segunda-feira, 31 de agosto de 2015

KLÁSSIQO: Pulp Fiction

Willis, Jackson, Travolta e Thurman: citações bíblicas, fofocas e violência estilizada. 

Quentin Jerome Tarantino nasceu na cidade de Knoxville no Tennessee em 27 de março de 1963 e sempre foi apaixonado por cinema, tanto que virou uma espécie de mito que antes de tornar-se um dos diretores mais cultuados de sua geração, ele ganhava a vida como balconista de uma locadora de VHS (o avô do DVD). O que pode ser uma profissão desinteressante para muita gente, serviu para deixar o jovem rapaz atento aos lançamentos cinematográficos, além de permitir acesso aos clássicos da sétima arte enquanto construía um invejável repertório de referências para seus filmes. Depois de sua estreia com Cães de Aluguel (1992), o moço tinha seu próximo longa entre os mais aguardados pelos mais antenados. Dois anos depois, Pulp Fiction (pautado nos livros de bolso de ficção policial barata) ganhava a Palma de Ouro em Cannes com seus diálogos sobre hambúrguer, citações bíblicas e ícones do cinema. Para os mais conservadores foi uma espécie de afronta ver o festival de cinema mais prestigiado do mundo reconhecer o talento de um sujeito que tingia com humor negro a amoralidade, as gírias e a violência do gênero. Além disso, o filme revelou o cuidado do cineasta em escolher o ator certo para seus personagens (independente do que o mundo pensa sobre ele) e reconceituou a forma como a trilha sonora é utilizada nas cenas - tanto que para além da violência, a cena mais lembrada do filme é a cena em que Mia (a musa tarantinesca Uma Thurman) e Vince (John Travolta, ressuscitado pelo filme), dançam numa lanchonete cheia de clones de estrelas antigas do cinema ao som de You Never Can Tell de Chuck Berry  (a cena é inspirada na dança do filme A Bande À Part/1964 de Jean Luc Godard, que por sua vez, também inspirou o nome da produtora de Tarantino: A Band Apart) e nem vou mencionar os créditos amarelos ao som de Misirlou de Dick Dale. Na trama, as histórias de vários personagens inusitados se misturam de forma inesperada. De um lado está o gangster (especialista em hambúrguer) Vince e seu parceiro Jules (Samuel L. Jackson), que adora citar a bíblia antes de matar alguém. Os dois trabalham para Marsellus Wallace (Ving Rhames), casado com a  ex-atriz Mia Wallace, e vivem se metendo em encrencas. É por conta de Marsellus que a Vince cruza o caminho do lutador Butch Coolidge (Bruce Willis), que namora a francesa Fabienne (a portuguesa Maria de Medeiros), mas tem problemas no ringue  e fora dele por conta de um relógio que ganhou de seu pai. A forma como Tarantino mistura seus personagens com idas e vindas temporais e encontros reveladores é o que faz toda a diferença, tanto que recebeu o Oscar de Roteiro Original. Pulp Fiction recebeu ainda outras sete indicações (filme, diretor, edição, ator/Travolta, atriz coadjuvante/Thurman e ator coadjuvante/Jackson) e sacudiu os padrões de Hollywood, borrando as relações dos filmes independentes com os grandes estúdios (que passaram a ter seus braços independentes em busca de novidades), além de estabelecer a montagem fractada para o grande público. Desde então, Tarantino tem alimentado seus fãs com filmes que parecem uma vitamina mista exagerada de gêneros e citações - se uma vez David Lynch disse adorar ver "47 gêneros diferentes em um único filme", Tarantino eleva essa adoração à enésima potência com uma linguagem muito própria e, surpreendentemente, cômica. 

Pulp Fiction - Tempo de Violência (Pulp Fiction/EUA-1994) de Quentin Tarantino com John Travolta, Uma Thurman, Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Maria de Medeiros, Ving Rhames, Eric Stoltz, Tim Roth, Amanda Plummer, Rosanna Arquette e Harvey Keitel. ☻☻☻☻

N@ CAPA: 20 anos de Pulp Fiction

Pulp Fiction e a cultura pop!

A Capa do mês de agosto foi em homenagem ao clássico de Quentin Tarantino: Pulp Fiction. Em março o filme completou vinte anos que estreou no Brasil - no Festival de Cannes desse ano o filme recebeu até uma exibição especial - onde Tarantino debochou de quem nunca viu o filme. O segundo filme do cineasta redefiniu o gênero "filme de gangster", dando-lhe tintas menos sisudas e mais irônicas, espertas e banhadas de cultura pop (e ela retribui com paródias dos clássicos personagens de John Travolta e Samuel L. Jackson, seja com Groot e Rocket, o duo Daft Punk, O Gordo e o Magro, Dr. Who ou até Pink e Cérebro). A narrativa fragmentada onde os personagens se cruzam, constrói uma linguagem pós-moderna que tornou-se mais comum em Hollywood. Além disso, o filme rompeu as fronteiras entre o mainstream e o chamado mundo dos filmes alternativos, borrando as fronteiras que separavam um e outro ao final do século XXI. Prova disso é que a Miramax nunca foi a mesma, assim como as trilhas sonoras (quem não lembra de Misirlou ou Girl, You'll be a woman Soon entre as mais tocadas nas rádios?) e quanto aos filmes independentes nem se fale! Tarantino quebrou padrões, misturou tendências e liquidificou referências culturais variadas na obra que lhe valeu inúmeros prêmios, incluindo a Palma de Ouro em Cannes e o seu primeiro Oscar de roteiro original. Os críticos diriam que sem Pulp Fiction não existiria Danny Boyle ou Guy Ritchie e toda uma série de diretores que surgiram após seu sucesso. Pulp Fiction é mais do que um clássico, tornou-se um verdadeiro marco referencial da história de Hollywood. 

NªTV: Show me a Hero

Oscar: aula de política na HBO.

Sempre tenho a impressão que depois que Crash (2004) derrotou o favorito O Segredo de Brokeback Mountain (2004) na categoria de melhor filme no Oscar, ele ganhou automaticamente o ódio de uma legião de cinéfilos. Anos depois, ele sempre aparece em listas dos piores ganhadores do Oscar de todos os tempos. Quem sofre com o tom amargo dessa crítica é Paul Haggis, que viu seu longa ir do posto de um dos mais elogiados do ano ao lugar de um dos mais criticados da história do prêmio da Academia. É verdade que o filme de Haggis não é perfeito, mas está longe de ser a catástrofe que sugerem. Depois de Crash, Haggis dirigiu outros dois filmes que não mereceram muita atenção e que só fazia com que seus críticos ressaltassem que ele é melhor roteirista do que diretor. Talvez, um tanto cansado de tudo isso, Haggis investiu na nova minissérie da HBO, Show me a Hero, que investe em alguns pontos que o famigerado Crash também abordava, mas sem a necessidade de ser conciso e coerente em quase duas horas de duração com uma dezena de personagens que se cruzam em cena. Show me a Hero tem oito episódio, três já foram ao ar nas noites de domingo na HBO Brasil e, ao que parece, o diretor quer provar que é melhor do que seus críticos sempre insistem em dizer. A trama é baseada na história real de Nick Wasicsko, que tornou-se prefeito da cidade de Yonkers, Nova York, aos 28 anos, tornando-se o prefeito mais jovem eleito para uma grande cidade americana, enfrentando um grande dilema quando sua cidade viu-se obrigada a criar casas populares para as classes menos favorecidas. A obediência de Wasicsko despertou o ódio de vários moradores da cidade que tinham receio dos moradores dos conjuntos habitacionais trazerem violência e drogas para as redondezas. Em Show me a Hero, Wasicsko é interpretado por Oscar Isaac (em atuação premiável) que demonstra obediência e resignação diante da ordem judicial (traindo um dos pontos principais de de sua campanha), mas que ao mesmo tempo, percebe que a ordem serve de instrumento para que seus concorrentes manipulem a situação com vista às novas eleições. Capitaneados pelo vice-prefeito Hank Spallone (Alfred Mollina), alguns vereadores criaram oposição ao projeto das casa populares, começando uma espécie de guerra entre os moradores e políticos da cidade. Entre protestos, multas diárias e ameaças de prisão, Wasicsko tenta manter a calma e superar a maré de azar que seu primeiro ano de mandato atravessou. Haggis utiliza a situação para mostrar como o jogo político é mais complexo do que a maioria dos eleitores percebe, não se tratando de apenas mocinhos e vilões, mas de diversos interesses que estão em jogo pelo poder. Nisso, a população é menos ouvida e mais manipulada diante das situações apresentadas. Paralela à luta de interesses na prefeitura, o programa mostra o cotidiano das pessoas comuns que são vistas com tanto receio pela população dos bairros centrais de Yonkers. Além de Oscar Issac e Mollina, a minissérie ainda conta com atuações competentes de Catherine Keener (como uma senhora de cabelos grisalhos), Jon Bernthal e Bob Balaban, mas o peso recai mesmo é sobre os ombros de Isaac que mostra-se cada vez mais seguro em cena. O interessante é que tanto aqui como no excepcional O Ano Mais Violento (2014), o ator faz lembrar muito o estilo de Al Pacino em capturar nossa atenção com uma tensão que transborda no olhar e torna palavras dispensáveis. Ao que parece, a escalação de Oscar é fundamental para que Haggis alcance seus objetivos para emular o tom de sua narrativa calcada na urgência dos clássicos políticos das décadas de 1970/1980 e abandonar a pecha sensacionalista de Crash. Em Show me a Hero, a política emerge como o centro da narrativa, mostrando que ela pode servir a poucos e criar uma ilusão sobre a realidade aos menos atentos. 

Show me a Hero (EUA/2015) de Paul Haggis, com Oscar Isaac, Alfred Mollina, Carla Quevedo, Catherine Keener, Bob Balaban, Winona Ryder, Jon Bernthal e Marisol Sacramento. ☻☻☻

4EVER: Wes Craven

02/08/1939    31/08/2015

Poucos diretores de filmes de terror no final do século XX podem se gabar de ter colecionado tantos filmes marcantes. Depois de trabalhar escrevendo e dirigindo filmes eróticos para pagar as contas, sua estreia com Aniversário Macabro (1972), um marco nos filmes de horror, o fez mudar para seu gênero favorito. O fato é que Wesley Earl Craven, mais conhecido como Wes Craven ganhou fama mundial em 1984 com A Hora do Pesadelo, onde criou seu personagem mais célebre: Freddie Kruegger - que aterroriza os sonhos de adolescentes há de´cadas. Doze anos depois, quis mostrar que ainda estava em forma e lançou a franquia Pânico (1996), onde os quatro episódios se tornaram sucesso de bilheteria com sua protagonista ímã de psicopatas. Em seus vinte e nove trabalhos na direção, Craven garantiu até uma das indicações de Meryl Streep ao Oscar com Música do Coração (1999), único drama de sua filmografia sobre uma professora de música que ensinava música para alunos de baixa renda. Craven faleceu por consequências de um câncer no cérebro, aos 16 anos na Califórnia.  

sábado, 29 de agosto de 2015

PL►Y: Calvário

Gleeson e O'Dowd: um padre e seus fiéis estranhos. 

John Michael McDonagh estreou na direção com o incomum O Guarda (2011), filme que rendeu para o veterano ator irlandês Brendan Gleeson uma indicação ao Globo de Ouro de melhor ator de comédia. Já que a parceria funcionou, McDonagh escalou Gleeson para ser o protagonista de seu filme seguinte, o elogiado Calvário (2014). Ambos deixam claro que o cineasta roteirista tem um humor bastante peculiar, que tende tanto para o humor negro, quanto para uma crítica ácida das instituições. Se isso acontecia em seu filme anterior sobre agentes, detetives e policiais, em Calvário sua lente aponta para a igreja católica. Será mesmo? No início, o padre James (Gleeson) recebe no confessionário um homem que diz ter sofrido abusos sexuais de um padre quando era criança e que, embora adulto, ainda não superou as marcas que aquele tempo lhe provocou. O diálogo chocante continua, quando ele afirma que o padre que o violentou está morto, mas que se estivesse vivo não adiantaria nada matá-lo, porque não adianta matar um padre ruim para deixar uma mensagem, a mensagem, para ser ouvida, tem que ser a partir do assassinato de um padre bom. Diante disso o homem gera mais do que uma confissão, mas um aviso "eu vou te matar, padre James"! Até a data é revelada (no próximo domingo), assim como o local (na praia). O futuro assassino diz que deixa uma semana para que o padre resolva sua vida. A partir daí, padre James não está disposto a denunciar o seu algoz (que somente ele sabe quem é, mas não revela a ninguém) pelo contrário, caminha pela cidade como se nada houvesse acontecido, interagindo com os moradores da cidade onde vive (inclusive com seu futuro assassino). Menos interessado em gerar o suspense de descobrir quem é o assassino do padre (eu percebi desde o início pela voz do ator), McDonagh prefere retratar a semana árdua do seu protagonista - onde ele reencontra a filha que tentou suicídio (Kelly Reilly) e os moradores da cidade: uma mulher (Orla O'Rourke) que apanha do marido açougueiro (Chris O'Dowd) por traí-lo com um mecânico (Isaach De Bankolé), um médico sádico (o bom Aidan Gillen de "Game of Thrones"), um inspetor de polícia (Gary Lydon) que passa o tempo com um garoto de programa (Owen Sharpe), o morador milionário esnobe da região (Dylan Moran), entre outros quase sempre desagradáveis com o protagonista. Tanta estranheza torna o programa um tanto sádico para a plateia. O ator Dylan Moran, em entrevista de divulgação do filme, deu uma ótima explicação para a hostilidade que a maioria dos personagens direciona para o padre: "Para alguns ele é um símbolo da igreja católica, para outros é um amigo. Para alguns é um conselheiro, para outros uma figura de autoridade... o que vemos são as diferentes reações que as pessoas tem ao redor do que ele representa naquela região". Sendo assim, James é o retrato de como os estigmas da instituição católica recaem sobre seus ombros (e onde ele mesmo se depara com o preço de uma certa indiferença de sua parte). Se levarmos em consideração sua responsabilidade sobre deixou suas "ovelhas saírem do caminho correto" (será que ele tinha realmente esse poder sobre elas?) e que a história é ambientada na Irlanda (em seu eternos conflitos religiosos), temos uma ideia do que McDonagh deixa nas entrelinhas da história. Quem curte humor negro irá considerar o filme uma obra-prima... mas eu ainda penso que quando todos os personagens convergem para uma única nota tudo fica um tanto cansativo e pobre em nuances, restando nos apegar às atuações do elenco que faz o que pode dentro de uma certa mesmice do roteiro. Para além de Gleeson (que já provou várias vezes ser um ótimo ator), chama atenção a presença sínica de Aidan Gillen, o nervosismo de Chris O'Dowd (num papel diferendo do que acostumamos a ver seu tipo simpático) e a esperteza do menino Michael Og Lane (que também teve presença marcante em O Guarda), Michael vive o coroinha que surge como um ponto de esperança numa cidade onde morrer pode ser melhor do que conviver com tanta hostilidade.



Calvário (Calvary/Irlanda - Reino Unido/2014) de John Michael McDonagh com Brendan Gleeson, Chris O'Dowd, Aidan Gillen, Kelly Reilly, Michael Og Lane e Dylan Moran. ☻☻☻

PL►Y: Qual é o nome do Bebê?

Jantar com os amigos: hora da verdade? 

Admiro diretores que conseguem pegar peças de teatro de um único cenário e centradas somente em seus atores e consegue transformar num filme empolgante. Parece uma tarefa fácil, mas é muitíssimo complicada. Alguns criam até cenas externas para tirar o peso do texto teatral, mas tudo acaba soando tão postiço que não convence. O ranço do teatro filmado permanece ali, comprometendo a transposição para a tela e que, ainda que assistamos o filme até o final, um certo desconforto fica sempre latente no espectador (exemplo recente é Miss Julie/2014 que tinha tudo para funcionar, mas parece sempre estar sobre o palco). Qual é o Nome do Bebê deixa que apenas os mais entendidos percebam que a origem do seu seu texto é teatral, afinal, os diretores Alexandre de La Patelière e Matthieu Delaporte consegue manter o ritmo e espantar da sessão qualquer sinal de texto recitado ou performance com marcações de cena. O elenco também merece elogios por defender seus personagens comuns de forma bastante inspirada, revelando aos poucos suas personalidades em torno de uma discussão que começa por conta do nome que um deles escolheu para o filho que está para nascer. Depois de uma introdução em que somos apresentados aos personagens e as formas como se conheceram, nos deparamos com um jantar na casa de Anna (Judith El Zein) e Pierre (Charles Berling), ambos professores e pais de duas meninas. Anna aguarda seu irmão, Vincent (Patrick Bruel) e a esposa dele, Élisabeth (Valérie Benguigui), para uma visita. Também participa do encontro o melhor amigo de infância de Anna, o reservado músico Claude (Guillaume de Tonquedec) - amigo desde os tempos em que eles faziam aulas de balé para crianças. Todo o problema começa quando Vincent revela o nome que escolheu para o filho - inspirado pelo nome do personagem do livro que lia na época que conheceu a esposa (e, que por acaso, ela lia também). O problema é que o nome é o mesmo de uma figura histórica execrável e... deixa os ânimos de todos um tanto exaltados, principalmente de Pierre. Esse é apenas o primeiro passo para um jantar de vários desentendimentos e algumas revelações que irão mudar o relacionamento dos cinco personagens de forma determinante. Ágil e bem humorado, o texto prende a atenção e surpreende pela forma como consegue manter o ritmo e a dinâmica (um tanto elétrica entre os personagens) durante todo o filme.  Em Qual é o nome do Bebê? a humanidade que transpira dos personagens é um exemplo para o que falta na maioria das comédias que o cinema americano e brasileiro costumam lançar aos montes todos os anos (e arrecadando bilheterias consideráveis) com personagens caricatos às pencas, por isso mesmo, essa deliciosa comédia francesa pode ser surpreendente. 

Qual é o nome do Bebê? (Le prénom/França-2012) de Alexandre de La Patelière e Matthieu Delaporte com Patrick Bruel, Charles Berling, Judith El Zein, Alexandre de La Patelière e Matthieu Delaporte e Valérie Benguigui. ☻☻☻☻

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Na Tela: O Expresso do Amanhã

Evans: mudando o status quo? 

É sempre estranho quando filmes interessantes e cheios de ideias não alcançam o sucesso esperado. Lançado em 2013 em países como Coreia do Sul (terra do seu diretor) e França (terra do criador da HQ que deu origem ao filme), O Expresso do Amanhã foi lançado nos cinemas americanos em 2014 nos EUA e arrecadou pouco mais de quatro milhões e meio nas bilheterias do Tio Sam. A bilheteria minguada não deixou o filme de fora de algumas de listas de melhores lançamentos daquele ano. Dois anos depois o filme estreia no Brasil sem grande alarde, mas não ficarei admirado se com o passar dos anos o filme seja redescoberto e se torne um desses cults idolatrados como Blade Runner/1982 (que tornou-se anos depois de suas bilheterias paupérrimas) O motivo para a bilheteria decepcionante pode ser creditado ao tom incomodamente cômico impresso pelo diretor Joon Ho-Bong em algumas cenas ou à essência revolucionária que o filme carrega sob o disfarce da ficção científica. A trama conta a história de um trem gigantesco que abriga e transporta os últimos sobreviventes do planeta Terra depois que a liberação de uma substância química, que prometia manter a temperatura mais agradável, tornou o mundo num imenso bloco de gelo. O trem foi idealizado e criado pelo industrial visionário Wilford (Ed Harris), mas para que mantenha-se funcional e seguro, torna-se necessário que algumas regras sejam seguidas para que o ecossistema existente na máquia funcione perfeitamente. Algumas dessas regras iremos descobrir ao longo do filme, outras serão apresentadas pela ministra Mason (Tilda Swinton se divertindo com uma personagem que beira a caricatura). Conforme ela explica tão asquerosamente bem, a sociedade que mantém o trem funcionando é formada por pessoas diferentes que vivem em vagões diferentes e de estruturas distintas, qualquer ameaça à ordem estabelecida dos vagões deve ser coibida. Quem pertence ao último vagão, jamais terá o direito de ir para os outros e, ainda assim, deverá agradecer pela chance de estar vivo (ainda em condições que beiram a indigência). Porém, existe um movimento crescente de insatisfação com as condições de vida no último vagão, liderados por Gilliam (John Hurt) e organizados por Curtis (Chris Evans), um grupo de sobreviventes tentará chegar ao primeiro vagão e convencer Wilford de que algumas regras do trem precisam ser revistas. Assim, os personagens partem por um jornada violenta dentro do trem, onde o objetivo é modificar a estrutura existente entre os habitantes, mas, a tarefa será mais complicada do que imaginam - e quando chegarem no limite da missão, tudo pode se tornar ainda mais surpreendente. Joon Ho-Bong faz uma obra curiosa, violenta, cruel e incômoda, mas não perde de vista a simbologia que difere O Expresso do Amanhã da grande maioria dos filmes de ação que chegam aos cinemas. O trem gigantesco, reflete com perfeição vários aspectos que observamos num mundo globalizado, da necessidade de criar um ambiente sustentável até a necessidade de manter uma ordem que favorece somente alguns. Baseado na HQ Le Transperceneige criada por Jacques Lob e Benjamin Legrand, o mundo pós-apocalíptico do filme utiliza toques de fantasia para disfarçar o que há de mais real em sua história. Vale a pena conferir o filme que figurou nas lista mais atentas de melhores lançamentos de 2014 (e foi assim que o descobri), além de suas qualidades de produção, ainda conta com uma atuação memorável de Tilda Swinton envolta de ideias que ficarão em sua cabeça por bastante tempo. 

Tilda: a razão de um sapato jamais ficar na cabeça. 

O Expresso do Amanhã (The Snowpiercer/ Coréia do Sul - República Checa/2014) de Joon Ho-Bong com Chris Evans, Tilda Swinton, Kang Ho-Song, John Hurt, Jamie Bell, Ocatavia Spencer, Ed Harris e Alison Pill. ☻☻☻☻

sábado, 22 de agosto de 2015

PL►Y: Ex-Machina

Alicia Vikander: quase humana.  

A primeira relação do escritor Alex Garland com o cinema foi por intermédio do controverso A Praia (2000) do diretor Danny Boyle. Sabiamente, Alex se afastou do roteiro e preferiu trabalhar com a cenografia do filme... parece pouco, mas esse detalhe já deixava claro que o jovem escritor (30 anos na época) tinha outros interesses com o mundo do cinema. Depois ele investiu em mais duas parcerias com Boyle (Extermínio/2002 e Sunshine/2007) que revelavam muito do seu interesse pela ficção científica (interesse que também aparecia no seu roteiro para o drama dos clones de Não me Abandone Jamais/2010 e de Dredd/2012). Com seu vínculo cada vez mais estreito com o cinema, era de se esperar que o moço estreasse como diretor em algum momento. Ex-Machina marca sua bela estreia como cineasta, onde já demonstra pleno controle do que está em cena, além de poder gerar discussões acaloradas em quem embarcar em sua proposta. O filme conta a história do jovem programador Caleb (Domhnall Gleeson), que é selecionado pelo dono da empresa em que trabalha para participar de alguns testes de um experimento revolucionário na casa/laboratório do patrão, Nathan (Oscar Isaac). Nathan está trabalhando em uma inteligência artificial que precisa de alguns testes antes de ser considerado completo. A experiência atende pelo nome de Ava (Alicia Vikander) e nem ela ou Caleb sabem ao certo no que consiste o tal teste. De acordo com Nathan, serve apenas para perceber a resposta de Ava aos estímulos da convivência com um homem que não seja seu criador - mas, aos poucos, percebemos que a proposta é bem mais complicada, já que Caleb nunca sabe se ele também está sendo testado dentro do experimento (e Nathan, com seu comportamento instavelmente alcoolizado, não inspira muita confiança). Com poucos personagens em cena (os três e mais uma assistente) e uma casa que parece um labirinto, Garland constrói um enredo movediço, onde o espectador compartilha com o protagonista o desconhecimento do que está acontecendo. Nesse ponto, tudo soa ameaçador e claustrofóbico: da postura de Nathan com sua invenções, passando pela atração que nasce entre Ava e Caleb, tudo é milimetricamente calculado para que Garland conte sua fábula futurista e misture referências que vão de Alan Turing e seu Jogo da Imitação/2014), Frankenstein, Nietzche e Blade Runner/1982. Garland desenvolve seu filme lentamente, revelando bastante amparo aos seus atores. Gleeson está bem em cena, mas são seus coadjuvantes que roubam o filme. Oscar Isaac está perfeito como o cientista brilhante e indigno de confiança, assim como Alicia Vikander, que consegue ser sedutora com o corpo ainda incompleto, com suas entranhas tecnológicas à mostra (o que parece por si só uma humilhação à personagem). Basta ver a arrepiante última cena entre criador e criatura para o filme entrar para a história da ficção científica. Ainda que demore uns vinte minutos para engrenar, o filme é cheio de qualidades (incluindo a plasticidade dos cenários e a fotografia caprichada) e merece ser visto! Torna-se apenas lamentável que não tenha encontrado espaço nas telas brasileiras (na Argentina, por exemplo, o filme estreou em março). Posso até ouvir os distribuidores considerarem que o filme era lento  "sofisticado demais" para o público brasileiro (talvez por isso tenham lhe dado o subtítulo horrendo de Instinto Artificial... hein?!), uma forma diferente de dizer que estamos preparados somente para assistir porcarias (como aquela lamentável porqueira Chappie/2015). Ex-Machina tem lugar garantido na minha lista de melhores do ano e tem fortes chances de entrar para a sua também. 

Gleeson e Isaac: boas atuações.

Ex-Machina  (Reino Unido/2015) de Alex Garland com Domhnall Gleeson, Oscar Isaac, Alicia Vikander e Sonoya Mizuno. ☻☻☻☻

PL►Y: Festa no Céu

Triângulo Amoroso: entre lembrados e esquecidos. 

Muita gente choramingou a ausência de uma indicação para o histérico Uma Aventura Lego entre os indicados ao Oscar desse ano. Pois eu senti mais falta dessa animação produzida por Guillermo Del Toro, inspirada no folclore mexicano entre os indicados. Tendo como ponto de partida um conto sobre o dia dos mortos celebrado no México no dia dois de novembro (o mesmo que o nosso tradicionalmente cinzento dia de finados, mas com um tom mais alegre e festivo com caveiras de chocolate e decorações floridas). O filme conta a história de um triângulo amoroso formado desde a infância por Manolo (voz de Diego Luna), Maria (voz de Zoe Saldana) e Joaquin (voz de Channing Tatum) que recebe a interferência de duas divindades que cuidam de áreas diferentes do mundo dos mortos, uma é La Muerte (que na versão brasileira recebeu a voz de Marisa Orth) que cuida da área onde vivem "os lembrados" - uma parte colorida e festiva onde vivem as almas de quem é lembrado por familiares e amigos. A outra é o sombrio Xibalba (voz do Hellboy Ron Perlman na versão original), que cuida do lado dos esquecidos, mais triste e desolador. Acontece que Xibalba quer expandir seus domínios pela terra dos lembrados e convence La Muerte a apostar em quem casará com Maria. Enquanto La Muerte aposta em Manolo, Xibalba aposta em Joaquin (mas antes lhe confere um amuleto que o torna indestrutível às ameaças que cruzarem seu caminho). Com os dois de olho, Manolo tenta vencer a resistência da família de toureiros para se tornar músico, enquanto Joaquin terá que superar sua covardia e se tornar um bravo militar mexicano. Enquanto isso, Maria terá que superar a visão machista de seu pai e tornar-se  a mulher independente que sempre sonhou ser (ainda que educada num internato de freiras). O trio cresce e com o retorno de Maria à cidade natal, a disputa entre os dois amigos se acirra, mas por um golpe de Xibalba, Manolo vai para a terra dos lembrados e terá que vencer alguns desafios para defender sua cidade e a terra dos lembrados. Parece sombrio, mas a direção de Jorge R. Gutiérrez transforma a história num espetáculo visual que é delicioso de assistir! As cores e músicas vibrantes (algumas sendo releituras "latinas" de sucessos da música pop) deixam tudo na medida para que a animação se distancie do senso comum das animações. Com vários momentos emocionantes na história, Festa no Céu  é forte candidato a uma das mais visualmente criativas animações dos últimos tempos. 

Festa no Céu (The Book of Life/ EUA-2014) de Jorge R. Gutiérrez com vozes de Diego Luna, Zoe Saldana, Channing Tatum, Ron Perlman, Ice Cube e Hector Elizondo. ☻☻☻

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

CATÁLOGO: Perdendo a Noção

Coogan (de camiseta branca): ideias e asneiras. 

Na ativa desde o final dos anos 1980, Andrew Fleming ainda consegue ser um diretor bastante imprevisível devido a irregularidade de suas produções. Ele estreou com um filme trash (Sonho Mortal/1988), mas ganhou alguma notoriedade com o provocativo Três Formas de Amar (1994), onde colocava Josh Charles, Stephen Baldwin e Lara Flynn Boyle para dividir a mesma cama. O filme causou tanto rebuliço com suas conotações sexuais que dois anos depois ele conseguiu alcançar sucesso com Jovens Bruxas (1996). Desde então seus filmes nunca mais chamaram muita atenção do público ou da crítica. Dia desses me deparei com Perdendo a Noção, seu sétimo filme e que parte de uma ideia inusitada: um professor de arte dramática desesperado resolve salvar sua aula da extinção bolando um musical chamado Hamlet 2 (?!). Não se trata apenas de bolar uma continuação da história criada por Shakespeare, mas misturá-la ao uso de uma máquina do tempo que faz o príncipe da Dinamarca encontrar até Jesus Cristo! Não preciso sem dizer que se trata de um grande devaneio, mas que o roteiro tenta utilizar como pretexto para a defesa da liberdade de expressão. Fleming poderia ter se agarrado nisso para fazer rir diante de um filme mais relevante, mas prefere tropeçar a cada três minutos em algumas bobagens. Para começar, seu protagonista, o professor Dana Marschz (Steve Coogan) é apresentado como um sujeito tão idiota que fica difícil se identificar com ele. Talvez parte da culpa seja de Steve Coogan que se torna uma espécie de sub-Jim Carrey (que teria sido um ótima opção para o papel). Com uma turma de rejeitados, ele precisa despertar o interesse deles e ainda evitar que sua aula seja cortada depois de passar anos fazendo adaptações de filmes para os palcos escolares (e sendo massacrado por um aluno crítico que leva o teatro mais a sério do que o professor). Os coadjuvante são apenas caricatos durante a história (sendo que os pais do aluno Armando serve para brincar com isso) e tudo gira em torno de Marschz, um ator frustrado, com um casamento falido (com Catherine Keener), que precisa alugar um quarto (para David Arquette) para ajudar nas despesas. Marschz é apaixonado por cinema, sempre cita filmes e atores (esses sempre anunciados com um adjetivo antes), quase tem uma crise quando encontra com Elizabeth Shue desistindo da carreira e trabalhando como enfermeira e de vez em quando revela uma pendenga mal resolvida com o próprio pai (por isso a ideia de Hamlet, sacaram?). A ideia de Fleming é interessante, mas o roteiro ruim quase coloca tudo a perder com doses desnecessárias de baixarias que ficam um tanto deslocadas na trama. No entanto, pode valer a pena esperar para ver o resultado da tal peça, com uma parafernália cênica bem elaborada e ameças de que tudo será interditado (por conta de canções como a inacreditável "Rock me sexy Jesus", que se torna um dos pontos altos do filme). Curiosamente, o título em português pode ter tanta relação com o personagem quanto com Andrew Fleming, que ainda encontra uma grande dificuldade para crescer como cineasta.

Perdendo a Noção  (Hamlet 2/EUA-2008) de Andrew Fleming com Steve Coogan, Catherine Keener, Skylar Astin, Elisabeth Shue, Amy Poehler e David Arquette. ☻☻

PL►Y: ABC da Morte 2

Zumbis? Não, apenas um efeito colateral de uma droga. 

Ouvi falar desse filme quando foi citado numa lista de melhores histórias de terror do século XXI. Na verdade não era citado o filme inteiro, apenas um dos vinte e seis curta metragens que o compõem, um para cada letra do alfabeto.  Por acaso, a tal história citada é justamente a última apresentada a correspondente à letra Z: uma mulher que fica grávida por mais de treze anos, se alimentando de uma estranha raiz que mantém o feto crescendo dentro dela por todo esse tempo até que o marido retorne para buscá-la. Essa ideia absurda é apenas uma das que perpassam todo o filme. Desde o início a produção explica que convidou diretores de origens distintas (do Brasil inclusive) para filmarem os curtas, sendo que lhes conferiu plena liberdade criativa. O resultado é obviamente irregular e desigual, mas entre as histórias existem verdadeiras pérolas. Na verdade as histórias não precisam ser de terror, apenas que tenha como desfecho a morte de um personagem, desde que utilize esse critério somado a durar cerca de dois minutos, vale tudo! Sendo assim, enquanto algumas histórias conseguem ser bastante eficientes no pouco tempo de duração (como os dois amigos perdidos numa ilha que precisam lidar com a presença de uma garota), existem outras bastante preguiçosas (a da família oriental querendo matar a matriarca está entre as piores), outras que parecem trechos de uma obra maior (como o trio na roleta russa) ou até um comercial (como o de Vincenzo Natalli sobre uma sociedade utópica onde somente os belos merecem viver). Alguns desperta até a curiosidade de ver uma história maior, como da jovem que observa de sua janela um prédio onde os moradores se matam (que remete diretamente ao clássico Janela Indiscreta), outros são mais dramáticos como o curta brasileiro sobre o homossexual torturado que recebe uma ajuda inesperada ou da paraquedista em apuros. Outros se beneficiam de uma atmosfera certeira de suspense (como a do marido que conversa com a esposa enquanto a casa é invadida e o diretor utiliza o recurso de tela dividida com maestria) ou divertidos (como a mulher julgada por matar zumbis em legítima defesa). Existe também espaço para a fantasia de ver dois garotos que percebem que o mundo de seus brinquedos é mais sombrio do que poderiam imaginar. Diante de tantas mentes criativas, as histórias menos interessantes ficam por conta das mais sanguinolentas que não conseguem enxergar fora do lugar comum dos milhares de filmes trash já realizados (como da dupla de amigos que morrem diante da câmera do celular, mas a maior decepção fica por conta das animações ou da menina com asas de borboleta), todas muito ruins e confusas em suas propostas, conseguindo ser apenas esquecidas ao final das contas. ABC da Morte 2 tem histórias para todos os gostos e revela-se uma boa iniciativa para conhecer novos talentos do gênero - e em DVD ainda tem a vantagem de poder vê-lo aos poucos, sem tornar o programa cansativo, além disso, deixa claro que o terror funciona melhor quando seu contexto aparece bem construído e não apenas com sangue jorrando na tela. 

ABC da Morte 2 (ABCs of Death 2 / EUA-Nova Zelândia- Israel.../2013) de Julian Barratt, Vincenzo Natalli, Bill Plympton... com Beatrice Dalle, Martina García, Alex Chung, Patrick Daniel e Francisco Barreiro. ☻☻

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

PL►Y: O Hobbit - A Batalha dos Cinco Exércitos

Armitage, Freeman e McKellen: fiapo espetacular. 

Finalmente chega ao fim a estendida saga de O Hobbit no cinema e, como a maioria das pessoas imaginava, conclui-se que foi realmente um grande exagero transformar um livro de 310 páginas em três filmes com mais de duas horas de duração (e tenho minhas dúvidas se os lucros compensaram essa ideia). Em O Hobbit - A Batalha dos Cinco Exércitos, todos os problemas que vimos nos filmes anteriores se repetem (batalhas estendidas demais, um protagonista que se dilui na trama, diálogos esquecíveis...), de forma que evidencia-se ainda mais que, enquanto  Senhor dos Anéis foi concebido na literatura para formar uma trilogia coerente, O Hobbit não tinha material para tanto. É verdade que a produção repete o capricho visual do universo concebido visualmente por Peter Jackson, mas a história termina sem deixar nada de realmente memorável na cabeça do espectador. No episódio anterior (A Desolação de Smaug/2013), Jackson parecia ter encontrado o caminho para transformar A Batalha dos Cinco Exércitos no melhor de sua nova trilogia, mas não é isso que acontece. A batalha com o dragão Smaug resolve-se logo nos primeiros minutos, mas consegue sustentar a aura de herói de Bard (Luke Evans) por algum tempo nas história, mas depois... o personagem dilui-se como todos os outros na imensidão de personagens que precisam lidar com algumas passagens confusas no roteiro (até agora eu não entendi aquele piti de Cate Blanchett). No fim das contas o filme trata da cobiça de Torin (Richard Armitage), o rei dos anões, que mesmo diante da destruição que sua jornada causa, nega-se a dividir seu tesouro com seus antigos aliados. Nesse terceiro episódio o que vemos é quase a devastação completa do que conhecemos durante a trilogia. Elfos, anões, homens, orcs... todos disputam entre si as relíquias e tesouros descobertos por Torin. Mais uma vez, diante das batalhas intermináveis, o que me chamou mais atenção foi a dramaticidade dos elfos. Enquanto o roteiro não decide se o afetado Thranduil (Lee Pace com suas sobrancelhas impressionantes) é vilão na trama, Legolas (Orlando Bloom) e Tauriel (Evangeline Lilly) ganham contornos mais heroicos na trama, rendendo alguns dos melhores dilemas da história (tanto que o roteiro deixa até em aberto a possibilidade de uma história protagonizada por Legolas). No fim das contas senti certo pesar por Ian McKellen (o mago Gandalf) e Martin Freeman (o hobbit Bilbo Bolseiro), ambos com poucas chances de fazer tudo o que sabem diante da câmera, já que seus personagens passam a maior parte do tempo um tanto à deriva na trama embora merecessem o destaque anunciado em Uma Jornada Inesperada (2012), o fraco episódio inicial da trilogia. Nem precisa de um olhar muito atento para perceber que para essa conclusão sobrou um fiapo de história, ainda que Jackson faça disso um grande espetáculo visual. Espetáculo parece a palavra de ordem de Jackson desde que fundiu sua carreira a de Tolkien. Desde que cruzou as fronteiras da Terra Média, seus filmes se tornaram tão grandiloquentes que quando tenta ser intimista (como no fracassado Um Olhar do Paraíso/2008) ele erra a mão. Resta pensar quais os rumos que o diretor neozelandês seguirá agora. 

O Hobbit - A Batalha dos Cinco Exércitos (The Hobbit - The Battle of the Five Armies/ Nova Zelândia - EUA/2014) de Peter Jackson com Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Luke Evans, Lee Pace, Orlando Bloom, Evangeline Lilly, Aidan Turner e Cate Blanchett. ☻☻

PL►Y: Acima das Nuvens

Juliette e Kristen: o paradoxo cinematográfico de Olivier Assayas. 

Uma amiga disse que havia assistido Acima das Nuvens e não sabia me dizer o que tinha achado do filme. Isso me deixou curioso... Mary Enders (Juliette Binoche) é uma atriz consagrada que viaja junto à assistente, Valentine (Kristen Stewart), para uma homenagem ao diretor que a descobriu quando era apenas uma estreante de dezoito anos no filme "Maloja Snake". No meio da viagem de trem, ela precisa lidar com a preparação de seu discurso, com os preparativos para o divórcio e, um pouco depois, com a notícia de que o homenageado acaba de se suicidar. Diante de tantas perdas, Mary será convidada para atuar na versão teatral do filme que a consagrou, mas dessa vez, não fará o papel da jovem, mas da mulher mais velha que se apaixona por ela. De início, Mary não se empolga com o convite, mas como não lhe oferecem muitos papéis interessantes, ela aceita - e isso a fará mergulhar em várias angústias pessoais. A partir daí, o cineasta Olivier Assayas constrói uma história que torna-se um paradoxo, por ser simples e complexa ao mesmo tempo - afinal, durante toda a sessão, a vida de Mary parece se misturar com o texto da peça que irá encenar. Mary apresenta problemas sérios em mudar seu ponto de vista junto à personagem que lhe cabe agora, além disso, enfrenta o espectro de sua antiga parceira de cena que faleceu num acidente de carro pouco depois das filmagens. Para Mary, sua nova personagem simboliza o fracasso diante da velhice. Quem tenta fazer Mary lidar com os do passado fantasmas é a jovem Valentine, que tenta fazer a estrela mudar seu olhar sobre a personagem. Para além de Mary lidar com o novo papel, ela também precisa lidar com a passagem do tempo, do tempo em que estava no centro dos holofotes e agora precisa lidar com convites para fazer filmes de super-heróis - e ficar suspensa em cabos de aço diante de uma tela verde (coisa que ela mesma considera estar um tanto velha para isso) - ou filmes de terror sangrentos. Além disso, precisa lidar com um tempo em que a notoriedade extrapola a interpretação e ganha novas dimensões com a internet e os escândalos de sua co-estrela, Jo Anne Ellis (Chloe Grace Moretz). Ainda que não seja um filme do qual se gosta fácil, Assayas constrói uma dinâmica interessantíssima entre suas personagens, não apenas com o que se vê na tela, mas também com os signos que representam fora dela - e isso tem efeito ainda maior quando vemos Kristen Stewart dizendo frases que são quase defesas diante do que o mundo pensa sobre dela. Ver Juliette Binoche dizendo à estrela de Crepúsculo que "não basta dizer um texto, é preciso vivê-lo" soa como provocação para a atriz criticada por sua apatia cênica. Não por acaso, desde que foi exibido em Cannes no ano passado,  Kristen foi a ponta mais elogiada do elenco, nem tanto por sua atuação (que consegue até ser eficiente) e mais pela forma como encara o exercício metalinguístico proposto pelo cineasta (e no qual a última cena de Valentine é um toque genial na percepção do olhar que Mary tem sobre a peça - e a plateia costuma reclamar...). Pela tarefa, Kristen ganhou o César (o Oscar francês) de atriz coadjuvante pelo papel. Outro destaque do filme são as locações em Sills Maria, uma área montanhosa da Suíça onde a formações das nuvens provocam um espetáculo à parte e que complementa com grande beleza esse olhar de Assayas sobre o mundo das celebridades. A beleza efêmera das nuvens no desfiladeiro parece lembrar o tempo inteiro à Mary os seus maiores medos diante da carreira e da imagem que lhe são tão valiosas. Pelos desdobramentos que permanecem em nossa mente por vários dias, o filme surpreende. 

Acima das Nuvens (Clouds of Sils Maria/ França-Alemanha-Suíça/2014) de Olivier Assayas com Juliette Binoche, Kristen Stewart, Chole Grace Moretz, Johnny Flynn e Brady Corbet. ☻☻☻☻

sábado, 15 de agosto de 2015

PL►Y: Kingsman - Serviço Secreto

Firth e Egerton: a arte de lutar sem perder a elegância. 

De vez em quando surge um diretor que parece acertar na medida do gosto de uma geração de jovens cinéfilos. No século XXI esse sujeito parece ser Matthew Vaughn. O homem que ficou conhecido como produtor dos primeiros (e saborosos) filmes de Guy Ritchie e que estreou na direção com o elogiado Nem Tudo é o que Parece (2004), dedica-se desde então a adaptar quadrinhos para as telas. Mas Vaughn é esperto o suficiente para sempre fugir do trivial, foi assim com Stardust (2007) que pouca gente deu a devida atenção pelo seu tom irônico e elenco cheio de estrelas (mas tendo como protagonista o então desconhecido Charlie Cox - hoje famoso por ser o Demolidor da série Netflix). Depois causou polêmica com a versão saborosamente hardcore de Kick-Ass (2010) para a telona e, ainda assim, cravou indicações importantes em premiações europeias (como no European Film Awards). Com a tarefa bem feita, Vaughn foi convidado a dirigir X-Men-Primeira Classe (2011), filme que colocou a franquia mutante novamente nos eixos e que muitos consideram o melhor filme dos heróis. Porém, parece que o talento de Vaughn fica ainda mais evidente quando ele é substituído, basta ver a porqueira que virou Kick-Ass 2 (2013) ou as críticas que sofreu X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido (2014), mesmo o criador da franquia (Brian Singer) no comando. Ao que parece Vaughn não curte dirigir sequências de seus trabalhos, preferindo a liberdade de criar um universo a cada filme. Em Kingsman ele adapta a HQ de Mark Millar e Dave Gibbons (lançada em 2012) e cria um dos filmes mais divertidamente violentos dos últimos tempos (antes acho que só Kick-Ass estava à altura). O filme conta a história de um grupo de espiões impecavelmente vestidos, que atendem por codinomes inspirados nos Cavaleiros da Távola Redonda (aqueles dos contos do Rei Arthur). Com a morte de Lancelot (Jack Davenport) está aberta a seleção de um novo agente e Harry Hart (Colin Firth), ou melhor, Galahad, indica o filho adolescente de um antigo colega que morreu em serviço. Eggsy (o bom Taron Egerton) terá que disputar a vaga com outros jovens, cada um deles indicado por um membro do grupo secreto Kingsman. Além desse processo de iniciação, o filme ainda acompanha os planos do empresário Valentine (Samuel L. Jackson) para se tornar um dos maiores vilões da história do planeta. Poucos diretores conseguiriam manter o pique durante as mais de duas horas de exibição, com efeitos especiais bacanas, personagens carismáticos, cenas de ação mirabolantes e lutas inacreditáveis protagonizadas por Colin Firth. A escolha de Firth supreende, mas mostra-se um grande acerto como o mentor de Eggsy. A elegância do ator, apresenta Harry como um verdadeiro cavalheiro pode ser herói e não perder a pose (ou os óculos). Das piadas com o jeito britânico de ser misturado com o universo dos espiões (James Bond é visível entre os apetrechos ou na sugestiva cena final), passando pelo charme de ter seus personagens chamados de Arthur (Michael Caine), Merlin (Mark Strong) ou até ... Gazelle (vivida pela inacreditável argelina Sofia Boutella), Kingsman nos faz até esquecer a forma meio torta como aborda as desigualdades sociais ou como poderia ser um pouco mais enxuto em suas guinadas sucessivas. Com esses poucos deslizes contornados magistralmente, ao final da sessão, Vaughn deixa a sensação que, pelo menos dessa vez, ele poderia dirigir uma sequência esperta de sua cria. A galera agradece!

Kingsman - Serviço Secreto (Kingsman - The Secret Service / Reino Unido-2015) de Matthew Vaughn com Colin Frith, Taron Egerton, Samuel L. Jackson, Mark Strong, Michael Caine, Sofia Boutella, Sophie Cookson e Edward Holcroft. ☻☻☻☻

Pódio: Kevin Kline

Bronze: o adúltero
3º Tempestade de Gelo (1997)
O taiwanês Ang Lee visita à revolução sexual da década de 1970 a partir do cotidiano de uma família e seus amigos. Kevin Kline encarna o pai de dois adolescentes que tem um caso com a vizinha (Sigourney Weaver) e precisa lidar com os novos códigos de conduta que sua masculinidade ainda não domina. Poucos concordarão com essa lembrança, mas um outro ator teria deixado o intimidado Ben Wood apenas como um sujeito apático, mas Kline o transforma no que realmente é - um sujeito comum.

Prata: no armário. 
2º Será que Ele É? (1997)
No mesmo ano, Kline foi o responsável por uma das melhores atuações cômicas do ano. Sua atuação como o professor Howard Brackett - que tem a sexualidade questionada em rede nacional quando está prestes a se casar - passa por algumas situações inusitadas na busca de uma identidade que, até então, escondia até de si mesmo. A direção de Frank Oz ambienta essa comédia de costumes na medida para que Kline exiba seu talento cômico que, infelizmente, não encontra espaço nas comediotas hollywoodianas atuais. 

Ouro: o doido. 
1 Um Peixe Chamado Wanda (1988)
Antes de viver o bandido psico-cômico desse clássico dos anos 1980, Kline havia se dedicado a filmes mais densos e dramáticos (graças ao seu currículo na prestigiada Jiulliard School de Nova York). Talvez por isso, sua atuação como o insano Otto tenha impressionado tanta gente - o que acabou lhe rendendo o Oscar de ator coadjuvante! A tarefa de Kline foi realmente louvável, já que seu personagem está longe de ser o tipo que rende prêmios da Academia, mas o trato abilolado que deu ao texto caiu como uma luva. Dezenas de papéis depois, Kline ainda é lembrado por muitos fãs como um comediante de primeira. 

PL►Y: Minha Querida Dama


O veterano ator americano Israel Horovitz é famoso por suas interpretações nos palcos, mas já dirigiu dois filmes. Se o primeiro (3 Weeks After Paradise/2002) era uma espécie de registro teatral, com Minha Querida Dama (2014) ele consegue criar um filme interessante com poucos elementos em cena baseado em uma peça escrita por ele mesmo. O filme tinha expectativas para ser lembrado nas premiações no final do ano passado, mas passou em branco - inclusive nos cinemas brasileiros, onde estreou em junho. O filme conta o imbróglio em que se meteu o americano Mathias Gold (Kevin Kline) após a morte do pai. Mathias descobre que ganhou um casarão francês de herança. Sem moradia, carreira ou família, parte para o país com esperança de vender o imóvel e acertar sua vida conturbada. No casarão ele conhece a senhora Mathilda Girard (Maggie Smith), que revela para Mathias que ele ainda não é o dono da casa, afinal seu pai fez um contrato quase em desuso, onde o interessado pelo imóvel pagará uma quantia mensal ao proprietário até o dia de sua morte. Assim, quando ele morrer, o imóvel passa para o nome do paciente novo proprietário. Sendo assim, Mathias, herdou uma dívida e não um imóvel, já que Mathilda está com 92 anos e goza de plena saúde e pretende continuar recebendo a prestação por sua casa. Sem ter para onde ir, Mathias terá que morar de favor com Mathilda e... a sisuda filha dela também, Chloé (Kristin Scott Thomas) - cujo relacionamento com Mathias é bastante tensa. A confusão imobiliária é o que menos importa no filme, já que aos poucos o personagem passa a descobrir a relação que existia entre Mathilda e seu falecido pai, ao mesmo tempo, Mathias revela que seus problemas não são apenas financeiros, mas emocionais também. Escritor frustrado, esposo fiel e largado três vezes, alcoólatra e cheio de traumas, Mathias é o material ideal para que Kevin Kline prove que merece ser lembrado para mais papéis interessantes (lembrando que aos 67 anos ele vive um sujeito com dez anos a menos). A química entre Kline e Smith sustenta o filme, mesmo quando ele peca pela falta de ritmo. As doses de humor inofensivo servem para dar leveza a um filme que passa a lidar com emoções complicadas em sua metade final - onde subtextos sobre adultério, suicídio e incesto aparecem sem sensacionalismo. O filme é bastante agradável de se assistir, mas não espere demais dele, Minha Querida Dama é uma dramédia com sabor meio francês, meio inglês e depende da sua afinidade com o trio protagonista para se convencer de que o final dessa confusão será otimista. 

Minha Querida Dama (My Old Lady/ Reino Unido/EUA/França - 2014) Israel Horovitz com Kevin Kline, Maggie Smith, Kristin Scott Thomas e Dominique Pinon. ☻☻☻

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

CATÁLOGO: Control

Riley (segundo da esquerda para direita): performance mediúnica. 

A famigerada cinebiografia de Ian Curtis marcou a estreia de Anton Corbijn como cineasta. o que lhe conferiu um grande prestígio na carreira (afinal, só a primeira exibição do filme no Festival de Cannes lhe rendeu quatro prêmios) e a aura de cult para seu filme. Control realmente impressiona por sua linguagem quase documental ao retratar um dos maiores ícones do rock pós-punk. Dentro da história do rock a história do Joy Division é tão curiosa que sempre chama atenção dos mais atentos. O longa é baseado no livro de Deborah Curtis (viúva de Ian) e reconstrói um retrato melancólico do vocalista que cresceu ouvindo David Bowie e fazendo pose de ídolo do rock no quarto vazio. Foi nessa época que conheceu Déborah (Samantha Morton), aparentemente tímido demais, Ian já era casado quando se ofereceu para ser vocalista da banda de um grupo de conhecidos. Ao lado de Peter Hook (Joe Anderson), Bernard Sumner (James Anthony Pearson) e Martin Hannett (Ben Naylor) deu forma para a banda. É emocionante quando a aparência frágil de Ian revela a voz cavernosa nos palcos, cantando músicas que marcariam uma geração. Na maioria das vezes, as canções são apresentadas tendo ligação com a vida particular do cantor,  colaborando muito para a mudança de tom na narrativa que começa leve e torna-se cada vez mais pesada - especialmente quando Ian precisa cuidar de sua epilepsia com medicamentos cada vez mais fortes. O filme mostra o diagnóstico tardio da doença como um fato preponderante para a construção da personalidade de seu biografado, tendo forte influência até mesmo em seu desfecho sombrio. O filme ainda apresenta o envolvimento de Curtis com seu empresário Rob Gretton (Toby Kebbel), Tony Wilson (Craig Parkinson)  -  o dono da gravadora Factory (cuja trajetória foi apresentada em A Festa Nunca Termina/2002 onde o Joy também aparece) e com uma amante (sem muito destaque na trama), mas o grande trunfo do filme é a atuação de Sam Riley vivendo Ian Curtis de forma mediúnica. A fotografia em preto e branco e o fato dos atores tocarem seus próprios instrumentos nas cenas de show aumentam ainda mais a autenticidade dessa obra que faz jus ao legado de uma das maiores bandas de rock da Inglaterra. O filme fez tanto sucesso que até que poderiam se empolgar e fazer uma continuação sobre a banda que o Joy se tornou após a morte de Curtis: o New Order (que permanece na ativa e cultuado até os dias atuais com Bernard Sumner nos vocais).

Control (Reino unido/EUA/Japão/Austrália -2007) de Anton Corbijn com Sam Riley, Samantha Morton, Toby Kebbel, James Anthony Pearson, Joe Anderson, Ben Naylor e Craig Parkinson. ☻☻☻☻

Na Tela: Phoenix

Ronald e Nina: a hora da verdade.

Só de ter uma protagonista que recebe um novo rosto após ser cruelmente desfigurada a história já chamaria a atenção, mas o escritor  Hubert Monteilhet  queria mais quando escreveu "Le Retour des Cendres" em 1961. Adaptado para os cinemas em 2014 pelo cineasta alemão Christian Petzold, o filme chamou a atenção dos críticos pela forma intimista com que trata uma sobrevivente do Holocausto. Nelly Lenz (Nina Hoss) sobreviveu dois anos num campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e teve o rosto desfigurado por torturas variadas. Ela conta com a ajuda da amiga Lene Winter (Nina Kunzendorf) para reconstruir o rosto e sua vida. Quanto ao rosto, um cirurgião plástico é capaz de tornar o mais próximo possível do que era antes - ainda que Nelly não se reconheça ao se ver refletida no espelho -, o problema maior são as marcas profundas que a guerra deixou em sua memória. Além das atrocidades que sofreu, ainda precisa lidar com a ausência de familiares e amigos executados nos campos. Porém, Nelly sabe que seu esposo, Johny (Ronald Zehrfeld) está vivo em algum lugar de Berlim e, na cidade em destroços, pretende encontrá-lo. Tal como o nome da ave mitológica que dá o nome ao filme, Nelly é capaz de renascer das cinzas, mas com o diferencial do alto custo de querer a vida antiga de volta. Nesse ponto, o reencontro com o esposo renderá alguns dos momentos mais dramáticos da sessão. Não apenas por ele não reconhecê-la, mas por haver a suspeita de que foi ele que a entregou aos nazistas em troca da própria sobrevivência. Haverá uma aproximação entre os dois, mas em nome de um golpe que Johny pretende aplicar a partir da semelhança da mulher que cruza seu caminho com a esposa que julga falecida. É na preparação desse golpe que Johny e Nelly irão se reaproximar, trocar lembranças e fazer com que Nelly perceba (de forma bastante áspera) que seu mundo não é mais como era antigamente. Christian Petzold cria um de tom solene, mas que funciona pela dinâmica que instaura entre o casal protagonista que lida, cada um do seu jeito, com os fantasmas do passado. Assim, a amiga Lene funciona como uma espécie de voz da consciência da amiga, que sempre lembra o que não pode ser esquecido de sua trajetória. Bem executado, ainda que modesto, em alguns momentos achei que a história funcionaria melhor sobre um palco, mas nada que prejudique o fluxo da narrativa. O grande destaque são as atuações das Ninas e Ronald Zehrfeld em cenas arrepiantes - com menção honrosa para a tristíssima cena final, onde Nelly solta a voz e despedaça o coração de quem está por perto (incluindo o nosso). 

Phoenix (Alemanha/Polônia-2014) de Christian Petzold com Nina Hoss, Ronald Zehrfeld e Nina Kunzendorf. ☻☻☻☻

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

PL►Y: A Fita Azul

Rory e Julia: grávida pela música. 

A Fita Azul parte de uma fantasia e deve ser visto como tal, senão, corre o risco de provocar a irritação de alguns religiosos. Não que seja ofensivo, pelo contrário, consegue ser bastante ingênuo na forma como abraça a ideia de sua protagonista adolescente vivida com rara luminosidade pela novata Julia Garner (que antes teve apenas uma participação pequena no arrepiante Martha Marcy May Marlene/2011). Julia vive a adolescente Rachel, uma jovem ingênua de quinze anos que vive isolada numa comunidade de mórmons fundamentalistas junto à família. Numa noite ela resolve ouvir uma fita cassete (a tal fita azul do título) que toca um rock meloso que gruda na cabeça da garota feito um chiclete. Rachel é surpreendida pelo irmão, Mr. Will (Liam Aiken o já crescido garotinho de Desventuras em Série/2004) que na tentativa de evitar que Rachel continue ouvindo aquela música mundana, acaba sendo mal interpretado pela mãe (Cynthia Watros). Após aquela noite, Rachel começa a sentir-se diferente e descobre-se grávida. Diante da situação, o pai de Rachel, também mentor espiritual da comunidade (Billy Zane), suspeita que Mr. Will seja responsável por aquela situação e trata de arranjar um casamento para a mocinha. No entanto, Will e Rachel afirmam que não aconteceu nada entre os dois, mas enquanto Will pensa que alguém engravidou a irmã, Rachel acredita que houve uma concepção imaculada a partir da música que ouviu naquela noite - e que , provavelmente, o pai é a pessoa que canta a tal música. Contando tudo parece ridículo, mas é incrível como o filme da estreante Rebecca Thomas (que é responsável pela adaptação de Quem é Você Alaska de John Green para as telonas no ano que vem) funciona excepcionalmente bem nessa primeira parte. Não apenas pela sensação de que algo tão especial quanto estranho aconteceu naquela noite, como também, por inibir o descrédito da plateia perante as declarações de sua protagonista que mostra-se acima de qualquer suspeita (e isso é mérito da atuação de Julia Garner, que capricha também na narrativa em off do filme). O ruim é que a história perde muito de sua graça quando Rachel parte em busca de quem canta a tal música e, ao lado de Mr. Will, descobre a cidade grande e seus "perigos". Conhece membros de uma banda de rock (com destaque para o personagem do sempre apático Rory Culkin - o pior ator da família) e se metendo em problemas um tanto manjados quando se trata do contraste de quem vive no campo e a vida na cidade. Porém, não deixa de ser interessante que Rachel busque o pai de seu filho e acabe descobrindo suas próprias origens. Embora a obra cumpra menos do que prometa, deixa a sensação de ser um filme adolescente diferente. Sua premissa, que beira o surreal (engravidar de uma música), gera um resultado que espanta todo o cinismo e polêmicas que poderiam render uma versão para o século XXI do provocador "Je vous salue, Marie" de Jean Luc Godard. No entanto, talvez seja pelo medo de chocar as plateias que o filme perde o pique conforme o final se aproxima e descamba para um desfecho que pode ser até revelador para alguns, mas para quem embarcou na fantasia resulta convencional demais para um filme que busca ser original. 

A Fita Azul (Electrick Children/EUA-2012) de Rebecca Thomas com Julia Garner, Rory Culkin, Liam Aiken, Cynthia Watros, Billy Zane e John Patrick Amedori ☻☻

domingo, 9 de agosto de 2015

10+: Filmes Favoritos do Meu Pai

Dificilmente eu seria cinéfilo sem a influência do meu pai. Lembro quando ainda era um menino e ele me levou ao cinema pela primeira vez (para ver Peter Pan da Disney). O tempo passou, outros filmes vieram e nossos gostos se distanciaram um pouco... pedi para ele citar os dez filmes que ele mais gosta e (quem acompanha o blog) irá perceber que ainda há semelhanças em nossos gostos. A lista encontra-se em ordem alfabética:

Gladiador (2000) de Ridley Scott
(o filme consolidou Russell Crowe em um dos atores favoritos do meu pai)

Los Angeles - Cidade Proibida (1997) de Curtis Hanson
(perdi a conta de quantas vezes vimos esse filme juntos)

O Rei Leão (1994) de Roger Allers & Rob Minkoff
(ainda lembro quando ele assistiu o filme com minha irmã caçula no cinema)

Os Dez Mandamentos (1956) de Cecil B. DeMille
(meu pai não é chegado a filmes religiosos, mas esse ele adora)

O Senhor dos Anéis (2001/2002/2003) de Peter Jackson
(meu pai sabe que a trilogia forma um filme só e juntou todos na lista)

Operação Dragão (1973) de Robert Clouse 
(Bruce Lee foi um dos artistas favoritos dele)

Snatch - Porcos e Diamantes (2000) de Guy Ritchie 
(pela narrativa nervosa, pelo cigano bom de briga e pelas risadas)

Spartacus (1960) de Stanley Kubrick
(já deu para perceber que meu pai adora épicos?) 

Thor (2011) de Kenneth Branagh
(meu pai adora o tom solene do filme)

Tróia (2004) de Wolfgang Petersen
(meu pai não entende muito de mitologia, mas curte a cena do cavalo...)

sábado, 8 de agosto de 2015

KLÁSSIQO: Isto é Spinal Tap


Uma banda de Heavy Metal famosa por ser a mais barulhenta da Inglaterra está prestes a lançar seu novo álbum ("Smell the Glove", ou "Cheire a Luva" em portugês) quando passa a ser acompanhada por um documentarista durante a turnê pelos Estados Unidos. A banda Spinal Tap tem histórias de longa data e passam a ser criticados pelas letras cretinas e, principalmente, pela capa sexista de seu novo álbum. Dando entrevistas tudo parece um tanto desconectado dentro de uma solenidade impagável - e alguns desavisados podem achar um documentário que presta um desserviço para  a banda, mas quando você descobre que tudo não passa de uma grande brincadeira do diretor Rob Reiner o riso se torna frouxo com vontade. Considerado por muitos uma das melhores comédias de todos os tempos, além de ser revolucionário pela forma como retrata a trajetória de uma banda de rock, Isto é Spinal Tap gerou polêmica entre os fãs de rock que não entraram na brincadeira e perceberam todas as alfinetadas que existiam na tela sobre os seus ídolos. Se os diálogos imprevisíveis garantem a graça por boa parte da sessão, as performances no palco tornam tudo ainda mais hilário, não apenas pelas rimas e trocadilhos canhestros usados pela banda, mas também pelas presepadas que geralmente não funcionam como deveriam (a cena dos casulos e a dos anões no palco são de rolar de rir) e conferem instabilidade à banda, seja pelo ego cheio que atrapalha a amizade entre o vocalista David Hubbins (Michael McKean) e Nigel Tufnel (Christopher Guest) ou a relação delicada entre a esposa de Hubbins com o empresário da banda, que... digamos, colabora nas trabalhadas do grupo. Rob Reiner brinca com o formato documental aparecendo no filme como o próprio documentarista, atirando para todos os lados nas referências roqueiras (passando pela exigência dos quartos de hotel e seus lanches exóticos) deixando tudo num aspecto que só ressalta como os membros do Spinal Tap parecem viver numa realidade paralela, um tanto alheios ao que acontece no mundo e às pessoas que pensam sobre deles. Visto hoje, o filme pode parecer um tanto bobo, mas possui algumas tiradas realmente geniais (como a maldição dos seus bateristas ou a capa do álbum que parece até uma referência ao do Metallica que só foi lançado sete anos depois). Mais do que ter fãs fiéis, o filme gerou um discípulo que até hoje realiza saborosos documentários fakes, Christopher Guest (o esposo de Jamie Lee Curstis) dedica-se ao gênero com muito bom humor ao lado de uma patota inspirada que inclui seu colega de elenco Harry Shearer, que interpreta o bigodudo baixista do Spinal Tap. Se você curtir a linguagem amalucada do filme, vale a pena procurar a obra de Guest para assistir. 

Isto é Spinal Tap (This Is Spinal Tap/EUA-1984) de Rob Reiner com Christopher Guest, Michael McKean, Rob Reiner, Harry Shearer e Tony Hendra. ☻☻☻☻

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

COMBO: Roqueiros do Cinema

Existem inúmeros filmes sobre bandas de rock, mas o cinema já provou que pode criar suas próprias bandas fictícias e confundir o público que pode até pensar se elas existiram ou não. Esse combo é dedicado às minhas cinco bandas favoritas que não fariam feio no mundo real, talvez por isso algumas realmente ganharam fama fora das telas. 

05 The Wonders (1996) Tom Hanks pode não ser grande coisa como cineasta, mas acertou quando contou os dilemas da banda The Wonders, uma das inúmeras bandas americanas que tentaram sucesso no rastro dos Beatles com seu rock inofensivo feito para embalar namoradinhos da década de 1960. A canção That thing you do! se tornou um hit na tela e fora dela, chegando a ser indicada ao Oscar e tocar no rádio por vários anos. Formado por um baterista bonzinho (Tom Everett Scortt), um vocalista arrogante (Johnaton Schaech), o guitarrista gente boa (Steve Zahn) e o baixista um tanto esquisito (Ethan Embry), o filme não foge muito do trivial, mas serve como bela alegoria sobre o fim da inocência (e ainda tem Liv Tyler e Charlize Theron bem novinhas no elenco). 

4 Quase Famosos (2000) A obra-prima de Cameron Crowe é uma colagem de suas experiências da época em que, ainda adolescente , era repórter da revista Rolling Stone. O filme acompanha a banda de sucesso Stillwater em sua turnê no ano de 1973. Entre drogas, groupies, música e momentos em que a banda quase vira pó, o jovem William Miller (Patrick Fugit) fica amigo do vocalista Russell (Billy Crudup) e se apaixona por sua groupie favorita, a reluzente Penny Lane (Kate Hudson, indicada ao Oscar pelo papel). Crowe imprime uma saborosa energia ao filme, sem perder de vista os tipos curiosos que rondam os personagens (especialmente a zelosa mãe de Willian, vivida por Frances McDormand - também indicada ao Oscar). O filme levou para casa o Oscar de roteiro original e foi o último grande filme de Crowe. 

3 Hedwig (2001) Fazer uma ópera-rock calcada num transexual não é tarefa para qualquer um. Se você considerar então que o diretor, roteirista e ator responsável é o mesmo homem, a coisa fica ainda mais interessante! Só de lembrar o que John Cameron Mitchell faz eu fico impressionado! Sua performance visceral como Hedwig, o jovem nascido na Alemanha ocidental que curtia David Bowie e acabou na cena underground americana colecionando desventuras amorosas (após uma amarga mudança de sexo) é inesquecível. O filme é uma grande ousadia e mostra como Mitchell pode ganhar a vida numa banda quando acharem que seus filmes ficaram menos interessantes. Um dos melhores musicais do cinema americano rendeu à Mitchell uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Ator (e uma das trilhas sonoras mais bacanas de todos os tempos). 

02 The Commitments - Loucos Pela Fama (1991) Os xiitas vão reclamar dizendo que a banda do filme de Alan Parker não é roqueira, mas uma mistura de Soul e R&B! Mas convenhamos que a atitude dos membros da banda formada por moradores do bairro operário de Dublin é mais punk do que de muita bandinha que toca no rádio atualmente. A partir da iniciativa de Jimmy Rabbitte (Robert Atkins) um grupo de jovens com situação social precária, tem o talento descoberto e a mistura de garra, som e fúria flerta constantemente com o fracasso devido as relações do grupo. O filme impressiona pela sua atmosfera realista e deu tão certo que o Commitments tornou-se uma banda de verdade que fez até shows no Brasil!

 01 Isto é Spinal Tap (1984) Considerado uma das melhores comédias de todos os tempos, o filme de Rob Reiner é um documentário farsesco (o tal mockumentary) sobre a banda britânica de Heavy Metal Spinal Tap. Feito a partir da experiência de um diretor que segue a banda para construir um documentário, o filme faz piada com referências explícitas às bandas que estavam no auge na década de 1980. Dos momentos de crise aos estrelismos, Isto é Spinal Tap é considerado por muitos um divisor de águas na construção dos filmes sobre música - ainda que tenha desagradado roqueiros e fãs variados por conta de suas alfinetadas à cultura pop, além de ter levado vários desavisados a acreditarem que o filme era realmente um documentário sobre uma banda da qual deveriam ter ouvido falar e, no entanto, desconheciam completamente.  

CATÁLOGO: Ainda Muito Loucos

Strange Fruit: reencontro vinte anos depois. 

Ainda que não tenha conquistado sucesso no Brasil, a comédia roqueira Ainda Muito Loucos conseguiu relativo sucesso no mercado mundial e ainda foi lembrado em duas categorias do Globo de Ouro em 1999 (Melhor Filme de Comédia ou Musical e Melhor Canção Original). A trama conta o reencontro de uma banda de rock fictícia após receber o convite para participar de um festival. Ao que parece a banda Strange Fruit sempre teve problemas de relacionamento e, após uma desastrosa apresentação no mesmo festival vinte anos atrás anunciou-se o fim à banda. Marcada por excessos, a carreira da trupe teve um fim precoce e cabe ao tecladista Tony Costello (Stephen Rea com sua mesma cara de sempre) reunir o grupo mais uma vez duas décadas depois. O filme de Brian Gibson não tenta ser mais do que uma cômica lavagem de roupa suja, brincando com vários clichês dos veteranos do rock que de vez em quando retornam do limbo do rock. Entre os personagens o mais interessante é o vocalista afetado Ray Simms vivido por Bill Nighy (que em 2003 fez personagem semelhante no insosso Simplesmente Amor). Nighy tem o physique du role para viver o roqueiro aposentado que cansou das comparações com o vocalista anterior (como lembrei do Van Halen) e que tenta reerguer a carreira solo ao lado da esposa perua - que detesta os ex-colegas de banda. As letras melosas calcadas nas melodias de bandas hardcore dos anos 1970 e 1980 rendem um repertório convincente para uma banda que envelheceu mal, não consegue se entender, mas quer algum reconhecimento pelos seus anos de glória. O filme conseguiu reunir um grupo de atores ingleses sensacionais (como Timothy Spall como o mais doido do grupo, Billy Connolly e Jimmy Nail como o mais sentido por perder os vocais para Simms) para dar corpo a banda e seus conflitos, o roteiro constrói um road movie inofensivo calcado nos shows que a banda faz pela Europa para provar que merece uma segunda chance perante uma nova geração de possíveis fãs. Entre um membro desaparecido, um jovem guitarrista substituto, o fantasma do ex-vocalista falecida, a presença constante da agente e companheira Karen (Juliet Aubrey) e o assédio maldoso da impresna, Ainda Muito Loucos se alimenta de uma certa nostalgia, sem perder o tom de ingenuidade que, por vezes, soa um tanto forçado.  A direção de Brian Gibson não se arrisca, mas tem o mérito de transformar as apresentações do grupo em momentos onde o inesperado pode acontecer e atrapalhar tudo - principalmente quando eles ainda tentam entender o público roqueiro da virada do século XX para o XXI. Pode não ser inesquecível, mas serve como um simpático passatempo. 

Ainda Muito Loucos (Still Crazy/Reino Unido - 1998) de Brian Gibson com Stephen Rea, Bill Nighy, Timothy Spall, Jimmy Nail, Juliet Aubrey e Bruce Robinson. ☻☻