigantesco para o programa - e os protestos na internet desde sua estreia só comprovam como mexer com Mildred Hatched, uma personagem que faz parte do imaginário cinéfilo por tanto tempo, pode ser muito perigoso. Romanosky segue a cartilha padrão para este tipo de premissa, explora a vida familiar da personagem, o início de sua carreira profissional, a forma como lida com sua sexualidade, mas está longe de fazer isso de forma discreta. Marcada por cores vibrantes, momentos macabros e até torturantes, a história de Hatched se tornou digna de uma temporada de American Horror Story também de Ryan Murphy (e talvez sua concepção tenha sido meio esta mesmo, até que se deram conta de que poderia render mais de uma temporada). 

Judy Davis: magnífica como sempre. 

Vale ressaltar que a série tenta um equilíbrio complicado entre o sofisticado e o trash. Seus figurinos e cenários são luxuosos, mas o roteiro arma momentos tão grotescos que por vezes paira um desequilíbrio sobre o que se vê e o que se tem na história, a sorte é que o elenco não deixa o programa descambar para a vulgaridade ou o ridículo. No entanto, devo admitir, que passei a digerir melhor o programa quando imaginei que sua protagonista é a Mildred Hatched de um mundo paralelo, já que da personagem clássica sobrou quase nada. A culpa não é de Sarah Paulson (musa de Ryan Murphy), que está ótima  como protagonista (mas isso não é novidade) e se sai bem nos momentos complicados com os homens que cruzam seu caminho, seja o misterioso detetive Charles Wainwright (Corey Stoll) ou o patrão Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones) e até o assassino Edmund Tolleson (Finn Wittrock), que por um capricho do destino (ou do roteiro) precisa ser salvo por ela. No entanto, as melhores acompanhantes de Paulson são Judy Davis (como a esperta enfemeira-chefe) e Sharon Stone (como uma milionária com sede de vingança), são elas que prendem a atenção quando a série viaja demais em suas fantasias mais bizarras. No meio de tudo isso, existem de fato elementos que se encaixam na vida de Hatched (e explicam muito do olhar furioso que Louise Flatcher destacava na personagem) só que tudo é remodelado para se encaixarem no perfil do produtor Ryan Murphy, mas existem outros tantos acrescentados para chamar atenção de quem adora tramas de terror e suspense. Em vários momentos o uso de ângulos remetem aos clássicos do gênero, assim como a trilha sonora que diversas vezes bebe nas obras de Alfred Hitchcock. Hatched deve desagradar os fãs de Um Estranho no Ninho, mas deve prender a atenção com seus traumas de infância, abusos, perversões e métodos de tratamento que mais parecem torturas. O resultado é tão carregado que soa realmente uma fantasia, na verdade um pesadelo de tão irreal - especialmente pelo último episódio que é péssimo. 

Sharon Stone: participação mais que especial. 

Hatched (EUA - 2020) de Evan Romanosky e Ryan Murphy com Sarah Paulson, Judy Davis, Finn Wittrock, Cynthia Nixon, Jon Jon Briones, Sharon Stone, Corey Stoll, Sophie Okonedo, Amanda Plummer e Vincent D'Onofrio. ☻☻☻

FILMED+: Corpus Christi

Bartosz: atuação desconcertante. 
 
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, o polonês Corpus Christi surpreendeu muita gente ao figurar na lista de cinco concorrentes. Primeiro que possui elementos polêmicos suficientes para afugentar a Academia, segundo que a ninguém estava muito atento ao filme no período de votação, os distribuidores americanos não tinham muito dinheiro para divulga-lo e então aconteceu um verdadeiro milagre. Nem o diretor Jan Komasa estava atento na divulgação dos indicados e ficou surpreso quando seu celular só lhe perguntava sobre este momento. Ao ver o filme fica claro o motivo para que se destacasse entre os concorrentes, a história é forte e conduzida na medida exata pelo diretor, de forma que suas quase duas horas sobre um rapaz que finge ser padre passam num piscar de olhos. Colabora muito para esta fluência impactante a atuação do impressionante Bartosz Bielenia, o ator que vive Daniel, jovem presidiário que se aproxima do padre que atende os presos locais para atenuar o peso de viver naquele local. Daniel é dado a atos violentos, mas também canta lindamente nas missas e gostaria de mudar de vida ao tornar-se padre, mas desiludido pelo padre Tomasz (Lukasz Simlat) ele parte para prestar serviços na marcenaria de uma cidadezinha do interior polonês. Claro que ao ver-se fora dos olhos vigilantes dos guardas, Daniel se entrega a todos os excessos mundanos, mas ao chegar na cidade uma mentira ganha proporções que fogem ao seu controle. Uma série de acasos faz com que Daniel se transforme no padre daquela paróquia. Seus sermões incomuns são cheios de energia, mas o olhar atento para o que acontece abaixo da superfície lhe trarão problemas, especialmente quando se depara com as dores de uma tragédia que os moradores não sabem lidar. Debaixo da tranquilidade, da juventude silenciada e das orações se esconde um bocado de ódio e intolerância que não consegue ser contornada. Neste ponto que o filme se mostra ainda mais contundente sobre um mundo  que se diz religioso mas que não sabe perdoar - e esta mistura fermenta mais do que se imagina. Enquanto tenta mudar os olhares daqueles moradores, Daniel começa a ter problemas para manter seu segredo e sua situação se complica ainda mais rumo ao desfecho. Ter Bartosz na pele de Daniel é um verdadeiro deleite, seu tipo franzino de olhos vibrantes confere ao personagem uma ambiguidade que funciona em todas as camadas que o filme sugere. Convencendo em seus conflitos entre o bem e o mal, nunca se sabe ao certo o que o rapaz fará para manter seu segredo guardado. Mais afeito aos trabalhos no teatro, Bartosz quase perdeu o papel, já que os produtores preferiam um ator mais conhecido e com um tipo mais inofensivo. Sorte que o diretor insistiu em sua escalação. O rapaz está perfeito! Outro destaque do elenco é Aleksandra Konieczna, que impressiona como a secretária da casa paroquial, que não precisa de palavras para expressar sua dor ou descontentamento. Jan Komasa é um diretor de 29 anos com quatro filmes expressivos no currículo, Komasa demonstra saber captar o espírito de seu tempo, tanto que quase entrou na mira do Oscar novamente com o ótimo Rede de Ódio (2020) que acabou perdendo a indicação da Polônia para Never Gonna Snow Again, de conteúdo bem mais palatável. Em Corpus Christi ele mergulha num fenômeno social de destaque na Polônia: os falsos padres. Ao se deparar com o roteiro, Bartosz acrescentou elementos que tornassem a história ainda mais enfática: revela aos poucos o passado criminal do seu personagem e o peso do luto convertido em vingança que paira sobre a cidade. Com as cores de sua fotografia se tornando mais intensas até a última cena, Corpus Christi é mais do que uma história de busca de redenção, torna-se uma história de renascimento.

Corpus Christi (Boze Cialo / Polônia - França / 2019) de Jan Komasa com Bartosz Bielenia, Aleksandra Konieczna, Eliza Rycembel, Romasz Zietek, Barbaara Kursaj e Lukasz Simlat. ☻☻☻☻

terça-feira, 22 de setembro de 2020

10+: The Outsiders

Apontado como um clássico juvenil dos anos 1980, Vidas Sem Rumo (The Outsiders) se tornou cult por reunir vários rostos que se tornariam famosos sob a assinatura do premiado Francis Ford Coppola. Lançado em 1983 assistir ao filme hoje se torna mais emocionante se pensarmos na trajetória dos nomes em seus créditos nas décadas que se seguiram. Este 10+ é para lembrar deste grupo de artistas (em ordem alfabética) e suas carreiras nestes quase quarenta anos que se passaram: 

Ponyboy (C.Thomas Howell)
Chega a ser irônico que o maior destaque do filme seja o que anda mais esquecido por Hollywood. Christopher Thomas estreou no cinema com E.T (1982) aos dezesseis anos, idade em que estava filmando Vidas Sem Rumo. O ator teve seu período de maior popularidade nos anos 1980 em filmes como Admiradora Secreta (1985) e A Morte Pede Carona (1986). A carreira enfrentou problemas logo depois com o polêmico Uma Escola Muito Louca (1986) em que interpretava um rapaz branco que fingia ser negro para entrar na faculdade. Sem destaques no cinema desde então, o ator tem trabalhado em filmes de baixo orçamento e séries de televisão há algum tempo.  
 
Cherry (Diane Lane)
A bela Diane Lane é lembrada ainda hoje como a musa de Francis Ford Coppola, ela trabalhou com ele posteriormente em filmes como O Selvagem da Motocicleta (1983), Cotton Club (1984) e Jack (1996). Depois de vários trabalhos no cinema, Diane foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz por seu trabalho em Infidelidade (2002) e desde então consegue papéis de destaque no cinema em produções importantes como Trumbo (2015) e Homem de Aço (2013), sendo a mãe da versão mais recente do herói no cinema. Ao longo da carreira a atriz concorreu três vezes ao Globo de Ouro e duas ao EMMY.
 
Two-Bit (Emilio Estevez)
Cada vez mais a cara do pai (o ator Martin Sheen), Emilio Estevez se tornou um rosto bastante conhecido nos anos 1980 por seus trabalhos nos filmes Clube dos Cinco (1985), Repo Man (1984), Tocaia (1987) e Jovens Demais para Morrer (1988). Em 1986 ele começou a trabalhar também como diretor e o mais elogiado deles foi o caleidoscópico Bobby (que concorreu ao Globo de Ouro de melhor filme dramático em 2007 ao recriar o dia da morte do senador Robert Kennedy). Pelo filme, Emilio também foi indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza e se firmou como diretor, produtor e roteirista de filmes indies, como O Público (2017) seu oitavo e último longa na direção. 

O Diretor (Francis Ford Coppola)
Trabalhando cada vez mais como produtor Coppola estava no auge quando dirigiu a versão do livro de S.E. Hinton para o cinema. Estava tão produtivo na época que rodou O Selvagem da Motocicleta (1983) no mesmo ano. Coppola já tinha os prêmios de roteiro por Patton (1970) e O Poderoso Chefão (1973), além dos de produção, direção e roteiro por Poderoso Chefão II (1975). Além disso todos os problemas de Apocalypse Now que lhe renderam outras três indicações da Academia (num total de 12 que já se tornaram 14 ao longo da carreira). Desde O Homem que Fazia Chover (1997) seus filmes não chamam muita atenção de público ou crítica e ele não esquenta muito a cabeça com isso. Já virou lenda. 

Dallas (Matt Dillon)
Matthew Raymond Dillon nunca deu muita ideia para o rótulo de galã. Atuando desde 1979 e conhecido já em seu segundo filme, Queridinhas (1980), o filme de Coppola serviu para que ele se tornasse ainda mais famoso. Ajudou muito que a parceria com o diretor continuou em O Selvagem da Motocicleta em seguida. Famoso por viver tipos rebeldes, Dillon se firmou como um ator bastante seletivo que não liga para a fama. Fez filmes  de sucesso como Drugstore Cowboy (1989), Será que Ele é? (1997) e Quem Vai Ficar Com Mary (1998), foi indicado ao Oscar de coadjuvante por Crash (2004) e surpreendeu como o psicopata de A Casa que Jack Construiu (2018). Seu prestígio aos 56 anos lhe garantiu lugar entre o júri do Festival de Veneza 2020. 

Darrell (Patrick Swayze)
Swayze era mais conhecido na TV do que no cinema quando foi escalado para viver irmão mais velho da família Curtis, mas o sucesso veio mesmo com Dirty Dancing (1987) que usou seus dotes de dançarino e até lhe rendeu sucesso como cantor (como esquecer do hit She's Like the Wind?) e Swayze foi indicado pela primeira vez ao Globo de Ouro de ator. A segunda indicação foi por Ghost/1990 e quem se acostumou a vê-lo nos filmes de ação (como Caçadores de Emoção/1991) levou um susto ao revê-lo como a drag-queen de Para Wong Foo, Obrigado por Tudo Julie Newmar  (1995), seu último grande sucesso e que rendeu a terceira indicação ao Globo de Ouro. Patrick faleceu em 2009, aos 57 anos em decorrência de um câncer pancreático

Johnny (Ralph Macchio)
The Outsiders é o terceiro trabalho de Ralph como ator e Coppola soube muito bem como utilizar sua imagem frágil de olhos expressivos. O ator ficou mundialmente conhecido em seu trabalho seguinte, o Daniel Larusso de Karatê Kid (1984) e embora tenha feito outros filmes, era nos golpes de karatê da franquia que o jovem de origem italiana se garantia. Embora tenha feito o oscarizado Meu Primo Vinny (1992) e o alternativo Nu em Nova York (1993), nada repetiu o sucesso de Larusso. Recentemente, Ralph voltou aos holofotes em 2018 com a série Cobra Kai que revisita os personagens de Karatê Kid.

Sodapop (Rob Lowe)
Robert Hepler Lowe já foi considerado um dos rostos mais bonitos do planeta e ficou conhecido como um dos atores mais influentes dos anos 1980. Vidas sem Rumo foi seu primeiro trabalho no cinema e lhe rendeu vários projetos, embora seu filme mais conhecido ainda seja O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas (1985). Sem sucessos nas telonas, a televisão voltou a ser um lugar seguro para ele, lhe garantindo seis indicações ao Globo de Ouro ao longo de sua carreira, seja no drama Thursday's Child (1983) e a comédia Behind the Candelabra (2013)  em que está hilariante como um cirurgião plástico. Seu último trabalho tem sido na série Parks & Recreation.   

A menina (Sofia Coppola)
Sim! Sofia Coppola participa do filme do papai e se você piscar é capaz de perder sua rápida aparição. Francis Ford costumava colocar a filha em vários de seus filmes. Ela aparece em Vidas sem Rumo, O Selvagem da Motocicleta, Cotton Club, Peggy Sue em todos os filmes da trilogia O Poderoso Chefão. Falando nisso, foi o massacre da crítica em seu papel de destaque no terceiro filme da trilogia que colocou a carreira da moça sob nossa perspectiva. Sofia acabou morando no Japão, trabalhou com moda e somente em 1999 deixou claro que preferia ficar atrás das câmeras. Ela se tornou a primeira cineasta americana a ser indicada ao Oscar de direção (por Encontros e Desencontros/2003 que lhe rendeu o Oscar de Roteiro Original) e já dirigiu seis filmes de estilo inconfundível.  

Steve (Tom Cruise)
Tom Cruise  é um dos rostos mais famosos do cinema e consolidou sua fama já nos anos 1980. No mesmo ano de Vidas sem Rumo, ele foi indicado ao Globo de Ouro de ator de comédia por Negócio Arriscado (1983). Não precisa dizer que depois de Top Gun (1986) o ator colecionou sucessos, sendo com Nascido em 4 de Julho (1989) que o Oscar reconheceu seu trabalho pela primeira vez. Tom voltaria a ser indicado novamente por Jerry Maguire (1996) e Magnólia (1999). Por um tempo se dizia que Tom tinha uma lista de grandes diretores que gostaria de trabalhar (Coppola, Scorsese, Spielberg, DePalma, Kubrick...), mas a idade não impediu que Tom deixasse as premiações de lado e investisse cada vez mais em filmes de ação e franquias milionárias.  

KLÁSSIQO: Vidas sem Rumo

Cruise, Lowe, Thomas, Macchio, Dillon, Estevez e Swayze: elenco de respeito. 

Filmes mais modestos como Vidas Sem Rumo (1983) costumam ficar esquecidos na filmografia de Francis Ford Coppola. No entanto, é mais do que compreensível que depois de todo o estresse vivido na produção da obra-prima Apocalypse Now (1979) o diretor se entregasse a produções mais simples como o incompreendido O Fundo do Coração (1981) e esta adaptação do livro de 1967 escrito por S.E. Hinton. A obra de Hinton é reconhecida como um marco na literatura juvenil e influenciou muitos escritores e cineastas ao voltar sua lente para um grupo de jovens marginalizados pela sociedade. Embora o filme tenha feito sucesso modesto na época de seu lançamento, a produção ganhou fama ao longo do tempo por ter revelado um grupo de jovens atores que seria muito falado em Hollywood (e ironicamente o protagonista é o mais esquecido nos dias de hoje). A trama é marcada pela rivalidade de dois grupos distintos, os greasers (ou "usuários de brilhantina" - e o nome não é coincidência, o clássico Nos Tempos da Brilhantina/1978 também bebe na fonte da obra de Hinton, ainda que de forma muito mais branda) e os socs. Os greasers moram na parte pobre da cidade. Tem problemas para pagar as contas, arrumar emprego e geralmente tem problemas com a polícia. Os socs são os "bem nascidos", que andam de carros caros, tem atenção das líderes de torcida, são populares e não tem problema com a falta de dinheiro.  Entre estes grupos o protagonista é o greaser Ponyboy (C. Thomas Howell), rapaz que perdeu os pais num acidente e agora vive sob os cuidados do irmão mais velho, Darrell (Patrick Swayze) e do irmão vaidoso Sodapop (Rob Lowe) - e antes que você estranhe, vale mencionar que não se trata de apelidos, mas nomes de verdade. O trio se vira como pode, mas Darrell vive preocupado com o irmão caçula, especialmente por suas companhias. Embora o melhor amigo de Ponyboy seja o melancólico Johnny (Ralph Macchio), a saída de Dallas Winston (Matt Dillon) da prisão, deixa sempre o perigo da contravenção na vizinhança. Fazem parte ainda do grupo o agitado Steve Randle (Tom Cruise, que danificou o dente só para o papel) e o sereno Two-Bit (Emilio Estevez). A coisa se complica a partir de um dia no cinema Drive-In da cidade, em que Ponyboy ganha a atenção da líder de torcida Cherry (Diane Lane) e a rivalidade dos grupos resulta na pior noite de sua vida - e a morte de um personagem muda o rumo da narrativa. Coppola constrói aqui um drama adolescente com cores adultas, especialmente pelo forte comentário social das entrelinhas, assim, apresenta algumas cenas de violência, tentativas de assassinato, mortes, prisões e um julgamento no final que destoa do tom pesadão que o filme recebe em seu penúltimo ato cheio de tragédias. Com fotografia quase sem cores e montagem bem construída, o longa consegue prender a atenção, nem que seja pela curiosidade de ser os astros veteranos novinhos e cheios de vontade de ganhar o mundo. Prova de que o filme funciona é bem cuidado é a cena da briga entre os grupos rivais, um verdadeiro caos de pancadaria, mas filmado com bastante precisão com um grande grupo de atores. Não lembro de um filme que tenha juntado tantos talentos promissores e conduzi-los com tanto equilíbrio. Sem efeitos mirabolantes ou truques narrativos, Vidas Sem Rumo faz emergir a maestria do diretor em conduzir seu elenco. Curiosamente Coppola nunca havia cogitado fazer esta adaptação até que uma professora lhe enviou uma carta explicando que adoraria ver uma adaptação deste seu livro favorito. 

Vidas Sem Rumo (The Outsiders / EUA - 1983) de Francis Ford Coppola com C. Thomas Howell, Matt Dillon, Ralph Macchio, Patrick Swayze, Rob Lowe, Tom Cruise, Diane Lane, Emilio Estevez, Tom Waits e Flea. ☻☻

domingo, 20 de setembro de 2020

§8^) Fac Simile: William Zabka

William Michael Zabka
Nosso repórter imaginário ficou tão animado com a estreia de Cobra Kai na Netflix que retornou no meio da pandemia para entrevistar Johnny Lawrence, ou melhor, o ator William Zabka que ficou famoso nos anos 1980 como o inimigo do herói juvenil Daniel Larusso. Nascido em Nova York, filho de imigrantes da Checoslováquia, Zabka trabalhou desde então como ator, produtor e roteirista. Nesta entrevista por vídeo chamada, que nunca aconteceu, Fac deixa este veterano contar o seu lado da história:

§8^) Como foi ficar famoso por viver um dos maiores vilões dos filmes juvenis de todos os tempos?

Zabka Foi terrível! Minha estreia no cinema foi com Karatê Kid (1984) e apareci com este visual tcheco perseguindo um rapaz franzino... eu tinha só dezenove anos na época e o Ralph Macchio tinha 22, mas eu era enorme! Enquanto as revistas ressaltavam minha pinta de galã, os filmes só me chamavam para viver rapazes malvados. Haja terapia...

§8^) Mas boa parte do apelo de Cobra Kai é mostrar o lado do seu personagem nesta história. O fato de ter perdido a namorada, ter um sansei abusivo, problemas com o padrasto... ele se torna quase o herói da história, não é?

Zabka Quase... apesar de todos os tropeços, eu percebo que Jonny envelheceu, mas ainda não aprendeu algumas lições com a vida. É a relação dele com os alunos que faz ele repensar sua postura perante o mundo. Some isso às dificuldades financeiras e emocionais que ele atravessa na série... fica fácil se identificar com ele. Você imagina que ele merece uma segunda chance e torce para que as coisas se resolvam. Claro que ele chuta qualquer coisa politicamente correta para o espaço, ele era o bad boy da história. Não por acaso, isso confere muito humor ao personagem e as pessoas até dizem que não sabiam que eu podia ser engraçado. 

§8^) Mas e a teoria de que o Daniel Larusso é o grande vilão da história?

Zabka Claro que ele é! Eu mesmo quando li o roteiro me toquei disso. O cara chega na cidade, rouba a namorada do Johnny, faz um monte de trapaças e no final ainda vence a luta com aquele golpe ilegal! Muita gente está revendo o filme e percebendo que ele não era um rapaz tão inocente assim. Na série isso se torna ainda maior, o Daniel tem tudo e basta ver o Johnny conseguir alguma coisa para tentar destrui-lo. Não vale nada aquele garoto... [risos]

§8^) Outra marca importante para os fãs é o passar do tempo para os personagens do filme. Foi difícil envelhecer?

Zabka Acho este ponto um dos mais legais da série. Quando fiz o filme eu era um adolescente, agora estou com 54 anos! Este envelhecimento é fundamental para que se altere o olhar que temos do Johnny. Ele é um homem crescido, maltratado, sozinho e até perdido quando a trama começa. Acho que as rugas ajudaram muito nesta composição. Não tenho problemas com a idade, sempre estive trabalhando, me cuido, casei, tenho dois filhos, voltar tentando ter a mesma carinha de vinte anos seria um desastre. Nas cenas de luta a coisa complica um pouco, mas eu me esforço [risos]

§8^) Pouca gente sabe, mas você tem uma indicação ao Oscar no currículo...

Zabka É verdade! Foi por um curta que eu e meu amigo Bobby Garabedian fizemos em 2004! O pessoal anda falando da Elisabeth Shue voltar na próxima temporada, alardeando que ela tem uma indicação ao Oscar de melhor atriz e tal... pois é, eu também tenho! Vai perguntar para o Ralph se ele tem uma... ops... tira esta parte da entrevista por favor [risos]. 

NªTV: Cobra Kai

William e Ralph: rivalidade antiga. 

 A franquia Karatê kid se tornou uma das mais populares dos anos 1980 já com o primeiro filme de 1984, que se tornou um grande sucesso (custou cerca de oito milhões e rendeu mais de dez vezes este valor só nos Estados Unidos) e conquistou uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante para  Sr. Miyagi Pat Morita. A ideia era simples: rapaz  recém-chegado na cidade é perseguido na escola e aprende a lidar com estes problemas através de golpes de karatê. A ideia deu tão certo que rendeu outras duas sequências com o mocinho Daniel Larusso (Ralph Macchio) e um quarto episódio (em 1994) em que a protagonista era uma garota. Apesar da tentativa de renovar a franquia ter chamado atenção (principalmente por ser um dos primeiros trabalhos de Hilary Swank no cinema), não foi o suficiente para que se animassem a fazer uma nova trilogia. Em 2010, o astro Will Smith comprou os direitos da franquia e tentou dar novo fôlego para a história escalando Jack Chan para ensinar Kung Fu (!!!) para  uma criança (no caso o filho de Will, Jaden Smith). Não funcionou,  mas pelo menos serviu para que Will percebesse como os fãs eram fiéis ao original. Foi assim que Will investiu na criação de uma série sobre aqueles personagens revisitados muitos anos depois. Restava convencer Ralph Macchio para retornar ao personagem que sempre hesitou de revisitar nas últimas décadas, só que ninguém esperava que a graça estava na outra ponta da história: o valentão Johny Lawrence (William Zabka). Johnny foi alçado ao posto de protagonista na série criada pelo Youtube Premium e que chegou recentemente à Netflix - que está disposta a bancar a terceira temporada do programa. Para além das nostalgia, a série tem outros méritos, agora Daniel se tornou um empresário bem sucedido no ramo de automóveis, casado e com um casal de filhos, enquanto Johnny não teve muita sorte, trabalhando apenas quando aparece serviço, divorciado e com um filho que não tem muito contato. Ele ainda guarda rancores de Daniel Larusso, mas um acidente os colocarão novamente frente a frente e, para piorar, Johnny resolve reabrir o Dojo Cobra Kai e treinar um novo grupo de adolescentes com base em seus princípios. É neste ponto que a série cria sua guinada e apresenta outras nuances destes velhos conhecidos - o que acabou levantando divagações na internet sobre quem é o vilão desta nova fase dos personagens. Lembro daquela frase do Tom Hiddleston (o Loki  da Marvel) dizendo que todo vilão é um herói em sua mente, então, quando ouvimos a outra versão da história tendemos a esquecer que as leituras de mundo são bem mais subjetivas do que a simplicidade entre o bonzinho e o malvado. 

Johhny (ao centro) e seus discípulos: reavaliando o passado. 

A série Cobra Kai bebe diretamente deste ponto de partida e a todo instante ressalta que entre mocinhos e vilões existem mais camadas do que podemos supor. Prova disso é não apenas o Johnny (Zabka em um momento inspirado da carreira) reavaliar algumas de suas posturas  enquanto Daniel Larusso nem percebe o quanto seu olhar está preso à adolescência. Incapaz de perceber que o tempo passou, sua postura ajuda muito para que a rivalidade entre Cobra Kai e seu reaberto Miyagi-Do cresça cada vez mais. O conflito entre os dois é crescente nas duas temporadas - e a esposa de Daniel, Amanda (Courtney Henggeler) funciona como um contraponto para esta cegueira do esposo. Existe outro fator interessante na história: como apresentar estes dois personagens tão anos 1980 no século XXI? Lidando com as tecnologias e o discursos politicamente correto (e ambos tem seus tropeços neste território o que gera boa parte do humor da série). O gosto nostálgico é ainda mais ressaltado pela trilha sonora e as cenas dos filmes que aparecem para ilustrar o passado dos personagens. O uso destes elementos na medida tornam a primeira temporada a minha favorita! Na segunda os adolescentes ganham mais destaque na história e se torna quase uma ordem que todo desentendimento seja resolvido com golpes de karatê. Existe um problema gigantesco de comunicação entre os personagens da série (o que ilustra bastante as relações do século XXI onde a internet transborda de informação, mas as pessoas possuem uma dificuldade enorme de sentar e, mais do que conversar, escutar o outro), porém esta estrutura um tanto repetitiva dos episódios torna a segunda temporada mais cansativa entre os namoros juvenis que começam a aparecer na história. No entanto, vale destacar que embora algumas lutas pareçam coreografadas demais, a série se redime na pancadaria no final da segunda temporada - o que coloca todos os conflitos sob nova perspectiva para a terceira leva de episódios que vem por aí (com a promessa do retorno de uma personagem importante de uma atriz posteriormente indicada ao Oscar). Para além dos nossos velhos conhecidos, a série conta com bom elenco de apoio adolescente, com destaque para as transições de Miguel (Xolo Madureña) e do amigo Falcão (Jacob Bertrand), que rouba a cena como o menino tímido que se torna discípulo fiel ao passado de seu sansei, Jonny. Temperado com humor, reviravoltas e nostalgia, Cobra Kai é pura diversão. 

Ali (Elisabeth Shue) com Daniel (Macchio): retorno aguardado. 

Cobra Kai - 1ª Temporada (EUA-2018) de Jon Hurwitz e Hayden Schlossberg com William Zabka, Ralph Macchio, Xalo Madureña, Mary Mouser, Tanner Buchanan, Nichole Brown, Courtney Henggeler e Jacob Bertrand. ☻☻

Cobra Kai - 2ª Temporada (EUA-2018) de Jon Hurwitz e Hayden Schlossberg com William Zabka, Ralph Macchio, Martin Kove, Xalo Madureña, Mary Mouser, Peyton List, Tanner Buchanan, Nichole Brown, Courtney Henggeler, Jacob Bertrand, Gianni Decenzo e Paul Walter Hauser. ☻☻

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

4EVER: Ruth Bader Ginsburg

15 de março de 1933 ✰ 18 de setembro de 2020

Joan Ruth Bader nasceu em Nova York em 1933 e cresceu em um mundo bem diferente do que vemos hoje. Sua carreira foi marcada por ações progressistas e feministas numa época em que muitos dos direitos que possuímos foram objetos de lutas, sobretudo nos tribunais. Seu trabalho chamava tanta atenção pela clareza e sobriedade que foi escolhida pelo então presidente Bill Clinton para compor a Suprema Corte dos EUA, sendo a segunda mulher a ser eleita pelo senado para ocupar uma vaga por lá. Filha de imigrantes russos e nascida no Brooklyn, já era esposa e mãe antes de ingressar na Universidade de Harvard e ser graduada em Direito pela Universidade de Columbia. Ruth se casou com o também advogado Martin D. Ginsburg, com quem permaneceu casada de 1954 até o falecimento dele em 2010. Ruth se tornou um ícone na luta pela igualdade de gênero e foi alçada ao posto de celebridade na internet, sendo recentemente retratada em um dois filmes, Suprema (2018)  e o documentário A Juíza (2018), que concorreu ao Oscar da categoria. Ruth faleceu em decorrência de um câncer no pâncreas aos 87 anos. 

PL►Y: Domando o Destino

Brady: entre o real e o fictício. 

A cineasta Chloé Zhao se tornou uma das pessoas mais faladas na última semana devido ao seu terceiro filme, Nomadland, que recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Ainda que não seja muito conhecida do grande público, Chloé tem um histórico de filmes que sempre dão o que falar. Sua estreia com Songs My Brothers Taught Me (2015) foi premiada em Sundance e seu filme seguinte, Domando o Destino apareceu em várias listas de melhores do ano (em algumas sendo o considerado "o melhor" de 2017). A repercussão de seu trabalho foi tão grande que ela caiu no radar da Marvel que a convidou para realizar Os Eternos com estreia prevista para o ano que vem (e admito que fico bastante curioso para ver o resultado desta combinação). Domando o Destino conta a história de um peão de rodeio que após um acidente tenta voltar à sua antiga vida. Logo no início vemos Brady (Brady Jandreau) com vários pontos recentes na cabeça e uma sensação de dor contante em seu rosto. Aos poucos conhecemos um pouco mais sua família, seus amigos e seu desejo de voltar a montar assim que estiver plenamente recuperado. No entanto, não demora para perceber que com enjoos constantes, desmaios e uma reação adversa em sua mão que a situação é bem mais complicada do que ele esperava. Some isso aos encontros com um amigo que sobreviveu a um acidente com consequências ainda mais graves (que parece uma espécie de lembrança de que poderia ter acontecido algo muito pior aos dois) e você terá ideia do que se passa na cabeça do rapaz. Apesar das dificuldades, Brady ainda é uma celebridade local, vez por outra algumas pessoas pedem para tirar fotos com ele, ou até mesmo o reconhecem quando começa a trabalhar em um mercado local. Enquanto nutre o sonho de voltar a montar para driblar a sensação de vazio que o acomete, seu pai e a realidade em seu redor insiste em demonstrar para ele que não é seguro retornar. Com este material nas mãos, Chloé Zhao faz uma verdadeira ode aos cowboys modernos. Utiliza cenas que celebram imagens clássicas do cinema que celebraram este tipo de personagem, muitos planos abertos, a planície com a linha do horizonte distante, a cavalgada ao nascer do sol e até a máxima "um homem tem que fazer o que ele tem que fazer", estes elementos apenas colaboram para apresentar a força e a determinação de um personagem que se encontra com o corpo fragilizado. Zhao constrói um filme intimista, real e emocionante que quase sempre não precisa de palavras para ilustrar o que vemos na tela. Ao terminar o filme fui pesquisar sobre o seu ator principal e descobri que Brady Jandreau foi a inspiração para construção do filme. Ele nunca havia trabalhado como ator (o que deixa seu trabalho ainda mais notável), era domador de cavalos e realmente sofreu um acidente parecido com o do personagem. Sua família no filme é sua família na vida real e deixa aquela pergunta de até que ponto vai a ficção do filme. Domando o Destino constrói uma sensação de verdade embalada por uma fotografia impressionante e se destaca pela sensibilidade com que conta sua história. 

Domando o Destino (The Rider / EUA -2017) de Chloé Zhao com Brady Jandreau, Tim Jandreau, Lilly Jandreau, Leroy Pourier, Cat Clifford e Lane Scott. ☻☻

PL►Y: O Diabo de Cada Dia

Tom Holland: bem longe da Marvel. 

É até estranho imaginar que no nos cafundós de Ohio exista um vilarejo chamado Knockemstiff (algo como Baternelesrigidamente), mais estranho ainda é saber que aquele lugar tem seu lugar garantido na literatura pelas obras de seu cidadão mais ilustre, o escritor Donald Ray Pollock. Donald viveu por lá a maior parte de sua vida, mas ao observar a rotina de seus poucos cidadãos e as histórias que a cidade escondia criou histórias assustadoras sobre pessoas que precisavam apenas de uma brecha para deixar a violência invadir suas vidas. Localizada quase na fronteira com o Canadá e repleta de fazendas, a cidade possui cerca de 450 habitantes que costumam viver em residências afastadas na paisagem bucólica da região. Tendo como maiores empregadores as fábricas de aço, borracha e papel (o próprio escritor trabalhou nesta antes de se dedicar à literatura), Pollock percebe nesta realidade aparentemente tranquila um território propício para suas histórias em que a maldade humana sempre encontra um espaço para aparecer (e se alastrar). Quando a Netflix anunciou a produção de um dos seus romances mais conhecidos (no Brasil traduzido como O Mal Nosso de Cada Dia), os fãs ficaram curiosos para ver o resultado, principalmente aqueles que seu conteúdo se adequaria mais ao formato de minissérie - afinal, existe um grande número de personagens e fatos que atravessam mais de vinte anos. O cineasta Antonio Campos (filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes e da produtora ítalo-americana Rose Ganguzza) tinha uma tarefa árdua pela frente ao desbravar o emaranhado de crimes presente na obra, mas alcança um resultado eficiente em sua atmosfera tão densa quanto agressiva, especialmente pelo elenco dedicado. Basta ver o título para perceber que a religiosidade está impregnada na trama, mas através de um devotamento cego e doentio, especialmente em sua primeira parte quando conhecemos as histórias de Arvin e Lenora. Ambas crianças que se tornam órfãs pelo pensamento distorcido pela fé de seus pais. O pai de Arvin (Bil Skarsgaard) parece sempre perturbado pelo que testemunhou na Segunda Guerra Mundial, já o da garota, o pastor Roy Lafferti (vivido pelo impressionante Harry Melling - coloquem o rapaz em mais filmes, por favor!), está tão seguro em suas crenças que se torna cada vez mais distante da realidade. Arvin e Lenora acabam crescendo juntos e apegados um ao outro como se fossem irmãos,. Quando jovens (agora vividos por Tom Holland e Eliza Scanlen) são perseguidos por outros jovens locais, o que deixa Arvin sempre disposto a se meter em encrenca para proteger a irmã. Pairam ao redor deles alguns personagens sórdidos, como o pastor dissimulado Preston Teagardin (Robert Pattinson), um casal de serial-killers Carl (Jason Clarke) e Sandy (Riley Keough), a irmã do xerife Lee (Sebastian Stan). Entre crimes e inocências perdidas a trama avança até que todas as pontas desenvolvidas ao longe de suas mais de duas horas se amarrem auxiliada pela narração do próprio Donald Ray Pollock. Pelo visto o autor aprovou o resultado, ainda que muito do livro tenha sido cortado, especialmente no que diz respeito dos coadjuvantes (o que deixa alguns personagens muito unidimensionais e, neste ponto, cabe destacar o trabalho do elenco). Campos é um bom diretor de atores (basta lembrar seu trabalho anterior, Christine/2016 em que Rebecca Hall merecia uma indicação ao Oscar por seu trabalho) e todos aqui estão bastante convincentes como pessoas endurecidas pela vida (com destaque para o sotaque já que o filme misturas atores de várias partes do mundo).  No fim das contas, condensar a história nas limitações de um filme realmente pode deixar a história ainda mais árdua de ser acompanhada pela sucessão de tragédias, mas o filme prende a atenção ao penetrar no universo de um escritor que ainda não havia encontrado espaço no cinema ou na televisão.  

O Diabo de Cada Dia (The Devil All The Time / EUA-2020) de Antonio Campos com Tom Holland,  Eliza Scanlen, Robert Pattinson, Bill Skarsgård, Haley Bennett, Sebastian Stan, Riley Keough, Jason Clarke e Mia Wakikowska. ☻☻


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

PL►Y: O Público

Emilio e Rhymefest: traído pela leveza. 

Emilio Estevez é filho de Martin Sheen (e irmão de Charlie Sheen) e além de ator também é diretor. Acho que sua maior conquista foi ver seu longa Bobby (2006) concorrer ao Globo de Ouro de Melhor Filme dramático daquele ano. Quando assisti O Público, tive a ideia de que ele gostaria de ser lembrado novamente em alguma premiação importante, o que não aconteceu, embora o filme seja interessante e levante uma discussão relevante sobre a situação dos sem-teto nos Estados Unidos. Além de dirigir, Emilio também atua no filme, interpreta o bibliotecário Stuart Goodson, que trabalha em uma biblioteca pública de Cincinati, Ohio, que com a chegada de um inverno rigoroso, está cada vez mais cheia. Os funcionários percebem que os moradores de rua das redondezas aguardam ansiosos a abertura da biblioteca para cuidar da higiene e ter um lugar seguro para ficar durante o dia. Os funcionários parecem não se incomodar com isso, embora a situação renda alguns contratempos - como uma polêmica envolvendo Goodson que logo se torna uma plataforma política. No entanto, a coisa piora quando um morador de rua é encontrado morto na porta do prédio, congelado pelo frio. Por medo de que o mesmo possa acontecer aos demais, aquelas pessoas que não tem para onde ir decidem nãos sair da biblioteca após seu horário de funcionamento, promovendo uma ocupação para que não morram de frio do lado de fora. O que poderia ser um ato político de solidariedade, acaba se tornando um grande mal-entendido pelos olhos da mídia e dos administradores do local. O episódio acaba trazendo à tona fatos sobre o passado de Stuart e gerando algumas discussões sobre uma situação delicada. Fosse apenas sobre a ocupação o filme seria bem interessante, mas ele se dispersa em alguns pontos que são mal trabalhados, não por incompetência, mas porque não faria a mínima diferença se estas partes fossem cortadas do roteiro. A busca pelo filho do negociador vivido por Alec Baldwin ou o romance de Stuart com Angela (Taylor Schilling) não chegam a deixar o filme interessante, parecem estar sobrando mesmo. A opção de Emilio em criar uma narrativa leve e espirituosa também drena um bocado da tensão que poderia se esperar deste tipo de situação (que parece retirada de uma história real, mas que é pura ficção). Sorte que o elenco é bastante eficiente e constrói um filme a que se assiste até o final, mesmo que a ponta de receio de que as coisas possam sair do controle se dissolva pelo tom otimista do filme. O final é bastante inusitado (ainda mais se você imaginar que se trata da noite mais fria do ano) e rompe de vez com a ideia de que se trata de um filme comprometido com a realidade. Nas mãos de outro diretor, O Público viraria um filme pesadão, nas mãos de Estevez se torna uma crônica de costumes fácil de se assistir. 

O Público (The Public / EUA -2018) de Emilio Estevez com Emilio Estevez, Jena Malone, Michael Kenneth Williams, Taylor Schilling, Jeffrey Wright, Christian Slater, Jacob Vargas e Gabrielle Union. ☻☻